segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Nossa Vida Nela Mesma Consumida


As coisas que nos abalam
e deflagram meditação e medo;
os  fatos que nos comovem e rasgam nosso ser
 _ neste tempo cada vez mais tumultuado_
são na verdade estereótipos de nós mesmos.
São reflexões nas quais nossa mente traduz,
racional ou irracionalmente,
percepções que impregnam nossa vida.

Não somos melhores ou piores,
somos seres pensantes que plasmamos,
através do nosso próprio mundo,
nossas expectativas e frustrações.
Nossa boca só murmura, quando o grito é sufocado.
O punho só é contido, se invariavelmente prostrado.
A face só é altiva se esquecermos no espelho
o rosto fugidio que nos olha.

sábado, 17 de setembro de 2011

Meu tempo II - Infância

         
                                              
Atravessando um estacionamento (antigamente um posto de gasolina e antes, ainda_ recuperando cenas inebriadas pelo cheiro dos anos_ uma padaria de poucos fregueses) chego a uma ruela mal iluminada que me levará à escola de minha infância. Aspiro ao aroma adocicado de livros e cadernos; de seus papéis amarelecidos e da tinta fresca, úmida e pegajosa, que mancha o bolso de minha camisa tão branca onde se alojava a caneta de cuja pena vazava, lenta e intermitente, a tinta azul, densa e viscosa. Esses cheiros peculiares, umedecidos de aurora, vai aos poucos se impregnando na minha memória e a aviva: escrevi com essa caneta, agora me parece, todos os poucos anos de minha meninice e não consigo me recordar de quando larguei o lápis e a borracha (parece que nunca usei esses materiais) ao contrário, nitidamente vejo o tinteiro e o mata-borrão, aliás, tão requisitados, pois aquela caneta verde da qual tanto me orgulhava, deixava transbordar a tinta que penetrava em minhas unhas e manchava meu caderno de borrões. Tão pouco tenho a contar, mas não posso deixar de narrar no ritmo enfadonho e fugidio das reminiscências, as peças fragmentadas daqueles dias; correndo o risco, mais do que flagrante, de não ser preciso, nem verossímil. 
            Por exemplo, saltando já alguns anos, já que a memória fugidia insisti em pregar peças. questiono: em que ponto eu perdi a minha fé? Na métrica dos anos, talvez, foi a partir do momento que me voltei mais vorazmente aos livros, a princípio por me encontrar  inutilizado em uma cama por causa de um acidente... Depois, por me embrenhar em todas as leituras que até, então, não tinha tido curiosidade de ler. Tal incidente levou-me a ler a Bíblia inteira, primeiro porque na época, antes do acidente, não tinha condições de comprar livros (era, então, assíduo frequentador da Biblioteca Municipal, hábito este que adquiri de uma das minhas irmãs, T...., e os pegava emprestado quase todas as semanas, o que fiquei impedido por estar acamado e na verdade, tratavam-se mais de romances e aventuras juvenis);  segundo, por querer recompor a minha fé que já dava sinais de esmorecimento; contrapunha-a assim a outros textos não católicos. Fruto de minha briga diária contra a ociosidade forçada, depois do livro sagrado católico foi o Alcorão, que peguei de empréstimo de um amigo meu, que deu inicio as minhas especulações religiosas, o que alguns anos mais tarde me levaria para temas esotéricos: sufismo,  cabala, magias de pirâmides e de cristais, OVNIS e  outras bobagens mais. Tudo isso, quase sempre, lido as escondidas de minha família. Temia ou não queria ouvir nenhum tipo de admoestação.   Tempo depois, já no serviço público, voltei-me para a filosofia, encontrando Nietzsche, depois Voltaire, que me abriram um enorme campo de questionamentos e os devorei; seis anos depois voltei a ler novamente a Bíblia, desta vez por curiosidade literária já que me fascinaram suas epopeias construídas em centenas de anos por uma nação ainda em construção e com  e´um espírito mais crítico e aberto. Se bem que continuei frequentando a igreja por mais alguns anos. No  entanto, questiono hoje, 35 anos depois, se algum dia realmente eu tive fé? Voltando ao primário, onde uma religiosidade imposta comprimia-me com sua presença pesarosa. Os rituais religiosos, as orações levadas à exaustão, os momentos de penitências nas sombras das igrejas: isso tudo será que em algum momento tocaram-me inquestionavelmente?  Ou os parcos recursos, as pequenas humilhações no colégio que se tornaram agigantadas ante ao garoto que eu era, baniram do meu ser_ não, ainda, a religião opressiva daqueles tempos_ os pequenos rompantes de transcender-se? Transcendência essa ardorosamente procurada nos quartos de taipas gelados das noites de inverno e tórridos no verão, onde eu procurava me livrar dos pecados; como se a minha alma tão jovem fosse capaz de conter tantas máculas das quais, apavorado, vivia me penitenciando. Aliás, mais que fé em um Deus tinha pavor do Diabo, constantemente anunciado nos sermões dos frades e nas intermináveis novenas a Nossa Senhora; na igreja abarrotada de imagens de santos e de um Senhor morto envolto em mortalha roxa e medonha.
            O incenso que impregnava o ar, agora refresca como um bálsamo as minhas memórias. É seu odor que emana de minha infância, toda ela besuntada de sua densa fumaça. Vejo surgir as infindáveis procissões, festas religiosas e os jejuns intermináveis, valorizando ainda mais nossa anemia crônica. Meu lar também parecia ser um prolongamento desse êxtase litúrgico que me arrastava, quase sem resistências, para outras armadilhas: o colégio de freiras onde cursava o primário oferecido graciosamente aos alunos pobres, o catecismo, as irmandades religiosas infantis. O ar-compulsão-místico se espargia por tudo em nossa volta e nos obrigava assim, querendo ou não, a compartilharmos dele e desta maneira tornava-o natural e quase respirável. E arrastava o meu ser confuso e frágil, em um corpo tartamudo, magro e anêmico se escorregando pelas ruas estreitas e suas igrejas enormes e avassaladoras que apenas mudavam de endereço, mas se mantinham iguais. Deixei a religião e minhas crenças muito tempo depois, mas a alegria da beatitude já tinha me abandonado quando adentrei na adolescência, antes mesmo de meu malfadado acidente. Esse incidente foi um dique que separou essa fase de minha vida, levando-me às paragens mais amenas, deixando para trás um pouco de minhas feridas e traumas pré-adolescentes. Porém, o torvelinho de algumas outras pequenas tragédias ainda haveria de desaguar.   

quarta-feira, 18 de maio de 2011

MEU TEMPO

MEU TEMPO

I

           FRANJAS E JANELAS


           O tempo tem franjas e janelas. As franjas, um emaranhado de idas e vindas, carregam as multifacetações: os fragmentos dos dias em horas imensuráveis que escorrem e se dividem em facetas que compõe toda a nossa vida, sem classificá-la como antes e depois.  As franjas se abrem como miríades ávidas em se multiplicarem nas cópulas dionisíacas da fertilidade intemporal da mente com seus sonhos impossíveis e suas aspirações ingênuas e, nem sempre, levam-nos a algum lugar. As janelas nos levam ao passado perscrutado em sinais e cicatrizes ou ao futuro prognosticado pelas marcas indeléveis do presente. Como o futuro não me interessa, tentarei auscultar o passado em suas franjas, ciente da possibilidade de não conseguir desemaranhá-las do presente e confundir cronologicamente os fatos mais próximos daqueles mais distantes, pois a mente prega-nos peças revelando sem cessar situações que poderiam ou julgaríamos serem diferentes. Quase sempre, quando tentamos reencontrar nossa infância, nos vemos em volta com cenas estereotipadas de nós mesmos. E mesmo num passado não muito longe, o que éramos não é exatamente o que somos. Embora não provoquemos tais situações, o ambiente em volta parece conspirar contra nós e nesses momentos sentimos o quanto estivemos sozinhos e como foram pueris nossas tentativas de conservar certas amizades e hoje, ao tentarmos recuperar dos ecos das cavernas de nosso interior nossas lembranças mais suaves, a frustração nos abate, pois aquelas que nos vêm são sempre as que mais nos doem. O ontem, premido pela nossa fragilidade e dependência paterna expôs suas marcas no que hoje somos ou tentamos ser. E é ainda tão frágil nossa resposta para a vida que está passando e que não conseguimos ainda segurá-la nas mãos, que nos sentimos incompletos __e isso nunca nos deixará. Ontem, hoje e amanhã são faces de um todo que só se completará aos olhos alheios, quando nossa vida for apenas uma miragem. Por outros olhos, então, ela terá sentido: começo, meio e fim e esses dirão, mergulhados em suas próprias incompletudes, que nós fomos alguém. Essa intangibilidade é que me deixa confuso e vacilante; não sei se saberei descrever esse tempo perdido em imagens distorcidas ou rasgado por um destino que se achou indeciso. Talvez esse passado perdeu-se de propósito, sabendo-se tempo inócuo e irrelevante, puramente descartável, sabiamente cônscio de nada representar. Porém, se o exorcizo de meus sonhos e o esqueço como se esquece dum cigarro no parapeito de uma janela jamais aberta, retorna como pesadelos, possuindo-me como se cobrasse sua morada. Nesses sonhos esse passado se faz irreverente, sem todo o “glamour” que aparentava ter. Vago e fugidio como qualquer prosaica miragem. Tento, então, evocá-lo na vigília monótona de meus dias e nesse exercício nem sempre sóbrio de devaneios, tento resgatá-lo sabendo não poder exigir prova alguma, nem me dar, se falhar, desculpa alguma. Não sei também se saberei descrever as ruas, ruelas e becos onde se emolduraram suas imagens incrustadas em mim como camafeus esculpidos na alma e esquecidas talvez nos parapeitos de outras janelas já carcomidas por tantas recordações.  (Minha mente entorpecida não consegue acompanhar o fluxo das coisas. Como se as cenas, os sons e o próprio tempo não se combinassem e estivessem em constante falta de sintonia, vozes e ecos se confundem com o silencio completamente fora de hora e lugar. Anestesiado tento sair deste torpor fixando meu olhar em alguma coisa tangível. Porém, é em vão).                                
            Os cheiros e os odores das franjas do passado me vêm em pinceladas; os pigmentos de suas tintas ao juntarem-se nem sempre formam um desenho viável ou descrevem alguma sequência lógica. Nos recônditos do nosso cérebro, antes das imagens, sempre tênues e vacilantes, são os cheiros que nos abrem aos poucos os véus da paisagem. Parece ser o olfato, quando nossa mente regressa lentamente no tempo, a chave que abre o mecanismo oscilante da memória. O que se perde em precisão se ganha em intensidades, saudades e nostalgias, pois os fatos são recompostos como um todo sem corte, porém fragmentado em seus odores _ falta-me mestria e talento para absorvê-los e descrever as cenas com fidelidade. Admiro os grandes escritores ao descreverem em minúcias os cenários de suas fantasias e admito ser, mesmo na ficção, um exercício árduo. Não é esse, no entanto, o meu propósito e só espero que não me escape, por desleixo ou imperícia, todo o sentido de meus devaneios.
            Porém é necessário esse resgate: moldura e época; paisagem e passado; viagem e peregrinação. Enfim, fotografias de fatos que me cobram suas receptações.





sábado, 9 de abril de 2011

RETORNO

e de novo no espaço
a beira do abismo
novamente as imagens
interagindo-se nas alucinações
transgredindo o limiar
entre o pesadelo e a vigília_ dois momentos
em um só ou um só momento multifacetado

imagens reais se pulverizando em miragens
e supostas miragens
concretizando-se
criando vida em nossa frente
podemos apalpá-las
senti-las roçando nosso corpo
e, num átimo 
diluem-se em devaneios

e gargalhamos nessa brincadeira
que nos envolve e nos delicia
os gestos nos fogem 
não conseguimos percebê-los
em nosso cérebro vagam
e nele nos inserimos
como se estivéssemos fora dele
navegando em pensamentos que não são nossos
cuja  (con)sequência não atinamos
e nem queremos auscultar.

se por ventura  pudéssemos optar
entre a continuidade desse êxtase
ou a volta (ao mundo matéria-matéria
pensamento-pensamento)
a opção seria óbvia
intrigantemente esse pensamento 
que se incrustou  agora em nossa mente
clandestinamente e sem alarde
começa a ganhar corpo
e numa artimanha  de nossa consciência
o espaço infinito que tínhamos
vai-se estreitando, comprimindo-se

uma dor lancinante
oriunda dos recônditos de nossa mente-espaço
que se fecha
tenta nos expelir para fora de seus domínios
e o que avidamente desejávamos
torna-se horripilante  e insuportável
o retorno se faz cada vez mais difícil
ansiedade e medo fazem das imagens
dantes coloridas 
metamorfosearem-se em dantescas alucinações
o retorno não é uma benção, é maldição

contra tal aniquilamento  tentamos em vão lutar
mas ao fazê-lo compactuamos involuntariamente
na agilização entrópica desse processo
contra o qual lutamos
a queda luciferina já está consumada
o paraíso perdido terá que ser reconstruído
(o mundo matéria-pensamento, pensamento-matéria).

segunda-feira, 28 de março de 2011

DONAIRE


A guisa de introdução...


               Achei, há quatros anos, numa livraria de livros usados, popular “sebão”, em São Paulo, a obra “Dom Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes. Já havia lido na adolescência um exemplar do mesmo livro, porém tratava-se de uma edição compacta, quase um resumo. Este, ao contrário, era robusto e traduzido, com certeza, muito antes daquele.
             Toda releitura nos leva a achados surpreendentes e desta vez me deparei com a palavra “donaire”, por mim completamente desconhecida. Achei-a fantástica!
             Tive que consultar vários dicionários para encontrá-la e quando consegui, achei o seu significado muito mais surpreendente. Com ela, naquele velho dicionário, encontrei outros verbetes também, nos dias de hoje, quase desconhecidos.
              Bom, com eles veio-me a inspiração para o presente conto que tem como cenário a Europa do século XVI e as intrigas da época...   


DONAIRE

I

                 O índio abobadou-se por longas horas, contrastava-se com o fidalgo que ao seu lado, irascivelmente, enchia de injúrias os negrinhos que brincavam e cheios de indolências fingiam não o ouvir.
           Dom Clemente de Àvis bolinava-se agora e, espreguiçando-se, tratava desse modo de afastar a pasmaceira daquela tarde dolente que o mar lambia preguiçoso, quietando, enfim, com a sua ira, cansado de ralhar com as crianças. Abriu as braguilhas e pôs a se coçar avidamente. Tentou depois, quando a única negrinha do grupo se aproximou, colocá-la no colo, onde seu falo apresentava intumescido. O olhar de ódio do mais velho dos meninos o fez desistir da empreitada. O índio, deliciado, não conseguia conter o riso.
                Dom Clemente, de súbito, soergueu-se nos seus cento e trinta quilos: a contemplação do mar que se avolumava azul à sua frente, o fez lembrar da nave que já se avizinhava do porto e que traria a bordo uma encomenda da Escócia. Como se tratava de contrabando que viajara em nau francesa, por engano, até Portugal, convinha recebê-la bem além da embocadura do Tejo, pois, dificilmente se atreveriam a atracar nos cais.


II

             Os remos do barco venciam, pelas mãos vigorosas de Juí, as águas pesadas do grande rio. A imobilidade do barco era tanto ilusória quanto traiçoeira e o esforço titânico do índio só era perceptível nos seus músculos tensos e no suor que empapava seus cabelos. Remando quase sempre contra a correnteza, o navio, tão perto, parecia nunca chegar.
                Labuta em vão. Alegaram que o francês não se encontrava na nau. A frustração de Dom Clemente traduziu-se em impropérios ininteligíveis. Na verdade, o francês preferiu não discutir o assunto na frente da tripulação já bastante apreensiva por encontrar-se em águas não amigas e, muito menos, perto dos olhos cúmplices e ávidos do capitão.
                Um negro passou-lhe um bilhete assinado por Pierre de Petit, onde este sugeria um encontro para o dia seguinte, numa estalagem a poucas milhas do porto. Lá, frisava o francês, discutiremos nosso negócio.
              _ Os negrinhos não me servem de nada e a "mucambinha" é para mim um estorvo – resmungava o fidalgo, no barco que retornava – Para ele, com certeza, será uma festa!
             No rosto do índio cravou-se o indefinível. Talvez por seu comportamento servil para com o fidalgo, recusava-se a exprimir toda a sua repugnância. Manteve-se calado por todo o resto do percurso. Aguentava a fanfarronice do lusitano como se não a ouvisse; mirava as águas com enfado, os olhos perdidos em alguma margem inalcançável.


III
        
        Já fazia mais de quatro horas que os dois homens tagarelavam, a mesa apinhada de comida e bebida, sem abordarem o assunto que os trouxe àquela estalagem.  Primeiro, o francês alegou que o recinto estava muito cheio e ponderou:
            __ Tenha calma, Dom Clemente; vamos bebericar alguma coisa. Dizem que o vinho daqui é excelente! Gostaria de prová-lo. E vamos comer, estou a morrer de fome. Não se preocupe com a despesa: eu pago.
             Depois apareceram amigos e conhecidos do fidalgo e este, cedendo à prolixidade do francês em seu português carregado de sotaque, deixou de se preocupar com as horas. Só quando sentiu os olhos turvados e percebeu serem os únicos no recinto, inquiriu quase que suplicante a Pierre de Petit:
           __ E, então, caro Pierre, podemos conversar sobre o que nos interessa?
           __ É, de fato já passou da hora. Bem... Garanto-lhe, Dom Clemente, o produto é legítimo Glenfiddich. Poderá conferir lá na nave: são 10 caixas com 12 garrafas intocadas, acomodadas em madeira de lei, em gavetas acolchoadas em camurça vermelha. Valem uma fortuna! O senhor não imagina os riscos que corro aqui em Lisboa! Para não chamar a atenção coloquei os engradados em caixas rústicas, daquelas onde se encaixotam bacalhau e gravei na primeira delas, em cima: “Donaire de Petit”. É só procurar pelo negro Timóteo; já o avisei que o senhor irá buscar a mercadoria. E o senhor, o que me oferece?
            “Donaire” – pensou Dom Clemente – “deve ser algum nome afrancesado. Vou sugerir à minha filha que está prestes a ser mãe”. Teria uma neta, ele tinha certeza disso! Lembrar-se-ia de anotar esse nome em sua caderneta de recados. E, dirigindo-se ao francês:
          __ Caro Pierre de Petit, - respondeu com ares de importância – ofereço-lhe três negrinhos ainda jovens... O mais velho ainda não completou 18 anos, e uma negrinha de treze, que lhe dará uma fogosa mucama. Nenhum deles passou por maus tratos. O senhor poderá também conferir... Mercadorias de primeira.
           O índio, que se mantinha em pé ao lado dos comensais que agora riam ébrios de vinho e pelo jeito não se levantariam da mesa tão cedo, também sorriu enquanto matutava: “Seria bom procurar o tal Timóteo”. Cochichou ao lusitano:
         __ E o nosso trato, continua valendo?                                                      
          À indagação de Juí, Dom Clemente, sem pressa de responder, fitando algum ponto perdido no espaço e procurando manter-se com alguma lucidez, pois sua mente já dava sinais de entorpecimento, recordou-se da promessa, cinicamente feita, de dar-lhe a liberdade se este lhe arrumasse um escravo que o substituísse. O índio foi além e trouxe-lhe os quatros, de cuja origem Dom Clemente jamais perguntou, apenas comentou sarcástico:
       __ Quatro crianças? Está querendo que eu me atole em dívidas para alimentá-las?
       Acabou impingindo ao índio mais três anos, sob o pretexto que teria que esperar os negrinhos crescerem para poder lhe substituir. Juí assentiu a contragosto, mas impôs condições: Dom Clemente teria que facilitar sua empreitada além-mar, garantindo seu sustento na viagem e esse acordo estaria rompido se, antes disso, Dom Clemente se desfizesse dos negros.
         Dom Clemente fitou novamente o índio e admitiu que, com o tempo, havia se afeiçoado ao selvagem. Dar-lhe a liberdade era o mínimo que poderia fazer por aquele serviçal que desde que fora comprado no mercado de Lisboa, nunca lhe dera transtorno algum e principalmente agora que a Igreja, capitaneada pelos Jesuítas, esboçava sanções àqueles que mantivessem selvagens brasileiros em cativeiro.
          __ Tem minha palavra. Amanhã à tardinha partirá um cargueiro espanhol rumo ao Brasil e está arrumado para o seu embarque. Antes, porém, iremos buscar a minha encomenda. _E, voltando-se para Pierre de Petit: _ Como faremos à transação?
           O francês, que já cochilava copiosamente, bocejou várias vezes até tomar consciência de que estava acordado e que indagavam alguma coisa.
           __ Como será a troca? – insistiu Dom Clemente, com raiva.
           __ Logo que escurecer, amanhã, leve os meninos até nossa embarcação. Assim que subirem a bordo, Timóteo liberará as caixas, sem problema algum – respondeu e apontando para o índio, sem o olhar: - Peça a seu criado que me conduza até os meus aposentos; já é tarde e estou exausto!
           Os olhos miúdos do lusitano não conseguiam mais se manter abertos. Imagens cambaleantes voltaram a tomar conta de sua mente. Quis levantar para se despedir do outro, mas literalmente, estatelou-se sobre a mesa.
                                                    

IV

            Dom Clemente se exasperava andando de um lado para outro pelo porto, na tarde já avermelhada de crepúsculo. A bebedeira da noite anterior ainda latejava em sua cabeça. Sentia-se fraco e ainda bastante enjoado. Que bela ressaca, sim senhor! Há mais de duas horas esperava por Juí que fora levar os escravos até o navio e deveria ter já retornado com suas caixas. A conversa tida com Pierre na estalagem deixou-o receoso de voltar à nau francesa e com certeza passaria mal se embarcasse enjoado como estava, no barco com Juí; além disso, as águas estavam mais revoltas que de costume e seria uma temeridade enfrentá-la num pequeno barco tão lotado. Juí, solícito, prontificou-se a fazer tudo sozinho.
           O fidalgo teve que impacientar-se por mais uma hora até ver ao longe o negro Timóteo vindo em sua direção, a gesticular! Dom Clemente enfim, mais aliviado, encaminhou ao encontro do recém-chegado, sem disfarçar sua estranheza ao vê-lo. “Onde se metera o selvagem?” – pensava.                                                     
        __ Dom Clemente, Dom Clemente? Vim procurar o Senhor Petit. Sabe se ele ainda se encontra na estalagem? Nossa nau foi apreendida, retida pela polícia portuária. E procuram o Sr. Pierre.
         __ E Juí? – perguntou, sem responder a Timóteo – por que não veio contigo? Detiveram-no, também?
        __ Não, meu senhor, ele conseguiu se safar antes que os homens chegassem. Deve ter escapulido para a nave espanhola com os meninos.
         Dom Clemente sentiu-se nocauteado. Seus olhos crisparam de estupefação e raiva. “Maldito selvagem” – resmungou.
        __ Preciso me apresar – continuou Timóteo – Olhe! Os homens estão chegando – apontou em direção aos cais e saiu em disparada – Tenho que avisar o Sr. Pierre.
              Antes que pensasse também em fugir, Dom Clemente foi abordado por um dos oficiais da alfândega:
         __ Dom Clemente! – gritaram às suas costas – Espere!
         O fidalgo gelou, sentindo suas pernas bambearem, mas o oficial continuou:
         __ Receba, através de nós, as graças de sua Majestade Felipe II, soberano de Espanha e Portugal! Graças ao aviso que recebemos do índio, seu criado, conseguimos deter os franceses antes que levantassem âncora.
          ­­­­__ Não sei o que dizer – suspirou Dom Clemente, entre aliviado e espavorido – Estou envaidecido... Mas, digam-me: Onde deixaram o índio?
          __ Partiu, como o senhor queria, a bordo do cargueiro espanhol. Ah! Pediu-nos que lhe agradecêssemos pelo donaire. Estava felicíssimo com os presentes.
         __ “Donaire!”, resmungou Dom Clemente. E eu sempre pensei que o selvagem fosse beócio.
                                                                                               
                                                                                                           José Araujo

sábado, 19 de março de 2011

DOMINGO

Na negritude piso
                       sob meus pés
Sinte
       pática rua vazia
Já é tarde noite verão
(no único bar aberto cerveja insípida
moscas quentes se expõem na vitrine-balcão).

Um dia
tu dirás que cai porque me empurrastes  na verdade  nunca
me consegui levantar dirás que fui levado ao desespero por
que não me ouvistes fizeste ouvidos moucos ao teu silêncio
em meu ser e desesperado  sentí a sua ausência de tua voz
o estalar desse silêncio repicou-me em estrondos assustado
em frêmito afastei-me
                                 aturdido.

Perambulam pirilampos na noite tépida
                                 bailam no ar
sem nenhuma claridade-lua.
Como queria que o amanhã fosse em ribombos.
Sobre meu corpo, em estilhaços, chorarias.
                                                   Enfim.

                                                            09/97  

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

SOBRE O ÓCIO



Segundo a Bíblia__ dita sagrada __ no Livro dos Reis, o rei Davi, por estar ocioso há vários dias em seu Palacete, possuiu a mulher de um general enquanto este se encontrava na frente da batalha e o manteve na guerra todas as outras vezes seguidas.
Segundo o Livro dos Upanixades, também sagrado, foi por viver em ócio que o deus Brama criou a mulher; teve com ela outra filha com quem gerou filhos que foram os semideuses que povoaram a Terra no início do mundo. Haja ócio!
Ambas as bíblias nos ensinam que o ócio é um vicio pecaminoso.
Independente da opinião ociosa dos deuses (Javé trabalhou seis dias, folgou no sétimo, aposentou-se e incumbiu o homem __ um único casal__ de povoar a Terra), o ócio é o pai da criatividade e dos avanços científicos, o que comprovam milhares de exemplos históricos. Mas para não interromper muito o meu ócio citarei só alguns: Isaac Newton estava esplendidamente descansando em baixo de uma macieira, quando a queda acidental do fruto deu-lhe a teoria da gravidade; Einstein, seu sucessor na Física, se trancava em seu quarto para poder pensar e numa dessas ociosidades descobriu o Princípio da Relatividade.
Enfim, acredito que todos os filósofos e pensadores, desde Sócrates (que teve preguiça até para escrever os seus pensamentos e se não fosse por seu discípulo Platão, ninguém saberia que ele, por pura letargia, deixou-se morrer por cicuta) até nossos dias, têm na ociosidade sua mais frutífera companheira. E como escreveu Gabriel Garcia Marques: “Não se esforces tanto; as melhores coisas acontecem quando menos se espera”.
Difícil é suportá-lo por todo dia. De fato é uma tarefa árdua!
   Cônscio de me faltar a sabedoria dos hindus e de não possuir a fertilidade pródiga  dos judeus, curto meu ócio, amadoristicamente, escrevendo.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Na Noite

A noite avança
    negra no asfalto molhado
Na multidão que se esfumaça
    busco o seu sorriso
    temo jamais vê-lo de novo
Sinto tua falta e dos tempos
     tão doces, distantes e tão presentes
     corrói-me cá dentro imaginá-los perdidos.
(Na boca da noite se perdem
      jovem saltitantes
      inocentes
      sensuais
      nos bares, lanchonetes e salões
      triviais lugares-comuns
      que outrora frequentávamos também).

Errei contigo. Com certeza
       por desejar-te tanto.
Agora (enquanto a chuva lava as calçadas
       e os carros
       impassíveis
       engolem lépidos a noite)
        penso se não te magoei
        com minha precipitação. (Irreverssivelmente?).
Onde os momentos
        esparsos
        tênues
        escassos e belos?

O copo de cerveja
         espera
          lábios que não sentirei mais.
(A garçonete me sorri.
Devolvo-lhe um sorriso amarelo.
Aos borbotões reparecem
           imberbes boêmios
           ávidos de dúvidas
           cheios de certezas
           alcoolácidossonhos e
           num átimo somem nos táxis
           nos onibus, nos morros).
Teu sorriso se esvai
           com as últimas estrelas.

O dia explode
           vermelho como hecatombe.
Desfaz-se em pó
           os últimos vestigios de esperança.
Estou só
           impotente diante de um copo
           vazio
           comiseradamente solidário.


01/97


quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

RETICÊNCIAS...

  

A minha intransigência com a vírgula__ falsa e fugidia__ é que ela nunca interrompe uma frase.
Muitas vezes a escamoteia; às vezes a sublima. Rebelde sem causa nunca se satisfaz, intrometendo-se em tudo quanto é texto.  Ela se faz nas esquivas... Aborrece-nos com suas dúvidas e inquietações.
Porém, seu primo, o ponto-e-vírgula, é mais conciso, porém sua dubiedade sempre o contradiz (e poucos sabem usá-lo).
Minha professora do ginásio __ e aqui mereceria um parênteses__ ficou toda sem graça quando perguntei quando deveria usá-lo em minha redação.
E mata, se o deixarem, o introdutório dois-pontos.
Este sempre solícito e cerimonioso, ao contrário do outro, não é supérfluo: pode substitui-lo e também, o parêntese e o duplo travessão.
Finalizando: o ponto final, por sua de finitude, sempre me surpreendeu com sua empáfia e determinação. Deixou aos seus irmãos, a refletiva interrogação e a dadivosa e exuberante exclamação, a tarefa de completá-lo. Mas por causa dele, por teimosia ou perspicácia, nunca abdiquei das reticências...