segunda-feira, 27 de setembro de 2010

UM PEQUENO ENSAIO SOBRE REBELDIA III






 III O dogma do pecadoTalvez o ponto central que diferenciam as chamadas religiões universais (budismo, judaísmo, cristianismo e islamismo) muito além dos rituais e do culto __seja a dialética entre o pecado e a purificação. Para o budismo não há pecado. Nas religiões judaicas e islâmicas o pecado é visto como transgressão a Deus; no cristianismo, como agressão ao próximo ou, em consequência, a si próprio e, portanto, permissível a remissão. Elaboração esta só possível pela concepção de Deus no cristianismo: um Deus humanizado em seu próprio filho.Portanto, se, no budismo há transcendência, no cristianismo que teve também suas origens orientais, apenas transferência. Nada mais óbvio que a Psicanálise surgisse no Ocidente-cristão.Nas religiões orientais, Deus é um estado espiritual a ser alcançado. Portanto, uma evolução do espírito humano. No cristianismo, à inversão do ideal divino, que jamais poderá ser alcançado, apenas compartilhado, foi somada a humanização de Deus. Deste ponto de vista nunca o ateísmo ficou tão próximo do homem: pois negar Deus é não negar a si próprio. Ser ateu, então, só é plenamente possível no universo cristão. 
Desta maneira podemos entender porque Kierkegaard, filosoficamente, antagônico a Nietzsche, ambos grandes filósofos e teólogos __ um por vocação, o outro por repúdio__ convergiam na crítica à moral cristã. Para o primeiro o verdadeiro pecado era a negação de Deus e sua remissão o ideal humano a ser alcançado. Para o outro, é o próprio pecado que deveria ser exaltado, pois sendo a moral uma invenção para os fracos (o seu super-homem é um ser amoral e, portanto, ateu). Ser forte era desprezar a tacanha moralidade da época. E mais que isso: resgatar a aristocracia, ou seja, livrar o homem de sua "submissão a mentalidade de rebanho".Cada um o seu modo banalizou os delitos impostos pela moral ocidental-cristã: um, repudiando o pecado, acabou por realçá-lo; o outro, Nietzsche, exaltando-o, acabou com ele. De uma maneira ou de outra, ambos, existencialistas, fizeram sua remissão. Nietzsche pelo viés libertário; Kierkegaard, permanecendo religioso, não conseguindo se safar, perdeu a sua própria identidade.

IV - Religião, opressão e fé

 A repressão, mecanismo de defesa do homem para suportar o drama da sobrevivência, premido entre o peso do existir e o horror da finitude, é também o motor que impulsiona toda tragédia da aventura humana. Nenhum outro animal, pelo menos até onde consigo avaliar, somatiza esse processo. Freud escreveu __ o que me escandalizaria aos 19 anos de ardorosa fé católica __que foi reprimido no homem, uma vez que a convivência tribal acabou por forçar o estabelecimento de tabus: o incesto, o canibalismo e o bissexualismo, para que fossem possíveis a sobrevivência e a perpetuação da raça. Que tais proibições tivessem o aval religioso e se transformassem em leis divinas foi uma questão de tempo. Dificilmente haveria outro artifício mais eficiente.
Padrões éticos e morais, antes que leis humanas impusessem sanções àqueles que os violassem, já tinham sido impostos por decretos divinos e tal constatação soava de uma naturalidade inquestionável, pois a religião surgiu por uma necessidade humana: o homem, com certeza, não conseguiria enfrentar o dilema da vida sem uma mitologia que o reconfortasse. Sua utilidade e eficácia, depois que Estado se corporificou como único aparato jurídico e legislador são, no mínimo, duvidosos.
Certos pressupostos, exercício intelectual dos séculos XVIII e XIX, que as origens desses tabus eram bem mais do que religiosas e tinham a finalidade de preservar a convivência tribal e que o criacionismo não passaria de uma fábula, infelizmente, jamais foi completamente assimilado pelo Ocidente cristão e, o que é pior: nem mesmo pelas universidades atuais. As escolas norte-americanas são exemplos disso. Recentemente (2007), lá nas terras do Tio Sam, foi aberto ao público um museu do criacionismo _ evidentemente sem nenhuma prova científica sobre o assunto _ onde, sobre o manto inefável da fantasia, fazem ocultar, num resumo de seis mil anos, bilhões de anos de evolução. E patrocinado por uma Universidade. 
Na verdade sempre houve tentativas de conciliar ciência e religião; algo se não impossível, mais que despropositado. Pois derrubar as barreiras entre elas seria para os crentes uma tentativa desnecessária e para os cientistas, perfeitamente dispensável, já que os milhões de crédulos espalhados por mais de cem mil seitas pelo mundo, pouco ou nada se interessam pelos caminhos heréticos da ciência e aqueles que dão suas vidas para servirem esta última, pouco ganham em santificá-la. Inaceitável é o Estado querer incluir religiões nos currículos escolares como se tratasse de "verdades" dignas de serem estudadas como tal e a mídia tratá-las como assuntos inquestionáveis. Soa-me inadmissível que procurem tergiversar sobre essas questões que, ainda na aurora do século XXI, continuam sendo merecedoras do beneplácito da dúvida e desse modo sejam coniventes com o obscurantismo, hoje, mais do que nunca, disseminado pelos meios de comunicação. Disseminação essa nos imposta, já que ocupa absurdamente mais de 40% do espaço da mídia (TV e rádio), no martelar, sem nenhum tipo de filtro, um proselitismo mesclado de oportunismo e comércio.

É interessante observar que a mídia, invenção em potencial do século XX, tinha como finalidade a informação, o lazer e a cultura, o que se supõe o esclarecimento do público. Transformou-se num verdadeiro palco de ilusões e nunca, como hoje, foi tão usada pelos mais diversos cultos e credos, impondo ao usuário suas "verdades", sem nenhum tipo de questionamento. O que a disseminação do obscurantismo e do comércio da fé, contribui para os objetivos dos meios de comunicação? 
Sem querer exigir da TV privada os mesmos compromissos da TV pública, as aberrações são tantas que tal questionamento se torna inevitável. A postura da maior rede de televisão brasileira, a Rede Globo é, no mínimo, um exemplo dessas aberrações: investe contra a farsa das novas religiões de mercado, com o intuito de esclarecer o público, atacando a Rede Record, que hoje, transformou em sua maior rival na audiência. Ao mesmo tempo, abre todos os espaços para a Igreja católica, como se esta fosse sua arma nessa guerra santa, que acaba não esclarecendo nada, nem ninguém. Ao Estado, evidentemente, não é desejável arrancar esse véu e assim, a religião e seus mitos, continuam verdades inabaláveis.

O que se vê nesses últimos 30 anos é a proliferação de seitas, que quase nada tem a ver com as religiões tradicionais, como a tentativa de alguns, não tão brilhantes, mas como uma verborragia no mínimo fantástica, de armarem uma nova religião "Deus machine", dando à física quântica auréola divina, levando o Deus criador a pairar sobre a poeira cósmica do "Big-bang" ; ou a técnica de cura de Reiki, que não deve nada aos antigos métodos de curandeirismo numa versão mais moderna, tão presente na cultura oriental; ou, na outra ponta, a prática absurda do exorcismo por igrejas recentes, como maneira de arrancar dinheiro dos fiéis. . 
Sem querer promover, por outro lado, guerra a todos os credos, seria mais do que um direito que nossos filhos recebessem das escolas e universidades por quais passarão, uma educação laica, sem as correias da superstição e do misticismo. Essa conivência é que mantém os "status" das várias religiões como verdade revelada e amplia cada vez mais os seus séquitos de fanáticos, pois aqueles que poderiam questionar tais valores são omissos ou pateticamente ingênuos. Podemos achar compreensível que muitas pessoas alijadas de um acesso maior à cultura ou ao conhecimento, possam curvar-se à ídolos ou se prendam a seitas que lhes ofereçam a expiação de seus pecados ou lhes restitua a dignidade terrena, vilipendiada pela miséria crônica e irreversível e também, por acréscimo, a salvação em outro mundo, mas que pessoas cultas assumam tal postura está além de minha compreensão. Escreveu Nietzsche: "Os homens preferem ter o vazio como propósito a serem vazios de propósito".

Poderemos, então __ como questionaria ninguém menos que o próprio Freud __, se por acaso existisse alguma possibilidade de êxito, tirar do crente sua fé, se nada, com certeza, poderemos colocar em seu lugar? Se nesta constatação fica explícito o grau coercitivo de tal modelagem, capaz de impregnar a mente de uma maneira tão avassaladora e dar resposta a mais de noventa por cento da humanidade, sobre a intrigante existência humana, é mais que compreensível, então, aceitar a crença como ela é: o auxílio da magia no desespero ou na desgraça iminente, pois para o homem ser céptico ao extremo é uma condição apavorante. Talvez por isso a psicanálise __ ao admitir que nada é mais instigante que a fé, pelo espaço considerável que ocupa na psique humana__ nega-se a encarar esse assunto de uma maneira mais objetiva. Erich Fronm já generalizava ao problematizar em "Psicanálise e Religião", que tudo seria religião, até mesmo a própria psicanálise e na sua visão, seria o amor a atenuante neste vasto campo religioso e o que balizaria a atitude correta ou não dos diversos credos. 
Entendo que não dá para questionar que qualquer doutrina levada a ferro e fogo como verdade absoluta, seja ela esotérica ou política, tem ou assimila os cânones ou o maniqueísmo de uma religião tradicional. E é irrefutável que a crença fanática em milagres ou o pensamento positivo causado pela fé sempre auxiliou nas curas das doenças e no alivio individual das dores da humanidade. No entanto, prefiro concordar com Ernest Becker, que com uma colocação mais lúcida sobre essa mesma problemática, questiona a glorificação do caráter religioso, tirando-lhe assim o privilégio de transformá-lo em único viés possível à epopeia humana.

 Ainda hoje a influência das igrejas nas mentes e nos corações dos povos é desproporcional ao seu atraso em relação às necessidades contemporâneas. Num documentário da BBC de Londres, o então, Cardeal Ratzinger, hoje Papa, desculpa-se das atrocidades da Inquisição dizendo que a Igreja Católica não foi menos justa, nem menos cruel, que as outras potestades da época. Tal argumento é de um cinismo e de uma deturpação da história, inaceitável. A Igreja sempre agiu de maneira reacionária, submetendo grande parte da humanidade aos seus padrões obscurantistas, nunca estando além de seu tempo; muito pelo contrário, sempre agiu no sentido de frear os caminhos da ciência. E ao obscurantismo cristão de ontem, flagrante pela lupa da história, considerando a conscientização dos povos pela vida e pela preservação da humanidade (e sua luta, em especial, contra a AIDS, o aumento populacional e a miséria), proporcionalmente, o de hoje não lhe fica devendo nada. As demais religiões, embora com nuances, pouco difere das cristãs no que tange aos padrões morais e obscurantistas.

CONCLUSÃO: Embora a crença divina tenha sido indispensável para os primórdios da sociedade e para o avanço da humanidade, não aceito que as religiões sejam, com todo seu grau de ilusão (como diria Freud) e alienação (como diria Marx), imprescindível para a sanidade humana. E, considerando tudo isso e todo o arcabouço crédulo do fragilizado animal humano, não dá para aceitar que uma elite culta (professores, magistrados, cientistas...) maquie com subterfúgios retóricos postulados já postos abaixo pelos iluministas e por gerações sucessivas de livres pensadores. Tal acoelhamento, mesmo considerando possíveis retaliações, é inaceitável. E nem dá para admitir que a negação da verdade religiosa seja um empecilho ao avanço das próximas gerações e acredito ser a humanidade capaz de, num futuro próximo, viver sem o auxílio de tal muleta; ou pelo menos, à medida que o saber e a cultura se disseminem globalmente, seu ardor fanático e obscurantista, legado esse de um passado não muito distante, não faça mais parte dela.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

UM PEQUENO ENSAIO SOBRE REBELDIA I e II


I - O PROJETO HUMANO

O projeto humano é uma concepção induzida por uma gama de experiências históricas imputada ao homem e por ele socializada, involuntariamente, como resposta à aventura da sobrevivência. A natureza rústica exigia respostas mais que imediatas, pois, no espetáculo da evolução, que se arrastava a passos de tartaruga, desencadeava-se um turbilhão de desafios para os quais o homem nunca esteve antecipadamente preparado. Na superação deles lançou mão de atributos físicos e mentais, que a priori não tinha, cujos mecanismos passou a dominar; distanciando-se assim de outras espécies estagnadas ou que se retardaram pelo caminho. Retardamento esse só medido em milhões de anos.
              Se esse adestramento físico e mental se deu ainda na aurora primeva do hominídeo, já ereto, até chegar à complexidade do ser que definitivamente “pensava”, como, então, aconteceu à transformação sutil da mente “verdadeiramente” humana que, entre outros atributos, raciocinava? Isso se deu quando o homem começou a fazer história, ou em outras palavras, quando começou a agir coletivamente. A partir daí o passo de tartaruga deu lugar a febril corrida de lebres. O poder laborativo do homo sapiens o enveredou, então, pelos caminhos da civilização.
              Marx nos ensinaria que o homem faz a história, não como quer, mas de acordo com as peculiaridades e condições específicas de cada momento histórico. Como, então, aconteceu essa transformação em cada ser humano, ou, evolutivamente na raça humana?
              Antes dele, Descartes pragmaticamente escreveria: “Penso, logo existo”, racionalizando assim o existir humano; com certeza, em algum momento mágico da aurora da humanidade, um abstraído hominídeo, fascinado com a constatação de seu labor, balbuciaria, entre grunhidos: “Eu faço” e a partir daí começaria a epopeia humana sobre a Terra e para o olhar humano não haveria mais horizontes impossíveis.

*

              O mundo, a partir da escrita, virou história; mas antes dela, já era história. Mesmo antes da escrita_ do neandertal assustado_ a linha que ligou o homem a civilização foi tecida com experiências paulatinamente assumidas. Somos produtos do avanço incondicional dessas experiências e de avanços a transpor: do pular de etapas. E essa história premida nas cavernas (vácuo de tempos não mensuráveis), só foi possível graças ao instinto que chamamos sobrevivência. Voltemos: somos parte de uma história nem sempre escrita, de avanços e recuos, que faz parte de um devir onde estamos incrustados. Somos experiências não perdidas de nós mesmos. Somos alguma coisa de coisas que nós mesmos construímos. Somos filhos da nossa rebeldia.    
            Se analisarmos o processo evolutivo da raça humana, através de suas descobertas e invenções, veremos que existe uma cronologia onde três estágios se destacam, de maneira distinta:
           I – Descobertas extemporâneas ocorridas pela observação de fenômenos naturais: o fogo, por exemplo;
          II – Invenções devido às necessidades básicas e imediatas: a habitação, o uso da pedra lascada e os primeiros instrumentos de caça;
          III – Invenções devido à criatividade: a roda e a escrita.
      Com certeza, da primeira à terceira fase transcorreram-se centenas de milhares de anos. O abandono do nomadismo proporcionou o pastoreio e a agricultura__ as primeiras formas de acumulação de produção__ e a invenção da roda e depois, da escrita cuneiforme, fizeram transpor o limiar do agrupamento nômade à civilização, com a sistematização da vida grupal, agora possível. 
           Penso que a mente capaz de dar ao indivíduo a consciência de si mesmo, fez parte de uma evolução que se deu antes mesmo de deixarmos para traz os nossos parentes mais próximos; no entanto, o raciocínio lógico, deve ter se dado quando passamos a caminhar ereto. Pesquisas recentes com chimpanzés demonstraram que eles (como os elefantes, que além de memória, cultuam e sofrem a morte de seus pares e por essa perda se deprimem) se reconhecem no espelho, um passo decisivo para o autoconhecimento. Ao abordar esse assunto em seu livro “Da Natureza Humana” (1972), o sócio biologista Edward O. Wilson, afirmou que evidências adicionais sugerem que as formas mais estereotipadas do comportamento humano são características dos mamíferos, “e ainda mais especificamente, dos primatas, como o previsto na teoria da evolução”. A teoria darwiniana da evolução é hoje plenamente aceita pela comunidade científica; o que não era, por incrível que possa parecer, há trinta anos, ou quando “Da Natureza Humana” foi escrito, nos finais da década de 60.
        Câmeras de TV flagraram recentemente uma fêmea de orangotango que passou a andar sobre os dois pés, recusando-se a abandonar a forma ereta. Por acaso não estaríamos presenciando a evolução retardatária dos símios? O que, se for verdadeira, dar-se-á bem mais rápida que a dos hominídeos, nossos ancestrais, devido ao seu contato com os humanos e sua cultura. Apesar de essa hipótese parecer absurda, ela não a é para a sociobiologia, nem para os evolucionistas. Nesse mesmo livro, Edward Wilson investiga o altruísmo em evolução em certos primatas, como os babuínos, (socorrem seus familiares idosos dando a eles parte de sua caça; o que não era feito nem por comunidades humanas primitivas, como os esquimós que, devido as vicissitudes do seu habitat: frio extenso, geleiras e longas caminhadas por dias longos e inóspitos, abandonavam os seus) que os aproximam cada vez mais dos seus parentes humanos, ditos civilizados.
        Cabe, então, perguntar: Por que teria a raça humana o privilégio único de evoluir mentalmente? Embora não seja este o nosso tema, hipoteticamente poderíamos perguntar: Quais repressões seriam impostas a esse novo animal racional?
        A resposta, de novo, pode estar no próprio homem.

                                                                                      *


                           II - OPRESSÃO  E REBELDIA

                       O ser humano é condicionado por imposições e influências, via família, comunidades políticas ou religiosas, pelo Estado__ o grande aparelho coercitivo e repressor __ e, também, carregado geneticamente de valores e fardos. Aos poucos tudo isso moldou sua personalidade, adaptando-o a um “modus vivente” que antes lhe era estranho e repulsivo. Essa estranheza só lhe é perceptível em nuances, como se alguma coisa estivesse fora do lugar, sem poder de fato mensurá-la ou interiorizá-la. Embora passível tal acomodamento, esse não se dá sem resistências, traduzindo-se em rebeldias ou em concessões que variam de indivíduo a indivíduo, de acordo com as particularidades de cada um e seu grau de desenvolvimento intrínseco: seu ambiente de trabalho (condições econômicas e técnicas), seu ambiente social (espaço geográfico, origem e vicissitudes da vida) e seu ambiente psicológico (emoções e sentimentos__ causa e conseqüências dos anteriores) e, naturalmente, o que lhe foi herdado geneticamente.
              Essas concessões, embora possam parecer naturais, são o ceder às repressões; muitas vezes imprescindíveis para o amadurecimento do indivíduo; em outras, são recalques que inibem seu próprio desenvolvimento. A personalidade assim dessa maneira “adquirida” só se processa com distorções.                         
              Evitarei usar a expressão “caráter”, pois talvez ela não traduza o produto das alterações psicológicas que ocorrem durante a breve vida do homem sobre a Terra, mesmo porque não é sob esse ângulo que me interessaria abordar e sim, o processo evolutivo da mente que se tornaria aos poucos e gradativamente, complexa e ímpar, ou seja, “humana”. O caráter seria apenas uma das características dela. Como escreveu Philip Rieff: “Caráter é a atividade de modelagem restritiva das possibilidades”. Seria a negação da rebeldia, se esta dele não fizesse parte.
              A rebeldia, portanto, faz parte da essência humana, assim como os sentimentos de amor e ódio e como eles, pode ser reprimida ou exaltada. Se combinados podem levar à loucura ou à morbidez. Nem sempre, porém, embora latente em todo ser humano, é percebida por outrem, nem mesmo pelo próprio indivíduo, pois as facetas de cada um, para serem taxadas de anormais, necessitam de um grau de estranhamento cujos contornos não são facilmente delineáveis. Não que a rebeldia seja um sintoma patológico, ou insano, muito pelo contrário, é a sublimação de um estado de saúde mental e psicológica; porém, reprimida por uma sociedade autoritária e opressora cujas engrenagens foram citadas anteriormente, produzem recalques psíquicos nem sempre satisfatoriamente superados.
              O caminho da maturação ou da aceitação dos moldes sociais é o mesmo da supressão, involuntária ou não, da própria rebeldia. O homem chega à idade adulta, parcial ou totalmente, domado; domesticação essa nem sempre plenamente aceita ou assimilada e que nem se completa algum dia. Essa linha de tensionamento pode provocar a qualquer tempo o seu rompimento, pois a rebeldia prevalecerá sob outra máscara: a da abnegação. Abnegação ao conservadorismo, a sujeição social e/ou ao “status quo”. Essa frágil armadura, porém, poderá ser rompida de uma maneira nem sempre pacífica.  

*

              Realçar a rebeldia e deslocá-la de um simples ato de conduta ou mero traço de personalidade para a complexidade das primeiras combustões que deram início à epopeia humana pode parecer à primeira vista algo despropositado e teoricamente irrelevante. Acho, porém, que a rebeldia, como outros sentimentos que foram "introspectados" nos recônditos da mente humana ainda primitiva, foi responsável pela faísca que provocaria a avassaladora chama da inteligência, ou seja, do pensamento lógico: é um sentimento que traduz uma insubordinação aos limites pré-estabelecidos a qualquer determinismo genético ou social, ou seja, insubmissão aos obstáculos que se apresentam no caminho do homem e de seu desenvolvimento. A rebeldia, assim como a sua negação, o medo da morte, são intrínsecos à problemática da evolução humana e ponto de inflexão que possibilitou ao homem o seu distanciamento intelectual para com (ou em relação à) as outras espécies e a própria alavanca que catapultou o despertar da razão.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

1968

Ontem, a revolta
saiu das letras do poema
e ágil
ganhou as mentes, tomou as ruas.

Hoje, recolhe-se
tímida às páginas de um caderno
mudo. 
E ainda é o mesmo dia.

1998