quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Uma Elegia ao Paraíso Perdido


Um ode a Sigmund Freud,

a Karl Marx, Nietszche e a Charlie Darwin

que puseram abaixo toda superstição, 

toda crença e misticismo!

Um ode a Copérnico,

Johannes Kepler, Galileo Galilei e a I.Newton

que desvendaram o Universo, 

deslocaram a Terra e saudaram o Sol!

Um ode a Faraday, 

Edwin Hobble, Max Planck e a Albert Einstein

que revelaram a Luz 

e as partículas no turbilhão do Big bang!

Um ode a Carl Sagan, 

Stephen Hawking e Higgs entre tantos

que provaram o acerto de todos! 

Big bang! Big bang! Big bang!

Não houve criação, 

nem pensamento, nem verbo,

só combustão cósmica!

Somos filhos das estrelas! 

Big bang! Big bang! Big bang!

Filhos da energia expandida 

de milhões de galáxias 

com suas bilhões de estrelas...

que morreram por nós! 

Big bang!  Big bang! Big bang!


Um bom 2017 para todos nós!



sábado, 17 de dezembro de 2016

O Garoto

_Quero vê meu pai "trabaia"! Quero vê meu pai "trabaia!"”. O garotinho gritava agarrado à saia da mãe. Gritava não em tom de exigência, mas de incontida alegria.
Não devia ter mais de três aninhos. O rapaz corou um pouquinho; vergonha, talvez, por perceber que a atenção de todos voltava-se para ele.
Enquanto se desembaraçava do avental, disfarçou saindo detrás do balcão e chamou timidamente a mulher para um canto do supermercado.
O garoto insistia: “Deixa, pai, deixa”, suplicava, olhando tudo maravilhado. “Não pode filho. Não deixam entrar lá. Fique quietinho, tá?”_ murmurou a mulher. O menino, então, contrariado, seguiu a mãe até o local indicado pelo jovem padeiro, levando consigo o cheiro de sabonete. Suas roupinhas, uma camiseta listrada, um short vermelho, tênis marrons; tudo já bem surrados, também cheiravam a coisas limpas, recém-lavadas.
Poder-se-ia contar sobre essa cena uma história a respeito desse rapaz que abandonara por instantes o balcão e fora recepcionar, entre alegre e vexado, a sua pequena família. Talvez mais uma história entre tantas de uma família vinda do nordeste, cujo marido encontrara ali, como padeiro, o primeiro emprego na grande metrópole e neste instante, longe dos olhos alheios, cautelosamente, entregava à mulher um papelote, com certeza, dinheiro de seu primeiro salário.
Poderíamos escrever páginas e páginas de vida com sofrimentos, muitas esperanças e pequenas alegrias. Poderíamos, sim, mas não seria necessário: os olhinhos cheios de felicidade do menino, já contavam tudo.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

POEMA NU


eu escrevo
poema de vidro
salpico sal onde 
o doce é o óbvio

se risco em feridas vivas
das carnes quentes
é porque transpiro
sons de ventos ocos

nas dunas estafantes 
de areias ardentes
sufocando-me em gemidos
de frementes ais

lanço-me acima das trevas
das opacas brumas
salivando gotas puras
de êxtase e torpor

meu poema fere
a pele, a película
dos nervos tensionados
e mostra-se nu. 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Meu Tempo VII - Velho Lima

A luta do Velho Lima  e a Mogi provinciana de Paulo Francis


              As ruas molhadas, onde úmidos escorregam pés descalços, são as ruas que nutriam essa cidade litorânea de vida, comércio e contrabando. Andarilhos e pescadores não tinham ideia que outros as regavam também de sangue que tingiriam as águas de seu mar, a partir do ano de 1969.
                   As muretas que margeiam os cais de Santos e dão a impressão que cercavam a cidade contam histórias de um tempo de infâmia e horror. Em direção aos navios que abasteciam o burburinho de passos e vozes, camburões imundos, com bancos empapados de sangue, iam abastecer de cadáveres as lanchas e os navios que desovariam os corpos mutilados no mar aberto à centenas de milhas dali. Das vítimas dessa carnificina _sacramentado pelo AI – 5, em 13 de dezembro de 68_ fez parte um lusitano , codinome Leal, até hoje não identificado, que anos atrás em 1950, desembarcara no Brasil e três anos depois estaria em Mogi das Cruzes para organizar o Partidão e recrutar militantes nos sindicatos da região. Leal foi com certeza um dos primeiros a tornar-se mártir da Redentora . Depois dele as estatísticas desse horror teria seu número elevado à centenas, todos taxados como desaparecidos, por todos os cantos do Brasil. Segundo o livro "Brasil, nunca mais", foram 125, muitos enterrados em covas clandestinas. Dos desovados no mar não existem estimativas.

"Corações sujos":
                 Uma reportagem publicada no Diário de Mogi (agosto de 2003)_ e revela o quanto foi negligenciada (ou ocultado) o ativismo dos sindicalistas mogianos _ diz que de acordo com os arquivos do DOPS, havia sistemática interferência do Estado no cotidiano da cidade entre 1924 a 1983, quando delegados de polícia informavam, entre outras coisas, sobre as pessoas mais influentes e quem eram os comunistas de cada município. Nos livros publicados pelo historiador Walter Cruz Swessonn Júnior, citado na reportagem, não consta um único registro de prisão de militantes mogianos ou da região. E o mais interessante é que diz que "um dos poucos moradores de Mogi das Cruzes citados nominalmente nas pastas do arquivo do DOPS é o japonês Shozo Myasaki, preso em 24 de novembro de 1944" no episódio que ficou conhecido como "Corações Sujos", quando japoneses, que não concebiam a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial, assassinavam seus compatriotas que aceitavam o fato.
                  Para explicar melhor esse episódio transcrevo uma pequena parte da apresentação de capa do livro de Fernando de Morais "Corações Sujos", escrita por Hélio de Almeida: "Com a rendição do Japão às forças aliadas, em agosto de 1945, a Segunda Guerra Mundial chegara ao fim. Do outro lado do planeta, em São Paulo, nascia uma organização secreta japonesa, a Sindo Renmei_ ou Liga dos Caminho dos Súditos . Para seus seguidores , a notícia da rendição era uma fraude, um golpe de propaganda aliada para quebrar o orgulho dos japoneses em todo mundo ...de um lado "os vitoristas" apoiados por 80% da comunidade japonesa no Brasil (na época calculada em 200 mil), de outro "derrotistas" apelidados de "corações sujos" e que deviam ser eliminados." 
                    Para a Sindo Renmei o Japão e seu Imperador, venerado como um deus, jamais poderiam ser derrotados ou todos eles estariam mortos. Pelo que se pode constatar a prisão de Shozo Myasaki, só poderia ter ocorrido em 1947_ e não em 44 como consta na reportagem_ quando foram presos pelo DOPS 30 mil suspeitos de crimes e desses 381 foram condenados a penas de um a trinta anos. Em 1944, portanto, a tal organização ainda não existia. O imperador Hiroíto proclamou a sua não divindade em 1 de agosto de 1946, segundo Fernando de Morais.
                  A história de Lima e os mogianos presos nos anos 60/70, revelam a outra face da história, onde muitos mogianos foram detidos e presos por serem comunistas. Embora não haja, de fato, desaparecidos na região, a não ser Leal, um ofício do delegado Claudio T F de Oliveira, datado de 11/03/1970, revela os nomes dos condenados: Manoel Cândido do Nascimento; Josué Ribas de Morais; Realino Rodrigues de Oliveira; Antonio Peres e Manoel Benedito de Lima, "devidamente escoltados para o Presídio Tiradentes". Presos ficariam detidos sob ameaças por 45 dias. Esses fatos e muitos outros foram simplesmente ignorados pela reportagem local ou não foram devidamente investigados. 

A Mogi provinciana de Paulo Francis:
             Acho, então, necessário, aproveitando a oportunidade de resgatar e corrigir um pouco da história de minha cidade, avançar rapidamente pelo texto, fruto de minhas pesquisas, que retrata como era a vida da cidade, tirando o véu sombrio de suas elites, as mesmas que levaram Lima a prisão e ao exílio forçado. É quase um resumo, bem sucinto, lógico, de tudo aquilo que consegui colher no DOPS e na imprensa da época.
               Paulo Francis, jornalista e cronista da “Folha de São Paulo”, falecido em 1988, escreveu um artigo em 1984 que versava sobre o conservadorismo americano e citava Mogi das Cruzes como exemplo de uma cidade brasileira provinciana. Trotskista convertido ao capitalismo, odiado pela esquerda e também crítico da direita, rotulou assim que nós, naturais da terra, conviveríamos ainda com tal provincianismo por mais dezoito anos. Não consegui descobrir sua métrica para essa previsão. Em todo caso acredito que provincianismo por si só não explique o atraso político-cultural da cidade _que em certos aspectos ainda hoje persiste_  e nem era esse o teor do artigo de Francis. Mas era fato, nos anos 60, a ligação entre as autoridades policiais e a elite industrial da cidade; ligação essa recheada do mais chulo “vassalismo” que extrapolava inclusive o coronelismo regional.
              O certo é que a mando dos donos das indústrias mogianas, delegados de polícia prendiam todos aqueles que eles entendiam como comunistas, muito antes que tal arbítrio fosse institucionalizado pelos militares da Redentora; e desde 1957, época do primeiro registro que encontrei no DOPS que citavam nominalmente os sindicalistas da região e suas atividades, eles foram cadastrados e vigiados como elementos perigosos. Na greve geral de 1962, por exemplo, não houve repressão praticamente em nenhum estado da federação; na região, contudo, o movimento foi sufocado na véspera e seus líderes detidos por quarenta e oito horas, entre eles Lima, que na época , era membro do Conselho de Representantes da Federação de Trabalhadores nas Industrias Metalúrgicas. O noticiário local do único diário da cidade, O Diário de Mogi, viria no dia seguinte com a seguinte manchete: "Apesar da Greve, nossa cidade amanheceu calma", sem nenhuma referência aos sindicalistas presos. O que comprovaria a avaliação de Paulo Francis, feita vinte anos depois. 
                As ligações da elite mogiana com as autoridades não se restringiam apenas a policia, também estendia suas teias ao Legislativo local, recrutando agentes junto aos vereadores que se infiltravam nos sindicatos para solapar suas mobilizações antes mesmo que essas viessem a eclodir. Tal "dedo-durismo" foi responsável pela demissão de dezenas de trabalhadores ligados aos sindicatos locais, principalmente àqueles que tentassem montar chapa de oposição no próprio sindicato. É verdade que tal prática não era exclusividade de Mogi das Cruzes, nem tampouco da região, mas aqui o requinte dessa ligação era tanta que empresários mogianos chegaram a comparecer espontaneamente ao DOPS para inocentar pelo menos um desses agentes, Ivan Siqueira*, preso como agitador e filo-comunista (expressão usada nos fichários do DOPS, quando se referia aos sindicalistas). Na ocasião, segundo boletim do DOPS, acompanhado por Waldemar Costa Filho.**
                 Pelo menos 25 trabalhadores, entre eles 14 mogianos, foram indiciados por crimes previstos na Lei de Segurança Nacional em 29 de março de 1965, denunciados como comunistas, entre eles, Manoel Benedito de Lima. Após a efervescência do sindicalismo pré-64, que agitou Mogi e região, Lima é cassado como dirigente sindical nas primeiras horas de dezembro de 64 e acabaria preso por oito meses, anos mais tarde, em 1968. Em 1970 foi novamente detido no Presídio Tiradentes em razão de um assalto a banco ocorrido na cidade executado pela guerrilha, embora ele não fosse partícipe desse ato. Depois de quarenta e cinco dias foi solto. Sem conseguir arrumar um novo emprego, pois sua condição o impedia de qualquer emprego formal,  acabou tornando-se sorveteiro em portas de escolas. Seu filho relatou que ele fazia, palitos premiados para incentivar a venda. Deve ter sido um inovador neste tipo de comércio. Só foi anistiado em 1979. 

  • Ivan Nunes Siqueira: Um dos vereadores que mais ocupou uma cadeira na Câmara Municipal de Mogi das Cruzes (44 anos – 1958 a 2002). Radialista polêmico foi um dos que em 1962 encabeçou um pedido de cassação do então prefeito Rodolpho Jungers. Defendeu inúmeras greves, inclusive do funcionalismo municipal em 1961. Esse jovem, que se infiltrava nos sindicatos como informante dos empresários, classificado como agitador e filo-comunista no DEOPS, tornou-se o principal delator dos sindicalistas e responsável pela demissão de dezenas de trabalhadores e denunciando , junto ao DEOPS mais de 14 operários como comunistas e revelando as células da esquerda na região, juntamente com Waldemar Costa Filho. Seus nomes constam no cadastro do Departamento, abaixo daqueles que foram condenados com base na Lei de Segurança Nacional;
  • Waldemar Costa Filho: Prefeito da cidade por quatro mandatos era conhecido na década de 60 como “feitor” da COSIM (Companhia Siderúrgica de Mogi das Cruzes), onde trabalhava como Ghefe de Seção. Foi responsável pelas demissões de grevistas e componentes de chapa de oposição, foi acompanhante de Ivan na delação ao DEOPS. 

sábado, 3 de dezembro de 2016

Por que escrevo


sou um vagabundo
das letras
roubo-as,
 
as incorporo
tento expandi-las, enfim

livros, li-os às centenas
e quase tudo que escrevo e falo
foi neles que colhi
é como a vida que exalo
que é parte de muitas
que passaram antes de mim
com muito mais leveza e graça

ser consciente
que tudo que escrevo
e penso neste exato momento
foi já pensado e escrito
com muito mais propriedade
e emoção
é toda a a minha desgraça
por que ainda escrevo, então?

por inércia
puro vislumbre
catarse
idílica fascinação.
                                                          José Araujo


quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Meu tempo VI - Prestes


ESQUERDA VOLVER

          Anos atrás fiz 50 anos e comecei a dar vazão a alguns detalhes que com o tempo nos apegamos e as datas que se tornaram  para nós tão especiais. O tempo torna-nos nostálgico com o seu passado cheio de cheiros, odores e imagens e muitas vezes romanceamos demais coisas que não teve tanta importância assim ou não damos o real valor a outras que de fato mereciam. Li em um dos livros de Umberto Eco que ele se lamentava de ser muito jovem nos anos quarenta e não viver a guerra que abalou o planeta e, anos depois, em 1968, o seu lamento era por ser velho demais e não ter participado ativamente das revoluções que sacudiram a França e o resto do mundo. Eu, ao contrário, era jovem demais em 1968 e só me senti inscrito na história de militância política no final dos anos 70 _ um pouco antes da fundação do PT (Partido dos Trabalhadores -1981)_  já nos estertores do golpe militar de 64, que forjaram os heróis da resistência. Em 1969, em pleno AI-5, dava-me ao luxo de me encantar com as maquiagens televisivas da chegada do homem à Lua e depois com o patriotismo da minha primeira copa do mundo, onde o Brasil, verde-amarelo, sagrar-se-ia tricampeão de futebol. (Na casa de vizinhos e parentes, claro, pois na minha ainda não chegara a televisão). Só alguns anos mais tarde, na minha militância tardia, foi que comecei a cultuar meus primeiros heróis: Che Guevara, Fidel Castro, Charlie Chaplin, Pablo Neruda, Octávio Paz e depois James Joplin, Bob Dylan e depois Chico Buarque, Lula, Paulo Freire entre outros e outros depois...

O CAVALEIRO DA ESPERANÇA

           A vida é uma eterna vigília, só adormecemos porque a fadiga nos envolve e teremos que acordar amanhã anestesiados ainda por sonhos que nunca nos abandonarão, a não ser quando a própria vida nos abandonar. Cada dia é uma incógnita que teremos que desvendar, mesmo que acabe por se perder na pasmaceira cotidiana das coisas sem muito sentido. Às vezes, porém, somos surpreendidos pelo inusitado: Na manhã de sete de março, com chuva fina _ coisa rara neste verão de 2010, no Rio de Janeiro _ sai de casa a caminhar. Sem exatamente saber para aonde ir e me dirigi ao cemitério de São João Batista, pensando_ movido por uma tênue curiosidade, em conhecer túmulos de muitas figuras históricas, que sabia lá existir_ caminhei em estreitas alamedas, procurando aleatoriamente reconhecer algum nome, alguma lápide famosa. Como aqueles que agora jazem naquele campo, nós também fazemos dos emaranhados da vida o fio condutor que nos encaminhará para o nosso próprio desfecho, raramente feliz. Traçamos assim, quase sempre ao acaso _ na trança dúbia e incerta de um diálogo impossível conosco mesmo_ os mesmos fios que nos conduzirão pela vida. Algumas imagens dessas teias que nos enrolam e nos paralisam, ajudam-nos a pinçar a dor e ansiedade de fatos irrecuperáveis. Assim pensando deparei-me com um aglomerado de homens e mulheres _ a maioria idosa que ornavam de flores (as rosas vermelhas que ele sempre cultivou) um túmulo modesto.            Tomado de curiosidade, deles me aproximei e para deleite meu, como que meus pensamentos tivessem sido ouvidos pelas franjas do tempo, essas pessoas prestavam homenagem a Luís Carlos Prestes, o “Cavaleiro da Esperança”, morto há exatos vinte anos. Na fina chuva que varria o cemitério, as janelas do tempo de repente para mim se abriram e pude de novo ver a figura já envergada do velho Prestes a contar mais uma vez, nos vários comícios que assisti sobre a Coluna Prestes, e de toda essa epopeia que atravessou o Brasil, confundindo-se com a sua própria história de luta e resistência que se prolongou por mais de cinco décadas. Esse cenário me lavou o espirito rebelde  excluso aqui no Rio de Janeiro e fiquei como que extasiado com a singela homenagem prestada quase que anonimamente a um dos grandes heróis da História e da esquerda brasileira.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

AUTÓPSIA


Retalha-se a carne
como se fossem
fibras mortas.
O sangue
que escorre dos cortes
vibra
denunciando que  há vida
no corpo disforme e inerte.
A carne branca
lívida
contrasta com as pulsações
débeis
mas insistentes
como se esperasse
o momento exato
para soerguer-se.
O corpo inanimado
se prestarmos bastante atenção
ainda se move.
...E respira.

( A vida microscópica beira à eternidade!)

20/11/03





sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Meu Tempo V - Espelhos

 ESPELHOS

É necessário ter certo zelo para escrever. A caligrafia, por exemplo, deve ser escrita com um mínimo de capricho e clareza. Principalmente na era da computação em que vivemos, onde escrever à mão virou requinte, quase um ritual sagrado. A escrita nos proporciona um deleite que a digitação nos nega. Uso “nós”, pois creio piamente não ser o único a não sucumbir diante da tela fria do computador. Prefiro ainda, como Mario Quintana, a mesa de um bar ou a de um canto solitário de mim mesmo, sentindo o calor da caneta nas mãos e confesso arrependido que, por desleixo ou apego ao micro, deixei de escrever e um dia notei que a minha caligrafia tinha se deteriorado. Não que minha letra alguma vez foi bela, nem impecável, longe disso, sempre foram garranchos disparados de meus dedos deselegantes, porém sensíveis. Mas, aí percebi que mais que as letras, eram meu cérebro e meu coração que aos poucos se atrofiavam. O pensar a escrita estava desaparecendo, acuado nos emaranhados de meus e-mails, maus escritos e gélidos. Voltei a escrever em papel, lento e cautelosamente, por sentir que só neles poderia descrever que essa vida, passada tão rápida no ritmo endoidecido dos anos, não deixa-nos de acumular de experiências, histórias e vivências.
Deslocando-me de novo no tempo para que eu possa apurar, do lento destilar da vida, os fatos que me fizeram e com os  olhos perdidos numa rodovia que se estende tortuosa para além desse meu olhar,  enquanto sorvo lentamente uma cerveja, procuro as imagens vivas_ que vivo me mantém_ nas árvores súplicas das estradas. Vislumbro as paisagens de outrora sem o cheiro do asfalto, dos combustíveis e do dióxido de carbono que nesse tempo de destruição, inclemente, mata-as aos poucos e consigo resgatar, para além do caos que as deterioram o florir das ramagens nas taipas e nos telhados de uma velha casa à beira da estrada, que em seu madeiramento gasto e carcomido o acolhe, como se quisesse reafirmar que só por mim elas se refazem, essa paisagem que se repete ao longo da estrada, refazendo-se e se multiplicando como se quisesse me surpreender, levando-me a pensar em quantas vezes nos surpreendemos com a repetição de fatos _ nesse caso, quase nada assimilamos dos erros anteriores; lamentamos, depois, não tê-los evitados,_ pois a vida quase sempre é tão repetitiva e banal que coisas relevantes acabam passando despercebidas como leituras mal lidas de algum livro que só perceberemos de sua singeleza com o olhar do amanhã. Quando, porém, nos vemos em relatos daqueles que admiramos, embora sem razão ou alguma consequência disso_ como se tal fato de alguma maneira nos colocasse no patamar deles_ ficamos por assim dizer, envaidecidos. Pelo menos três instantes eu guardo sobre isso: primeiro Umberto Eco em “O que creem os que não creem”, quando diz ter nascido católico e levou boa parte de sua vida, para se desapegar de sua religiosidade; depois, Florestan Fernandes quando relata sua infância como engraxate e as estórias que viveu ali de companheiros até mais pobres que ele e como apesar de todas as vicissitudes da vida conseguiu sobrepujar-se através da leitura e dos estudos e por ultimo, Mário Quintana ao falar de suas passagens por bares e de escrever em suas mesas (no seu tempo, mesas de mármore) os seus poemas para no dia seguinte melhorá-los ou, simplesmente descartá-los. Pequenos fatos como esses perpassaram a minha vida e por mais fúteis que foram fizeram parte de mim e é quase divino vê-los descritos por tão admiradas figuras. Como Florestan Fernandes, convivi com engraxates, embora não fosse um deles, mais corria para com eles para brincar nos intervalos das minhas missas diárias, que assistia como coroinha. Humildes, não conseguiam vislumbrar em suas vidas, salas de aulas. Como Umberto Eco fui católico e me livrar das crenças foi um ritual longo e penoso e como ele acho que “a ética de um leigo que não crê na recompensa divina, tem como pressupostos sua própria condição humana e seu respeito a sim mesma e a defesa à dignidade leva cada homem à defesa de outro” e nesse sentido, qualquer religiosidade é plenamente desnecessária. Escondi-me, por fim, como Mario Quintana, nos bares da vida, escorregando minha caneta nos guardanapos de suas mesas e quase tudo que escrevi ou pelo menos boa parte dele, sairia dali. Essas recordações extasiam-me agora e minhas meditações só são parcialmente interrompidas pelo gargalhar das pessoas, que como eu,  purificam suas vidas numa mesa de bar e tentam assim esquecer, um pouco, os aborrecimentos cotidianos.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Meu tempo III - A finitude da Vida


(Subtraída de Meu Tempo)


Fazemos pequenos retratos de nosso passado e um dos quais eu até hoje guardo comigo é dos telhados que avistava de minha rua. Incrustada em morros envoltos por serras, deixava o centro da cidade com seus casarões antigos de taipas ou de enormes _ e mais antigos ainda _ tijolos de barro a se estender aos seus pés, deixando sobressair majestosos telhados que sublimavam, ao sol reluzente, as estreitas ruas de paralelepípedos. Eu adorava caminhar sozinho, percorrendo-as vazias de fim-de-semana, em caminhadas difíceis de terminar. Sempre descobria alguma coisa ainda não notada, alguma beleza a minha espera. Ou evocava, dos cheiros ainda recentes, reminiscências de meus poucos anos. Sabemos que tudo é naturalmente novidade para uma criança em crescimento e pouco nos recordamos de como foi se processando em nós esse aprendizado febril e ininterrupto. Espanta-me hoje, o quando esse aprendizado se processa na velocidade absurda dos computadores. Com certeza comendo ruas e tornando cada vez mais fugazes as frágeis recordações. (Não terão os futuros adultos, na mente, apenas a memória dos “facebooks” ?) De qualquer maneira, em algum momento, para todo jovem tudo é a primeira vez, tudo deslumbramento e espanto, tudo vontade de se descobrir e de repente, damo-nos espantados com o inusitado. Com a descoberta de nosso corpo, redescobrimos o mundo em nossa volta: novos amigos, gostos, novas paisagens, novos costumes e com eles emoções antes estranhas como o sexo e a cumplicidade com o trágico na vida, o sentimento da morte e da fatalidade. Coisas que não faziam parte ainda de nossos temores.
Ao tomarmos consciência da finitude da vida a morte fica cada vez mais difícil de ser assimilada. Até certa idade a morte é incompreensível e, portanto, um sentimento estranho, mas irrelevante. De repente ela é real e presente. Por exemplo, da morte de meu avô paterno só me recordo de sua lenta agonia que me incomodou tanto... e eu tinha apenas três anos de idade. Anos depois, quando tudo aquilo só fazia parte de meus sonhos, foi a fedentina do ambiente _formal e álcool misturado ao cheiro das flores_ o que ainda trago na memória do primeiro velório que participei e certa repugnância, devida talvez as circunstâncias da morte de meu tio. Repugnância que não me furtou, mesmo na juventude, de ir a outros velórios ( mesmo porque nem todo cadáver está, ainda quando velado, em estado tão próximo da decomposição _ pelo menos eu o julguei assim) _ ainda por acreditar na vida após a morte, mas mais por respeito ao morto e aos seus familiares. A família ainda é para mim, mesmo sem a opressão de antigamente, uma referência marcante e o ritual da última despedida, sei lá por quais sentimentalismos, ainda me atraí. Porém é ainda esse cheiro que trago na lembrança associado a um ambiente escuro emoldurado por fotografias de falecidos e imagens de santos, numa sala sombria e lúgubre, palco de outros inúmeros funerais. Pois era esse o limiar entre esse mundo sombrio e o outro, manifestando-se assim ainda mais fantasmagórico e aterrador. Nesse quadro a passagem desta vida parecia pesarosa e triste, nada que lembrasse algo empíreo ou celestial _ promessa da Santa Igreja_ para aonde nossas almas seriam transladadas depois de nosso martírio terreno. Minha avó morreu não muito tempo depois e a compreensão do fato, deixou-me estupefato. Mas só, oito anos depois, descobri o outro lado da morte num funeral de uma menina que estudou comigo a quinta ou sexta série do ginásio e por quem tinha me apegado tanto que foi, com certeza, minha primeira e única paixão juvenil.
Vítima de um acidente automobilístico por qual tanto se culpou sua mãe, que dirigia o veículo, Olguinha morreu às vésperas de seu aniversário de 14 anos. Recordo-me de ter corrido a sua casa assim que soube da notícia, sem mesmo avisar meus pais para aonde e por que ia tão aflito e já tarde da  noite. Na verdade era para certificar-me daquele absurdo que me desesperava e que eu não conseguia acreditar; tinha que refutá-lo, pois relutava... E quanto tempo eu relutei, depois, em aceitar. A morte é inevitável, mas nem por isso fácil de ser aceita e no meu caso, essa sensação de finitude e aniquilamento, antes jamais sentida, foi-me terrivelmente cruel, pondo-me de frente a uma perda irreversível. Tanto assim que em lembrança a ela, pela primeira vez na minha vida, conseguiria escrever mais de três páginas de uma prosa manuscrita cheia de dor e saudade e da qual até hoje me arrependo por tê-la rasgado, com inúmeros poemas dessa mesma época, quando me julgando adulto, achei-os infantis.
Desta vez, para alívio e deslumbramento meu, o ambiente não tinha aquele ar nauseabundo e sim, um cheiro suave de incenso que nem de longe me lembrava àqueles das procissões e ao invés de cruzes e imagens de santos católicos, ícones budistas. Hoje não acho mais nenhum velório aterrador, mas o contraste foi sensível e revelador. Primeiro por notar que o budismo não era a opção única naquela família: ela e sua mãe eram católicas e aceitavam conviver com os cultos orientais paternos; segundo por presenciar algo tão exótico e singular, onde a procura da paz do espírito e da transcendência se contrapunha à salvação da alma no cristianismo. E, por fim, por enxergar uma verdade possível em outros credos. A infalibilidade de minha religião quebrava-se no meu espírito de uma maneira irreparável e definitiva. Continuava cristão, mas meu horizonte se abria para salutares dúvidas e brindava-me com a leveza do mundo. A morte a partir de então teceria outras marcas em minha vida.

                                                            *

O ritmo de minha caneta torna-se febril, mas minha mente acha-se cada vez mais confusa; a única coisa que me impede de avançar é a covardia de me desnudar aos olhos censores de mim mesmo. Não consigo mais conter o fluxo que emerge voraz e incontinenti e ao mesmo tempo fugidio, daquilo que um dia eu fui. Rasgo mais vorazmente os registros inacabados de minhas memórias; seus pequenos pedaços se avolumam ao meu redor como se fossem escamas que abandonaram meu corpo deixando nele feridas que se recusam a cicatrizar. “Conhece-te a ti mesmo”, disse Sócrates por saber que não existe para o homem algo mais difícil. No caleidoscópio de nossa infância fica impossível macular com a verdade a nós mesmos e assim nos escondemos ou tentamos nos esquivar de tudo aquilo que nos incomoda e das lembranças que nos ferem a alma. As franjas que tecemos com o tempo sobre nós mesmos são apenas pálidas molduras, pouco sensíveis àquilo que realmente foi e deixa-nos ainda muito tempo depois, desarmado. E da meninice à adolescência o que consigo perscrutar, fora as pinceladas dadas, é um mundo que em mim, parecia sempre a se esboroar, abarrotando-me de tédio, vacilações e medo. É evidente que nem tudo na minha infância foi nauseabundo, havia também alegrias, através das amizades e das brincadeiras comuns da idade. Mas, paradoxalmente, como foram fugidias por terem sido, naqueles tempos, tão necessárias!


terça-feira, 1 de novembro de 2016

O Jardim



Sua casa sempre foi repleta de flores e todo tipo de folhagem. Havia um jardim, ao fundo dela, que tomava conta de todo quintal. Havia vasos: inúmeros deles espalhados pela varanda, pelos quartos, cozinha, sala, até nos banheiros. O cuidado com tudo isso praticamente tomava conta de todas as suas manhãs. Gerânios, camélias, orquídeas, azaleias, rosas, cravos, alecrins, comigo-ninguém-pode, espada-de–são-Jorge, bromélias, lírios... Podia não saber o nome científico de nenhuma delas, nem suas origens, nem suas famílias, nem mesmo como vieram parar ali; mas sua coleção de flores, folhagens e plantas se esparramavam numa fruição de tirar o fôlego. Como era possível em uma casa, consideravelmente pequena, caber tanta exuberância e beleza. Lá nunca houve a mão de nenhum jardineiro profissional ou decorador. Tudo nascia e crescia naturalmente, apenas pelo cuidado dele e ele agia como tivesse medo de mutilá-las; podando-as só para mantê-las íntegras em suas raízes e belas em suas copas. Seu rústico jardim era mostrado com orgulho para todos os seus amigos e vizinhos. Repetidas vezes. Não se importava se mostravam enfado ou desinteresse.
Um dia, cedendo aos rogos de seu filho, ainda criança, deixou introduzir naquele jardim particular e para ele, único: um cão. Foi o inicio de sua agonia.
O cão adorava estraçalhar suas flores. Cavoucava toda a terra e depois se recolhia comiserado em sua casinha, triste, como se implorasse perdão.
Em sua raiva ele vociferava àquele animal imbecil, tão alheio a tudo que fosse beleza, mil palavrões e ameaças. Chegava, às vezes a surrá-lo. Tudo em vão: noutro dia a cena se repetia. O animal parecia ter ciúmes das plantas. Era irritante! E seu jardim jamais voltou a ser o mesmo. Pior: degradava-se... Morria!

*
Apesar de aguentar as afrontas do cão e relevar, embora irritado, as broncas de sua mulher que não entendia a sua raiva, nem sua paixão doentia pelo seu desleixado jardim, Jonathan __esse era o seu nome__ nada fazia de fato contra o impertinente animal. Muito pelo contrário, era ele quem lhe dava banho e recolhia tufos de pelo que diariamente se acumulava no quintal. Mesmo porque, na verdade, embora suas rusgas fossem reais e sinceras, fazendo-o perder o sono, foi aos poucos se apegando àquela criatura inconveniente que passou a fazer parte de sua vida. Sabia entender a fragilidade e a beleza de tudo que o envolvia e lhe retribuísse afagos; mesmo que o fizesse presenciar tragédias e infortúnios e até se lhe trouxesse sérios aborrecimentos. Tanto que quando, devido à velhice e a um câncer maligno, veio a lhe faltar o cão, chorou compulsivamente durante vários dias e só veio a se recompor, tempo depois, quando percebeu que o seu jardim voltou a ter a pujança e a graça de tempos atrás.
Ficou tão fascinado com a recuperação de seu jardim, que se esqueceu completamente de seus afazeres profissionais e abandonou-se na faina diária de cuidar de suas plantas e flores.
As manhãs _ parecia_ jamais o abandonariam.


*

Se lhe perguntassem como ocorrera a separação, com certeza ele não saberia dizer; pois, embora desconhecesse as razões porque sua mulher o abandonara, era inquestionável que só ele sofrera com o fato e tanto foi esse sofrimento,__ inclusive porque ela levou-lhe o filho __ que Jonathan foi se definhando, caindo numa letargia e abandono como se o seu próprio mundo se comprimisse ao seu redor. Receava até olhar pela janela de seu quarto, agora resumida a um pequeno orifício na parede, cujo vidro, há tempos quebrado, não fora mais recolocado e parecia pender como um porta-retratos negligenciado acima de sua cabeça.
Um dia foi acordado pela água da chuva que por aquele orifício invadia seu quarto. Percebeu, no entanto, que o vento a ranger as folhas da janela o incomodava mais que a água da chuva, que teve vontade de sair correndo da casa. Por fim, um frio intenso gelou seus ossos. Meio tonto como se estivesse prestes a desfalecer, armou-se de um guarda-chuva e saiu. De fato, não conseguiria suportar aquele ambiente. Pensou, então, em comprar pães e um jornal. Levantou-se e com esse gesto sentiu-se tomado por uma vertigem. “Um café quente àquela hora viria mesmo a calhar e ler preencheria um pouco o seu dia”. Dias esses, inúteis há tanto tempo.
Foi dessas coisas que se recordou, algum tempo depois, quando se deu conta de que não sabia mais onde se encontrava. As ruas, tão conhecidas, não mais o levavam a lugar nenhum. Seus nomes lhes pareceram completamente estranhos. Perdera, também, a noção das horas, não mais sabendo há quanto tempo se encontrava perdido.
A chuva parara e com ela o dia se foi. Sentiu medo da noite que o envolvera. Tal medo voltou-lhe depois, como um possível pesadelo que o despertou, em pânico, debaixo de uma marquise de um edifício em construção. Os ruídos de uma noite inquieta e festiva fizeram-no pensar em regressar. Regressar para onde?
A vaga ideia de uma morada revolveu, por instantes, o seu cérebro. Engoliu os pedaços de pão que ainda trazia consigo e voltou a dormir como num desmaio.
A chuva, que voltou pesarosa, não mais o incomodava.


*
O casarão! Achou-o por acaso e, tomado sabe lá por que temores, recusou-se a entrar. Qualquer ideia de penetrar em seus aposentos enchia-o de repulsa. No resto da noite que restava dormiu na varanda. Seus fantasmas nunca mais o abandonaram.
Numa manhã cheia de sol, descobriu o jardim!
Ajude-nos”. Espantado olhou para todos os lados e percebeu que tudo em volta, morria ressecado. “Não tinha chovido recentemente?”
_ O verão, este ano, foi demais!
As meninas que, de repente, ele viu surgir a sua frente, pareciam aflitas. Com uma mangueira espargiu todo o jardim e o cheiro adocicado e úmido tomou conta do ambiente. Com isso percebeu que ele próprio fedia. Teria que tomar um banho. Como ficara sujo daquele jeito?
As meninas sorriam, pareciam agradecidas. Jonathan olhou-as maravilhado: nunca lembrava ter visto crianças tão lindas. Uma delas tinha uma pele extremamente branca e a outra, ao contrário, era toda vermelha, como se castigada pelo sol. Encheu-se, porém, de vergonha ao lembrar-se de seu lastimável estado. Despediu-se e, tomado de súbita coragem, adentrou ao casarão.
Espantou-se com o que viu! O interior do casarão deixava claros os sinais de abandono: as paredes úmidas estavam verdes de musgos; o teto, lavado pelas chuvas, tinha as marcas da umidade. Todo prédio cheirava a bolor. Porém, notou que não cheiravam tão mal quanto ele próprio. Nunca em sua vida tinha sentido tanta imundície; imundície que parecia lhe impregnar a alma e o fez raciocinar que tal acúmulo de sujeira não poderia ser de poucos dias. Tal constatação apavorou-o, pois punha em dúvida sua sanidade. Onde esteve que não se deu conta do passar dos dias? Por onde teria andado se só conseguia se lembrar da noite fria que o envolvera e de seus pesadelos tão angustiantes? Seria a sua casa aquele casarão?
Teve que se contentar com um banho gelado, pois a energia da casa tinha sido cortada. A água gelada parecia rasgar a sua pele, mas ao sentir a sujeira sendo banida do seu corpo, acalmou-se. Vestiu-se com roupas que lhe pareceu familiares, encontradas em um velho guarda-roupa. Todas essas sensações de familiaridades e presenças o deixaram aturdido e resolveu retornar ao jardim.
O dia, já em despedida, o esperava risonho.

*
Resolveu chamá-las de Renata e Roberta; embora vexado e com medo de constrangê-las, já que nunca conseguiu entender os seus nomes. Para seu espanto, quando descobriram sua artimanha, elas gostaram: “Soam lindos!”.
Old Time”. “Femina Spanishi Sun Schneewittchen”. Carandá é Palmae “Corpenicia Alba Morong”. Esta veio da Malásia: “Syzyguin aromático”, Cravo da Índia. E a azaléia? “Ericaceae Rhododendron indicum”. É da China ou Japão? As meninas o esclareciam e eufórico, quase aos gritos, continuava: Papiro do Egito? “Marantaceae _ Maranta divaricata roscoe”. Capuchinha? “Tropacolum majus”. Abacaxi-roxo? Aquela de face verde escuro e lado violáceo? “Tradescantia spathacea”. Coração magoado? “Trenise herbstii”.
Muitas vezes, ao fazer sua caminhada em volta do quarteirão, ele se recordava dessas verdadeiras aulas de botânica e repetia para si mesmo:
_Cinerária é “senecio cinerária”... Mil folhas: “Achicleia millefolium”... Como deixam estranhos os nomes das flores, pensava.
_ Ele não fala mais nada com nada.
Sem querer, falara alto, mas sorriu deliciado. Não poderia exigir daquele homem, inculto, outra reação.
Coitado”! _era sempre a chula sentença de uma mulher atrás dele ou de alguém que passava. Jonathan, contemplativo, apenas ria.
Outras vezes podia sentir, mesmo com todo o ruído do trânsito e do intermitente barulho das sirenes, os passos que vinham em sua direção e aquela voz insuportável: “Caduco”. E de novo ouvia do outro lado da rua, o porteiro que ria... Zombando dele com certeza.
As meninas, sempre comedidas, olhavam-no constrangidas e diziam: “É, de novo, aquela senhora antipática de nome horrendo”. Essa sutileza deixava-o ao mesmo tempo sem graça e agradecido. Como e por que “caduco”, pensava chateado. Por que toda essa agressão, se ele mal a conhecia? Pensava em retrucar: “Caduca é a senhora”. Porém não o fazia, pois isso nada acrescentaria à expansão cósmica do Universo, nem a sua rotina, em particular.
Um dia, notou que homens de branco o seguiam. Agora que os notara, lembrou-se de tê-los visto rondando o casarão. A mulher ranzinza, ás vezes os acompanhava e parecia falar sobre ele. Mas não deu importância, pois já se acostumara a ter medos que depois se revelavam gratuitos. Aliás, começara a temer mais os seus pesadelos que sempre o acordavam em calafrios e pareciam cada vez mais reais.
Ao chegar à entrada do casarão, ouviu as meninas gritarem: “Cuidado, eles vão te levar”. No entanto, não teve forças para reagir. As imagens bambolearam na sua frente. Suas pernas já não mais o obedeciam e assim, combalido, deixou-se levar.
A paisagem, em sua frente, desvanecia-se.
*
Aos poucos sua memória ia voltando. Agora, depois de alguns dias na clínica, sentia-se agradecido. Os dias nas ruas ainda permaneciam ofuscados; mas se recordava de sua casa e que esta fizera parte de sua vida e de sua família. Teve uma repentina saudade de seu filho que, em seus sonhos, sempre aparecia ainda criança. Recordava, também, de sua infância e de seu jardim. De repente lembrou-se ter ouvido alguma coisa como: “ele precisa ser demolido”. Assustado, pensou nas meninas e correu em direção à porta. Ninguém o impediu.
Foi tomado de pavor quando dobrou a esquina que o levava ao casarão, e viu o que já antecipara em sua mente... Tratores punham-no abaixo e com ele todo o imenso jardim. No fundo, mesmo diante de toda aquela destruição, sentiu-se aliviado, mas, ainda trêmulo, questionou um dos funcionários, justo aquele que inúmeras vezes lhe pareceu zombar dele: “Você viu as meninas?”
_ Que meninas? Refere-se às flores?
_ Bom dia, querido! Arranjei-as para você.
Jonathan virou-se, ainda assustado, e viu a Dona Tibúrcia (a mulher ranzinza de nome horrendo) com dois enormes vasos, lindamente ornamentados, contendo as mais belas flores que jamais vira: rosas brancas e vermelhas.
Notou-a de repente simpática e, como que fulminado por um raio que lhe transpassou todo seu corpo, reconheceu nela sua mulher e atrás dela, rosto assustado, mas sorridente, seu filho. Sua alegria foi tanta que não conseguia conter o choro e extasiado percebeu que, entre suas lágrimas e as nuvens avermelhadas do horizonte, estampava-se um lindo amanhecer.


segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O perigo que correm os anjos


Quando a Igreja católica, alguns anos atrás, principalmente nos EUA, virou alvo de denúncias pela prática pedófila de membros do seu sacerdócio (a renúncia de Bento XVI, mais tarde, teve muito haver com tudo isso; além, é claro, dos problemas bancários da santa igreja) e, como nada nos agride tanto quanto a pedofilia, esta na mídia, virou o mal do século. Diante dessas denúncias, o sensacionalismo dos meios de comunicação frusta a nossa tentativa de entender o fato e quase nada nos esclarece e mais: confunde-a com a exploração infantil e o comércio sexual, não poucas vezes até enaltecido pelas novelas televisivas. Tais concepções, ingênuas e a-históricas, leva-nos a perguntar: O por quê?
A pedofilia, sustentam alguns, trata-se de uma doença incurável, difícil de ser tratada, mas possível de ser controlada. Outros, no entanto, dizem que o único método eficaz é castração do indivíduo. Explicá-la nesses termos, também pouco nos esclarece e não nos livra do problema, nem responde a pergunta inicial: Por que nos agride tanto, muito mais que o estupro, por exemplo?
Uma das razões possíveis e talvez a mais visível, na tênue cortina dos padrões morais e éticos que nos envolve, vale dizer: no arcabouço social em que o homem comum poderia vislumbrá-la _mesmo se não a elabore mentalmente_ é o fato de o estupro, como a prostituição estarem ligados às prerrogativas nefastas de uma sociedade machista, gestada instintivamente por ações primitivas do macho. A figura do neandertal arrastando sua fêmea pelos cabelos, mesmo que não seja real, ilustra bem esse ponto de vista, reafirmando a concepção machista da sociedade, onde o estupro é visto apenas como uma distorção sexual/social a ser evitada. O cinismo e o sarcasmo com que a denúncia de estupro é ainda tratada revela o quanto tal crime é negligenciado. E em algumas culturas é até aceito e incentivado. E estamos no século XXI.
Somos, teoricamente, mais pedófilos do que estupradores? Possivelmente não! Porém, a pedofilia tem nuances introspectivos e por isso muito mais perversos; por nos negarmos no espelho _ todos, homens e mulheres_ sentimo-nos em pânico. A linha que divide o amor a nossos filhos e pelas crianças em geral e o abuso ou assédio sexual para com elas é frágil demais para suportarmos. Por isso vemos pedófilos em nossos vizinhos, nos amigos, num parente. Ou seja: todo nosso espaço social pode estar minado. Qualquer denúncia vira pronta condenação na mídia e acintam os vingadores de plantão (Se depois, tais denúncias não passaram apenas de fantasias_ ou pesadelos infantis _ ninguém se preocupará com isso) . O olhar da mídia sobre esse assunto, de uma maneira vulgar e irresponsável, contribui assustadoramente para banalizar um comportamento antissocial que jamais será extirpado de nossa sociedade. E com um agravante, muitas vezes é feito no aconchego do lar e até aceito pelos casais. A criança não tem a quem recorrer. 
Com certeza essas considerações estejam longe de esclarecer alguma coisa ou serem convincentes. Mas essas anomalias não são raras e a mídia e o noticiários populares e de pouco nível (Datenas e Rezendes da vida) reproduzem o modo como é tratado o sexo nos dias de hoje e suas anomalias. Ontem assunto proibido, hoje, banalizado. 


quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Um Deus e a Ciência Universal



Você pode acreditar em milagres e não abandonar os seus dogmas de fé, mas aos defensores de um Deus Onipotente, Onisciente e Onipresente, é bom lembrar que a ciência, infelizmente, provou exatamente o oposto. E já faz algum tempo. Com uma sutileza que não ofendeu ninguém:

Charles Darwin*, em meados do século XIX, desvendou a origem da espécies e provou (o que o século XX confirmaria com a descoberta do DNA, nos anos sessenta e a decodificação do genoma humano nos anos oitenta) que todo ser vivo tem como origem um único ancestral. Portanto não era devido a vontade divina que a multi-diversidade na natureza existia e nem um ser complexo(?) como nós. O criacionismo era apenas uma belíssima fábula! A onipotência divina esboroou-se com a biologia e seu ramo um pouco mais recente: a biologia molecular. Os seres vivos são feitos de matéria e energia, as mesmas criadas nas fornalhas estelares e isentos da benignidade de um ser supremo.

Antes dele a Física de Isaac Newton** viu no macro universo dos planetas as leis que os regiam e Albert Einstein***, no limiar do século XX, descobriria que leis imutáveis também regiam todo o Universo, das partículas às estrelas. Leis que não poderiam ser violadas pelos humores de um onipotente criador.

A mecânica quântica que instalou o pânico em alguém nada menos que o próprio Einstein e foi confirmada por seus contemporâneos como Max  Planck , Paul Dirac e outros, afastou ainda mais o mundo das mãos divinas. Contrariando Einstein, Deus jogava dados sim e que no mundo do muito pequeno, o arbítrio divino tinha que ser descartado, como o Deus matemático suposto por Newton; pois não tinha Ele opções de escolha. O Universo e seus mundos _ macro e micro_ eram assim, quer o Criador quisesse ou não.

Onipresente e onisciente ele também não era, pois Aquele que tudo vê e sabe, o Deus pessoal bíblico que Einstein já tinha descartado, não pode interferir num Universo regido por leis da Física, muito menos teria condições de interferir no destino humano: nascimento, crescimento e morte. Até o minúsculo espermatozoide, em sua desenfreada corrida rumo ao óvulo, é movido pela busca da sobrevivência, ou seja, pela fome e não pelo beneplácito sopro divino.

A dádiva da vida só reforça a teoria darwiniana e sua luta pela sobrevivência. Os mais aptos sobreviverão: seja para toda uma espécie, seja para a menor célula do corpo humano ou até mesmo, e principalmente, para um único gene.

Nos dias de hoje, a astrofísica e a cosmologia parece que puseram os últimos pregos no caixão encomendado por Friedrich Nietzsche*** “ Deus morreu”.

Ressumindo: As leis da gravidade e da mecânica quântica explicam a oposição da matéria e anti-matéria, da energia positiva com a negativa e a dança frenética de partículas virtuais que criaram o “big” do big-bang e as leis físicas se responsabilizaram pelo estrondoso “bang” e a expansão do universo.

Stephen Hawking**** sentencia : “Corpos como estrelas e buracos negros não podem simplesmente aparecer do nada, mas todo universo pode... A criação espontânea é a razão porque há algo em vez do nada...Não é necessário invocar Deus para acender o pavio e colocar o Universo em movimento”. De uma partícula, todas as partículas, de um átomo todos os átomos. Da energia da matéria à energia da vida.

Deslocando-se de um deus bíblico pessoal foi o budismo que mais se aproximou dessa verdade universal pois prega que não existe deus, mas que chegaremos a ser deus. Porém a espiritualidade budista inverte o processo. Não seremos transcendidos em deus, somos deus multiplicados e subdivididos (considerando que o primeiro quantum de luz, fóton, ou partícula de energia seja deus). Um deus não onipotente, não onisciente e nem onipresente. Um deus inútil, pois desnecessário e como toda matéria,  falível e mortal. Infinita, enquanto durar o Universo!

                                                                                                


*Isaac Newton, físico: " Principia - Princípios matemáticos da Filosofia Natural" (1642-1727);
**Albert Einstein, físico; " As idéias de Einstein " (1879-1958);
***Friedrich W. Nietzsche, filólogo e filósofo: "O anti Cristo" (1844-1900);
****Stephen Hawking, cosmólogo, O Grande Projeto (co-autor: Leonardo Mlodinow), pag. 132, ed. Nova Fronteiras Participações S.A.-2010.  

sábado, 8 de outubro de 2016

Alfa e Ômega

Alfa & Ômega


I

E o tempo parou...
A brisa, que cada vez mais mexia menos a ramagem, estancou-se de supetão. Extinguiu-se.
Poucos, os mais suscetíveis às pequenas mudanças, sentiram, sem poderem confirmar com certeza, tais fatos _ às vezes a noite, outras vezes o dia, caprichosamente se esticavam como se tivessem medo de não mais retornarem _ por imperceptíveis que eram.
Muitos deram importância a episódios mais relevantes, sem, no entanto, questionarem “por quê”, _ como aquele ovo que não chegou a chocar e nem a apodrecer, ou aquela mulher grávida que nunca paria _ por acreditarem talvez, que seriam passageiros; coisa, quem sabe, de mudança de estação. Mas, por via das dúvidas começou-se cronometrar o tempo. Aquele tempo preguiçoso de acabar.
Com o passar do tempo, (poderíamos ainda dizer assim), os relógios foram perdendo a precisão, _ cada um marcava mais demoradamente os minutos e dificilmente se achavam dois que marcassem milimétricamente o mesmo segundo; até se tornarem inúteis, pois ninguém mais neles botava fé _ muitos acharam estranho e de início nem ligaram, mas poucos começaram a perceber que algo terrificante estava se processando.
Silenciosamente o tempo estava sendo tragado e paradoxalmente prolongava-se, enfadonho e mudo, dando sinais inexoráveis que em algum momento iria parar. E parou, esvaindo-se cadenciamente.
Antes, porém, o padre percebeu que no campanário tudo estava estatificando-se. Primeiro foi o sino que teve a última badalada das seis horas interrompida. Seu som sumiu no ar como se todos os ouvidos da terra tivessem sido tapados. Ninguém ouviu o sinal da última nota que se estertorou abafada. Ou pelo menos o padre teve a certeza (não disse como) que ninguém a ouvira, pois ela _ a nota, seu som _ interrompeu-se seca, inaudível. As andorinhas (perceberia depois) não revoavam mais ao redor do campanário, nem chilravam barulhentas como antes. As que lá estavam quedaram-se estáticas, absortas, pesarosas.
Podia-se sentir o silêncio em volta da torre da igreja, que se alastrava pesado. Embora nada houvesse na verdade, se interrompido. Da fábrica, ao longe, via-se que os funcionários marchavam de volta aos seus lares, mas sentia-se que esse retorno se fazia arrastado, sem sorrisos ou pressa de chegar.
Constatou-se mais tarde que, esse esticar-se dos minutos, das horas, dos dias, não afetava a vida dos homens, pois_ por ser tão vagarosamente sentido_ somente dormiam cada vez mais tarde e mais tarde, também cada vez mais, acordavam. Falavam menos e meditavam mais.
Com o tempo, (quando podíamos ainda reportar assim) as noites cada vez mais longas sucediam-se dias cada vez mais longos, que precediam noites mais longas ainda. Interminavelmente prolongavam-se um pouco cada vez, mas sempre um pouco mais.
A que compararíamos esse lento prolongar das coisas senão a uma irreversível imobilidade final? Se é que haveria um fim.


II


O padre, a quem não daremos nome, já que esse se perdera nas engrenagens do tempo que se imobilizava, resolveu procurar o camponês _ que vagamente recordava chamar-se Inácio _ para conversar sobre suas inquietações. O lógico seria, talvez, o contrário: ele, o sacerdote, ser procurado pelo camponês, que deveria estar confuso com os acontecimentos, ou pela falta deles; se é que os tinha percebido. E se percebido tivesse, por metafísicos que eram, será que Inácio os compreenderia? O fato de toda comunicação radiofônica ser, abruptamente, interrompida ou achar-se há um bom tempo, (quanto não se sabia ao certo) surdos, todos os telefones do lugarejo, podia não ter sido notado pelo matuto, que estaria mais preocupado, com certeza, com a demora do sol em se pôr.
Essa vagabundagem da noite em não querer chegar, ou o esquecimento momentâneo do sol em ir-se, talvez atinasse mais a curiosidade e o espanto do homem, do que o mutismo do rádio ou a surdez telefônica, quem sabe, só ocasionalmente em pane; como o relógio que parecia com preguiça de trabalhar.
Se o padre em sua visível confusão não conseguira elaborar nenhuma explicação plausível, era porque temia que a crendice enraizada na sua formação cristã, aludisse ao bíblico fim dos tempos, coisa para qual se sabia não preparado. Sua crença criacionista por formação e fé, não era suficiente para aceitar a aventura terrena tão perto de um fim. Deveria haver outra explicação para esse fenômeno_ pensou _ ou por diabos, estaria enlouquecendo? E ponderou que, se alguma falha em seu comportamento houvesse, outra pessoa haveria de detectar.
_ Percebeste como o dia demora a acabar? _ perguntou peremptoriamente Inácio ao padre, antes mesmo deste ter avançado o suficiente para abordá-lo.
_ Como reparaste nisso? _ devolveu o padre estupefacto com a pergunta imprevista, que cortava gélida, a sua espinha.
_ O sol não quer se pôr e da noite nem há sinal. O tempo está parando. Sabes o que isso significa padre?
A remudança de papéis desconcertou o sacerdote, que não teve o que responder. Seria dele essa fala e a reinversão truncou-lhe o pensamento. Sua mudez fez vacilar o matuto.
_ Há dias que medito sobre isso _ retornou depois de algum tempo, Inácio _ estava a ponto de ir a tua procura. Parece que adivinhaste.
_ Não, _ retorquiu o padre_ nossas idéias é que se cominaram. Eu vim também em busca de algumas respostas. É bom saber que partilhas das mesmas preocupações e sentes, como eu, que alguma coisa fora do normal se abre sobre nós. Mas te adianto: não sei o que pensar. Achei que estava ficando doido.
_ Estou cismado com certos fatos que vem me ocorrendo há alguns anos. Isolados podem nada dizer, mas, agora, ligando-os, compondo-os num quadro só, parece que faz sentido. Ou, pelo menos, soaram-me como explicação _ interrompeu-se Inácio, refletindo.
_ Continue, _ incentivou-o o padre, enquanto que pela sua mente perpassava outra imagem do, até instante atrás, simplório matuto _estou curioso com o que tens a dizer.


III



Inácio, disse-se-lhe então, ser agrônomo de formação e vivera com Augusta, sua mulher, por mais de vinte anos. Com ela teve uma filha, Alice, que se viva estivesse, hoje completaria dezoito anos.
Era linda e além de bela, inteligente e meiga. Tinha os olhos negros e seu corpo, brotando-se já mulher, chamava para si todos os olhares masculinos da escola. Muitas vezes, ao vê-la caminhar ao longe, comprazia-se pensar o quanto que fora agraciado na vida.
No entanto, de seu corpo gracioso e perfeito, na pele morena e transbordante de vida, brotou-se uma intumescência pequena e única a princípio, que rápida cresceu e se espalhou. Levaram-na, então, a todos os médicos que muitos indicaram; a todas as clínicas recomendadas e nada conseguiu regredir os tumores malignos que de seu pescoço tomaram conta e penetraram vorazes, em sua garganta.
Nenhum dinheiro, nenhuma prece, nenhuma medicação, nenhum tratamento, nada conseguiu evitar sua prematura morte ao quatorze anos de idade. Seu sofrimento e seu trágico fim tiraram dele toda esperança na vida e qualquer credulidade, quer humana, quer divina.
Como se tal tragédia fosse pequena, vítima de um aneurisma cerebral, dois anos depois, morreu Augusta que, já combalida pela morte da filha, não opôs resistência à doença, que em menos de duas semanas a levaria. Sua vida se fez caos.
Esvaiu-se, a partir daí, por completo, toda resistência que ainda tinha. Soçobro-se, então, ao peso da morte: à sua presença nefasta; ao seu destroçar de sentidos. As sensações de todo vazio e abandono, de todo ruir da alma, de todo desesperar sem limites, dele tomaram conta, como se gigantesca pedra lhe esmigalhasse seu cérebro devagarzinho. O álcool, então, passou a ser o seu lenitivo, o seu derradeiro refúgio. Mas com o tempo, embriagar-se não era mais o suficiente, pois, se nunca até então cultivara grandes amizades e sempre teve na família somente, seu deleite e fim, a bebida não mais lhe trazia reconforto, nem fuga para a sua solidão. Muitas vezes pensou em suicídio, mas para consumar tal ato, faltava-lhe a coragem necessária no momento final. Assim, definhando-se, consumia seus dias.
O padre, curioso com o que ouvia, esqueceu-se por completo de qual era sua motivação quando viera procurar o matuto que desaparecera de seus olhos para se transformar no homem agoniado e culto que agora ouvia. Aquelas revelações, pelo menos até aquele momento, nada tinha a haver com a imobilidade do tempo. Sentou-se, presentindo que o relato não seria breve, e incentivou-o a prosseguir. Esse, não se fazendo de rogado, continuou:
_ Sentia-me ignóbil e desprezível e por ter consciência disso, ansiava por mudar, por superar essa condição abjeta. O passo seguinte foi, então, como uma ressurreição.
Não me recordo ao certo como me envolvi com alucinógenos, nem como traguei minha primeira “canabis”, eu, que até então, jamais tinha fumado cigarro algum”. Não me lembro de quem me trouxe o primeiro grama de cocaína, nem como entrei em contato com o mundo do ópio e do haxixe. Só sei que de tudo experimentei e vivi momentos de êxtase e horror. Porém, confesso de nada disso me arrepender depois, pois os momentos de prazer eram tão reconfortadores que me aliviavam dos pesos dos dias e da depressão, que me assolava a seguir, livrava-me dela com doses maiores e o ciclo assim prosseguia, fazendo-me viajar nas delícias de um estágio sem comprometimentos, nem sobressaltos. Sentia-me maravilhado num novo mundo, para o qual era transportado em delicioso fulgor.
Lembro-me uma vez que tendo saído de um desses estados de torpor encontrei-me num campo esplendidamente florido. Recordo-me da sensação de que as montanhas ao longe nunca estiveram tão perto e como distinguira suas árvores uma por uma, a nitidez de seus galhos e até, como se as tivesse olhado milimetricamente de perto, as ramificações das suas folhas e o esvoaçar dos insetos que nelas procuravam abrigo e deles, todos os seus sons.
Tudo evocava majestade naquela paisagem multicolorida: ipês roxos, amarelos e brancos, cravos vermelhos, tulipas azuis, orquídeas translucidindo em milhares de tons, diáfanas ramagens esverdeadas em todas as tonalidades.
Era tudo tão estupefaciente que ao sair de meu deslumbramento não cheguei a perceber que me encontrava próximo a um formigueiro e as formigas, como se transitassem sobre uma pedra imóvel, passeavam irreverentes por todo o meu corpo. Sem me apavorar, caminhei até um riacho de águas cristalinas que completava a paradisíaca paisagem e nele mergulhei, livrando-me assim dos inconvenientes insetos, sem ter levado uma única picada.
Nem sempre, todavia, as sensações eram as mesmas, nem as experiências se repetiam, mas até as mais terríveis alucinações me eram benfazejas: vi sangue cair sobre o meu corpo ao abrir o chuveiro; senti as paredes do meu quarto tentando esmigalhar-me; vi enguias na piscina; senti-me tragado pela terra; pesadelos horripilantes me faziam acordar de noite gritando e, no entanto, continuava dormindo; vi demônios que há tempos não acreditava mais e tomado pela LSD vislumbrei trilhões de estrelas ao alcance das mãos; senti a presença divina; chorei a morte de querubins; vi Deus e senti-me Ele.
Convencia-me, ou fazia-me convencer, que o mundo real era este e não aquele do qual saíra com a alma ferida, os laços partidos, a família engolida por sei lá quais malditos deuses. Se eu sempre fora bom, honesto, decente, por que me foi impingido tão cruel anátema, tão devastador destino? E por que temos que suportar tudo isso?
As drogas me mostraram outro caminho, outro lado da vida, de sensações impossíveis longe dela e quem poderá julgar as opções de cada um e a correta escolha sobre elas, sem de fato vivê-las e nelas tentar se compreender? Quem atiraria a primeira pedra estando mesquinhamente confortável do outro lado?
Porém, com o tempo, minhas economias minguaram. Por causa das drogas vendi meu carro e minha casa. Para ambos os negócios, arranjei justificativas: o carro já era velho, de bastante uso, compraria um melhor futuramente; a casa já não me servia, era grande demais e as recordações dos meus entes queridos, solapavam-me o espírito. Adquiri então uma quitinete e de fato, aquilo me bastava. A situação, no entanto, não era nada tranqüila, já que tinha abandonado meu emprego público há mais de seis meses e teria que arranjar com urgência outra ocupação. Esse sentimento de certa responsabilidade só me acudia nos momentos de lucidez, momentos estes cada vez mais raros. Relevava o tempo como se minha vida fosse se encaixar um dia, naturalmente, sem grandes transtornos. O que sempre era adiado, porém, não poderia sê-lo indefinidamente. A premência de recursos para cobrir os altos custos de meu vício fez com que um dia, desesperado, penhorasse as jóias, poucas, aliás, de minha mulher e também as de minha filha. Quando constatei o tão pouco de mercadoria conseguira com aquele pequeno empréstimo, uma agonia profunda tomou conta de mim e triturando-me a alma. Num relance percebi que estava próximo do fim.
É difícil traduzir em palavras o que senti, mas lembro-me que tentando me transportar do arrependimento tardio para o êxtase do esquecimento, tantas vezes conseguido, atirei-me afoito ao produto e deparei-me com a mais acaçapante frustração, pois não tive desta vez, satisfação alguma. Prostrei-me numa depressão tão grande e nunca tal avassalador desespero tomara conta de mim.
Não sei dizer a sucessão certa dos fatos que agora passo a narrar, pois a amnésia que já fazia parte de meus delírios apossou-se do meu cérebro de tal maneira e por tanto tempo, que dificilmente conseguirei descrever com exatidão o que me ocorreu na penumbra desses dias, onde surtos de loucuras se sucederam e se confundiram nos corredores de minha mente e a lucidez dali alijada, só em curtos momentos, conseguiu sobressair-se. O pânico, então, instalou-se em mim.
Num desses momentos contemplei-me no espelho e minha aparência, magérrima e degradante, insuflou-me de ódio. Não sabia ao certo onde me encontrava e ante tal visão me precipitei contra o espelho, quebrando-o com murros. Vieram em meu socorro, ou para me conter, médicos e enfermeiras e antes deles, seguranças com os quais lutei por alguns minutos, até ser subjugado e restringido a um leito. Na minha confusa mente ficou registrada depois apenas a imagem do meu corpo horripilante e do meu olhar desvairado. Nem o sangue que escorria de minhas mãos chegou a impressionar-me.
Noutro momento arranquei a agulha do soro que me ministravam, pois para mim, eram sanguessugas que me devoravam. Pavor e medo tornaram-se parte de mim e quando voltei para minha residência, a sensação de aniquilamento ainda persistia; no entanto, imbui-me do desejo de me livrar do vício.
Nunca imaginei, no entanto, o quanto seria tão penoso.

IV


Largar o vício” é uma expressão que pouco reflete o conflito interior que assola tua alma. Na verdade, é uma verdadeira “despossessão”. És o outro que tentas arrancar de ti. É uma árdua batalha com um estranho que te possui. É um recomeçar tão próximo de um final aonde não te quer chegar. A luta é desigual, pois tu lutas consigo mesmo, sabendo que é o outro que mandas em ti.
Tranquei-me, então, um dia _é-me difícil saber com precisão quando _ com meus medos e delírios, na minha pequena moradia e prometi para mim mesmo, se bem que no íntimo cheguei a duvidar que cumprisse tal promessa, que só sairia de lá curado ou morto. Para tanto, as chaves, joguei-as fora e livrei-me de tudo que pudesse facilitar-me uma possível fuga. Por tal ato, todo tempo, amaldiçoei-me depois. Preparei-me, assim, para enfrentar meus pesadelos.
Foram dias intermináveis e noites que se negavam a terminar. Não havia pausa para meus fantasmas e se de noite me infernizavam fazendo que eu me desesperasse para ver o sol nascer, de dia me faziam lutar tão incessantemente que ansiava pelo sono da noite; sono este que nunca me acudia.
Quantos dias eu estive naquele inferno? Quantas noites briguei por minha lucidez? Não sei. Tudo se fundia num mesmo labirinto onde eu era o minotauro que me caçava sem tréguas e nessa luta que parecia não ter fim, sangrei as mãos dando murros nas paredes, tive feridas e equimoses de tanto me autoflagelar, gritei contra os espectros de mim mesmo até me sucumbir, sem forças de permanecer em pé, sem condições de manter o equilíbrio nem de meu corpo, nem de minha mente. Tudo parecia ruir dentro de mim.
Recordo-me, enfim, de combalido ao extremo, deixar-me cair e prostrado, senti meu sangue esvaindo-se de minhas veias e junto com ele, compreendi que minha vida esvaia-se também.
Os vizinhos, que dificilmente os via e com os quais nunca tive a menor simpatia ou amizade, devem ter ouvido os meus lancinantes gritos e o ensurdecedor barulho que vinha de meu apartamento, pois cheguei a quebrar _ alucinado_ tudo que lá havia: pratos, vasos, micro-ondas, televisor; tudo enfim, arremessei contra as janelas e portas _ e acabaram vindos em meu socorro. Depois de arrombarem a porta de entrada retiraram-me dali. Possivelmente, quando entraram, já se depararam comigo quase em estado de inanição.
_ Padre com certeza notou _ interrompendo a narrativa, como a se justificar _ que até aqui, minha história nada apresenta em relação ao mundo que se imobiliza. No entanto, faz-se necessária, pois foi assim que me embrenhei pelos estranhos acontecimentos que tumultuaram a minha vida. Peço teu obséquio para prosseguir
_ Tu o tens, _ respondeu o padre, enquanto meditava sobre, até aqui, as incríveis aventuras ou desventuras do narrador_ prossiga. O que te aconteceu depois?
O tempo estático parecia que acomodava meio a contragosto, os personagens que insistiam em conversar. Só a seqüência da narrativa de Inácio confirmava que a temporalidade ainda existia. O crepúsculo, no horizonte, debatia-se para não se findar.

V


Foi assim que encontrei Marisa, psicóloga da clínica, a mulher mais fria e calculista que já conheci”. Características essas que só depois vim a perceber.
Fiquei internado alguns dias num hospital, sob efeito de sedativos e depois de alguns dias obtive internação em uma clínica. Como não tinha parentes próximos e Marisa lá fazia estágio, como psicóloga, foi ela quem providenciou tal internação, mostrando-se, para surpresa minha, prestativa, eficiente e muito simpática.
Minha recuperação foi rápida, pois estava convencido que tinha superado o vício. Apenas a parte física carecia de maiores cuidados, pois me encontrava muito debilitado depois de tanto tempo sem alimentação alguma.
Marisa me privilegiava com sua atenção. Sua corte era-me bem vinda, pois além de minha família, nunca me senti, por alguém, tão paparicado. Estava enfim de volta a vida e nesse sentido ela me encorajava quando abatido, acolhia-me na depressão, incentivava-me nos meus menores progressos. Fazia-me sentir que recomeçar valeria a pena.
E assim, com meiguice, um dia me fez o seguinte convite:
_Terás alta, possivelmente, hoje, ou o mais tardar, amanhã cedo _ e fazendo uma pausa como se hesitasse, prosseguiu: _ Sei que resides sozinho e estás desempregado, poderia ajudar-te a... Diria assim, a ocupar-se novamente.
_ Estas me propondo um emprego?
_Direi que estou te oferecendo um trabalho que não interromperá a tua recuperação e ao mesmo tempo, te mostrará um novo rumo para ti. Topas?
_Com certeza!_ respondi, não procurando esconder meu entusiasmo _ diga-me como!
_Estou te convidando para trabalhares comigo num projeto pioneiro, num Instituto de pesquisas científicas. Tudo lá é experimental, embora já tenha dado bons resultados em muitos campos_ e concluiu: se topares pára aqui as explicações, pois mais detalhes, tê-lo-ás quando lá se integrares.
Não me passou pela cabeça perguntar-lhe por que ela tinha me escolhido, nem qual a razão do convite assim de supetão e que exigia uma resposta tão imediata. Seu interesse por mim pareceu-me natural e quanto à novidade de tal projeto, não me fazia tecer outras expectativas. Eu sentia-me renascer e tudo para mim era novidade, até o simples fato de acordar e conviver com outras pessoas. Sentia-me vivo entre os vivos! Tudo em minha volta recomeçava e as surpresas faziam parte desse constante recomeçar.
Na manhã seguinte, como previsto, recebi alta da clínica e à tarde, logo após o almoço, dirigi-me ao endereço deixado por Marisa, no horário por ela pré-determinado. Era o último ônibus do dia para aquele destino.
O céu já declinava quando lá cheguei. Seu vermelho ardente espalhava-se pela planície e aos poucos, entre sombras avermelhadas, ia se formando um pequeno edifício.
O Instituto lembrava uma clínica, não que sua estrutura se assemelhasse a um hospital, mas devido à limpeza e a higiene do lugar. Tudo era asséptico e asseado. Não se via musgos nas paredes, nem mosquitos nos ambientes e entre folhagens, pomares e árvores, animais pastavam sem que se sentisse o cheiro de estrume, nem os odores corriqueiros em áreas rurais. Todos os empregados usavam uniformes nos quais não se via mancha alguma.
Os animais e vi-os em quantidade: cavalos, bois, porcos, todos pareciam que rebrilhavam ao sol, dando a impressão que eram limpos e escovados várias vezes por dia. Tudo o mais parecia recém-pintado. As paredes, janelas, porteiras e cercas, cheiravam a tinta.
Fui acolhido com indiferença e polidez. De antemão os empregados já sabiam quem eu era e sem maiores apresentações indicaram-me o meu quarto e deram-me um folheto onde se detalhavam os horários das refeições, os cardápios de cada dia e todas as demais informações pertinentes a um hóspede de primeira viagem. Nada indicava sobre minhas possíveis tarefas, nem o que esperavam de mim. Quando indaguei sobre Marisa, a resposta foi lacônica: “A doutora te procurará em breve”. E foi só por mais de dois dias. Fazia minhas refeições com os funcionários que pouco me dirigiam a palavra. Na verdade respondiam às minhas perguntas com monossílabos. Recurso esse que, por enfado ou constrangimento, deixei de lado, pois as rápidas respostas não supriam as minhas curiosidades.
No final do terceiro dia, quando já me preparava para dormir, convicto que nada de diferente iria acontecer e quando já começava a me arrepender de ter vindo e a questionar o porquê de minha vinda a esse lugar tão asséptico, quanto estranho, batem na porta e ao abri-la meio a contragosto, devido ao adiantado da hora, vejo surgir Marisa. Abraçou-me com sofreguidão aparentando que sentia muitas saudades, desculpando-se assim pela longa demora.
Se alguma raiva eu ainda tinha, diluiu-se com toda essa demonstração de carinho. Senti como bálsamo o calor de seus braços e nada me pareceu mais natural que nos amássemos por toda à noite, como se amantes fôssemos de longa data e com certo assombro, pus-me a meditar depois, enquanto ela, angélica dormia, que jamais havia antes, por um segundo que fosse, tocado em uma mecha de seus cabelos. Todas as minhas apreensões tinham sido por hora, esquecidas. Dormi depois copiosamente por mais de quinze horas.

VI

O “Instituto”, não era como pensei a primeira vista, nenhuma colônia agropecuária. Fazia-se lá, na verdade, experiências com culturas transgênicas; tratava-se de uma clínica pioneira em pesquisas genéticas. Possuía amplos laboratórios em locais distantes e poucos visíveis da rodovia. Marisa me falaria com orgulho que era uma das encarregadas da clonagem de animais e dos resultados de seus trabalhos com várias espécies de criaturas. Diante de minha estupefação e assombro, passou a descrever com detalhes, todo o processo de gestação nos mamíferos, grupo esse que segundo ela, tinha maiores possibilidades de sucesso. Com mais detalhes ainda, falou-me da fertilização “in vitro” e de suas experiências, poucas, mas com êxito, da fecundação e geração, naquele laboratório, de bebês de proveta. Ela, além de psicóloga, se intitulava “doutora em genética” e prometeu me apresentar aos outros membros de sua equipe, assim que fosse possível.
Tal possibilidade veio há ocorrer três dias depois, tempo, aliás, que fiquei sem vê-la. “Como geneticista, justificou-se ela sem que eu lha pedisse, faço muitas viagens para cursos e conferências, coisas com que terá de se acostumar.” _ concluiu categoricamente, como se alguma objeção de minha parte houvesse. Tal veemência eu achei despropositada.
Além dela, faziam parte da equipe, que dirigia o Instituto, outras três pessoas: Felipe, um jovem calvo, de voz possante e autoritária, também geneticista; um senhor aparentando mais de cinqüenta anos de idade, voz rouca e pele rosada que se apresentou como químico vindo da Áustria: Paul D.; e um biólogo de forte sotaque alemão, que usava óculos garrafais e que era por todos, tratado como subalterno: Otto k. Felipe tinha uma ascendência indiscutível sobre os demais, seu olhar frio denotava não aceitar nenhum tipo de contestação. Soube mais tarde, embora não me lembre por quem, que Felipe era um dos tais bebês de proveta, pelo que concluí que o Instituto não era tão recente como pensara.
Foi a partir daí, se não me trai a memória, confusa por todas essas sucessões de experiências inusitadas, que comecei a sentir a paralisação lenta do tempo. A princípio relacionei tal sensação ao ambiente exótico que frequentava, mas no íntimo, certo alarme nunca me deixou convicto disso. Nos intervalos de minhas tarefas, que não eram muitas, meditava muito sobre isso e em minhas divagações pus-me a recordar que, quando ainda drogado, eu também não tinha muito nítida a percepção correta do tempo. Estaria ainda sobre os efeitos de alucinógenos?
Para meu maior desespero Marisa ausentou-se por vários dias, ausência essa que coincidiu com um período de fortes chuvas que inundaram os arredores do Instituto, as estradas e boa parte dos campos circunvizinhos. O tédio tomou conta de todos nós, como se a borrasca trouxesse para o Instituto a solidariedade que não havia nos dias de bom tempo. Quando o sol retornou estupidamente abrasador, sugando lépido todo vestígio de umidade, vários animais foram encontrados sem vida pelos campos. Participei depois, da cremação de inúmeros cadáveres já putrefactos, num grau de deterioração assustador, sem que nenhum motivo aparente explicasse esse fenômeno Nesta tarefa passamos grande parte da tarde e já anoitecia quando retornamos aos nossos alojamentos. Como não conseguia conciliar o sono, após o jantar resolvi, para espairecer, caminhar um pouco, aproveitando a noite calma e tépida que clara, apesar da ausência da lua, se mostrava lá fora. As estrelas espocavam tão brilhantes e densas que passei horas olhando absorto o firmamento. A claridade prateava os contornos das árvores e parecia fazê-las cintilar, como cintilantes se mostravam as gotas de orvalho esparramadas pelo chão.
_ Noite deveras bonita – ecoou atrás de mim a voz barítono de Felipe.
_ De fato – respondi, assim que me recuperei do susto; absorto como estava, não tinha percebido sua chegada.
_ Marisa, antes de partir, - retomou, como se de repente a beleza da noite não o sensibilizasse mais – entregou-me esta carta endereçada a ti, - disse passando-me um envelope sem remetente.
Ela se encontra na Alemanha e parece-me que demora a voltar – concluiu sorrindo e devo anotar que foi a primeira e última vez que o vi sorrir.
Vi quando ele se afastou e continuei imóvel em meu lugar como se esperasse alguma outra explicação.
Se a noite com sua majestade me fez esquecer Marisa, um calafrio a trouxe de volta e alertou-me para que não abrisse a carta. Perpassou-me a ideia de que alguma coisa se romperia se eu assim o fizesse. Quedei-me abatido como se o Empíreo fosse, a qualquer momento, desabar sobre mim.

VII

- O que dirias se eu te dissesse que a clonagem humana está bem mais próxima do que imaginas? – disse-me, Felipe, zombeteiro.
_ Diria que ainda acho que é uma possibilidade teoricamente viável, praticamente improvável e eticamente inaceitável – respondi com certo desdém, insinuando dar por encerrado, um assunto que já me aborrecia.
Felipe segurou-me pelos ombros, tentando me manter sentado. Exasperado, fulminou:
_ O que é ética? O que é a moral frente aos benefícios inimagináveis para a humanidade? Será e já é o fim das rejeições nos transplantes, a possibilidade de prolongar a vida humana e acredites: O início de sua eternidade. Bradou quase raivoso.
_ Dizes incongruências, _ ponderei_ o que sei é sobre o possível envelhecimento precoce, como já está acontecendo com animais clonados. E mais: Quem garantirá que o clone perfeito será possível?
_ Ninguém garante nada até hoje, Inácio. Podemos imaginar que um dia, a opção por doadores recairá sobre aqueles geneticamente mais saudáveis e num futuro próximo só este tipo de reprodução humana será viável. A ciência nesse sentido dá passos gigantescos e a possibilidade de um clone humano ser normal é infinitamente maior do que de uma criatura inferior.
_ Tu falas como se a reprodução humana já esteja sendo tentada...
_ O que dirias, repito, se eu te disser que hoje dezenas, ou melhor, centenas de clones humanos estão sendo engendrados?
_ Dissestes a palavra certa: engendrados, artificialmente humanizados. Mas eu continuo achando uma aberração absurda e desnecessária. E só gostaria de conhecer quem seriam as tais cobaias.
Ele pareceu engasgar-se. Depois de uma pequena pausa retrucou: Não usaria este termo. Aliás, o intercambio de material genético, de células embrionárias, não chega a ser nada aterrador...
_ Não falo desse tipo de cobaia, – disse interrompendo-o – mesmo porque, acredito que hoje em dia o dinheiro compra tudo, até a consciência humana. Não, de fato, não seria constrangedor... Refiro-me ao ser clonado. Ele que nada ganhou: Nem dinheiro, nem fama, nem sucesso. Aquele que nada barganhou; que não viveu nenhuma expectativa, terá que assumir a sua excrescência evolutiva sem saber de fato quem realmente é. Se forem centenas como dizes, a monstruosidade... Sim, assim a reputo, mesmo se todos forem perfeitos, a monstruosidade à que chegamos é apavorante.
Felipe não mais me respondeu. Acredito que tivesse uma porção de argumentos para isso, mas desistiu diante de minha teimosia ou guardava seus trunfos para outra ocasião. Suspirou fundo e como quisesse dar a entender que lastimava minha ignorância, retirou-se sem se despedir.
Antes de virar-se em direção à porta, perfurou-me com seus olhos gelados. Percebi, atrás daquela máscara vítrea, um rosto sombrio de profunda agonia.
Esse diálogo aconteceu dias antes do nosso encontro no jardim, quando, sorridente, me entregara a carta de Marisa.
Na carta _que só depois desse incidente a li_ Marisa, laconicamente confirmava que estava na Alemanha e me comunicava, em linhas que não revelavam nenhuma emoção, que se encontrava grávida de um filho meu. Terminava dizendo que retornaria em breve.
Ao lê-la fui tomado de uma estranheza quase imoral. Li como lesse uma página de ficção. Tudo, na carta, soava falso, transmitia, às léguas de distância, uma artificialidade que nada tinha de banal. Era, como todo o Instituto, toda asséptica e fria. E Marisa, se algum dia me interessou, passou, naquele momento, a não mais fazer parte de minha vida. Nem ela, nem seus projetos e por extensão, os do Instituto. Resolvi, então, que abandonaria aquele lugar o mais rápido que fosse possível. “Comunicarei Felipe sobre a minha decisão, amanhã cedo, tão logo termine meus preparativos para a viagem”, pensei de mim para comigo e dirigi-me ao quarto para tentar dormir.


VIII

Naquela noite que me pareceu interminável, revirei-me na cama até altas horas da madrugada. Minha decisão; a carta de Marisa; o diálogo com Felipe; tudo moía e remoia em meu cérebro sem que eu chegasse à conclusão alguma.
Procurei achar uma lógica para tudo aquilo. Parecia que me escapava, como uma flutuante bolha, alguma coisa que era óbvia e cuja obviedade só eu não atingia. As frases se sucediam repetitivas, tumultuadas, atemporais e quando me parecia que o sono se aproximava, elas o faziam recuar, fazendo-se em rápidos pesadelos, que me arrancavam da sonolência para de novo despertar. Despertava suando frio. Minha cabeça latejava parecendo que iria explodir.
Levantei-me, tão logo percebi que clareava e tive a impressão que tinha permanecido, ali, estirado na cama, por vários dias. Pensei em procurar de imediato Felipe, mas foi ele que veio ao meu encontro, assim que abri a porta. Conclui que já me aguardava do lado de fora.
- Inácio! – chamou-me sibilamente, com voz de pesar – vim comunicar-te uma grande tragédia: Recebi pelo rádio, agora a pouco, a notícia de que Marisa se envolveu num grande acidente, quando se dirigia para o aeroporto de Frankfurt.
- E ela, como está?
- Infelizmente, tudo indica que não sobreviveu. O carro em que estava incendiou-se após o impacto com um coletivo. As cenas que vi pela TV deixaram-me poucas esperanças!
Deixei o Instituto na certeza de que jamais retornaria. A notícia da morte de Marisa confirmou, sem sombras de dúvida, minha indiferença por ela; diria até, a minha aversão a uma pessoa indigna de qualquer pesar. Porém esse sentimento, ou a ausência da qualquer afeição a uma pessoa que nos era íntima, não revelaria, também em mim, uma falha de caráter? Seria exequível separar a pessoa difamada da difamadora? Como poderia a minha pseudo simpatia diluir-se na antipatia dela? Na verdade com sua frieza, eu me tornei mais frio e no seu egoísmo refletiu-se o meu. Sem máscara, sem eufemismos.
Não sei se enquanto ruminava esses pensamentos, procurando no espelho da ausência de Marisa, os reflexos de mim mesmo, se eu já vislumbrava as pegadas do pesadelo final que já me batia à porta. Depois tudo ficou tão evidente, que seria até constrangedor confessar que eu nada suspeitasse. Na verdade todas as pistas tinham sido dadas e tenho que admitir que eu apenas não as queria enxergar. Não me foi arrancado o olho à revelia; deixei-me cegar.
Eu não conseguia mais precisar com certeza o desenrolar dos fatos. Tentando, porém, fugir do mundo que se tornara estranho e assustador, refugiei-me neste vilarejo, antes inóspito, mas que com o tempo foi criando em sua volta outras casas, outras vidas, outros pesadelos.

IX

O crepúsculo aurorrubro, moroso, não se fazia esvanecer, como se o sol pressentisse que aquele diálogo se aproximava do fim. Inácio foi tomado de uma súbita ansiedade que lhe embargou a voz, parecendo lutar com as emoções de suas reminiscências ao evocar o desfecho de seu pesadelo; pesadelo cuja materialidade se daria com a reaparição de Marisa.
Ele nunca acreditara em sua morte. Não porque não fora vê-la em seu ataúde; nem com certeza, porque não queria acreditar nela. Mas, em seu íntimo, tinha a convicção de que ela, Marisa, nunca morrera. E, por não querer mais nenhum laço com aquele passado, para ele, já tão distante, pensou simplesmente em tentar esquecê-lo.
Ele tornou a vê-la numa manhã em que já tinha decidido se afastar do ar asfixiante da cidade, convicto de que toda essa loucura que introspectaria como sua, se ligava à loucura dos habitantes dos grandes centros. Intuía que só o isolamento o redimiria; mas entre a vontade e o gesto, instalou-se o inusitado e como tudo que é inusitado, o acontecimento lhe causou mais espanto que incredulidade. Quando a viu, ela não o notou. Caminhava apressada como sempre e Inácio movido por uma curiosidade que chegava a morbidez, decidiu segui-la à distância, embora tal precaução fosse desnecessária, pois com a pressa que ia, ela jamais o perceberia.
Chegando ao edifício de destino, Inácio hesitou em entrar. Faltou-lhe coragem, talvez. Vagou, então, durante horas pelas calçadas, visitou bares, folheou jornais. O pesadelo anunciado, que já penetrava suas entranhas, agora lhe cortava o ar dos pulmões. Um início de vertigem fê-lo decidir a tomar o elevador e enfrentar seus temores. Quando entrou na antessala de um dos escritórios, notou uma porta entreaberta. Lá dentro, Marisa examinava minuciosamente um garoto com idade indefinível, em cujo semblante, Inácio constatou um ar de imbecilidade. Quando a criatura dirigiu-lhe o olhar, ele sentiu-se tomado de pavor. Recordou-se de sua odiada imagem no espelho do hospital, quando ainda debatia-se com os fantasmas de suas alucinações.
O menino era ele quando jovem, mais num corpo que se desenvolvera muito além da sua cronológica idade. Os anos passaram para aquela criatura numa velocidade bem maior que a normal e o cérebro não acompanhara, com certeza, esse desenvolvimento tão precoce.
Marisa sobressaltou-se ao sentir a sua presença e atemorizou-se com ela, como alguém que é flagrado em indisfarçável delito. Quando conseguiu se recompor, suas palavras não encontraram eco nos ouvidos de Inácio. Ele já compreendera tudo antes mesmo que ela tentasse lhe explicar... Se é que ela tentara de fato isso.
Já no ônibus, de volta para casa, Inácio não mais se recordava de como se retirou dali e nem as reações de Marisa ou as do menino bestializado. Só veio-lhe a mente o diálogo tido com Felipe e a palavra cobaia trespassaram-no como um raio. Ele fora usado como cobaia e como cobaia Marisa tratava a criatura que dele fora clonada.
O Instituto não existe mais; foi abandonado por Felipe e seus funcionários, logo após o retorno de Marisa. Suas estruturas, sempre tão asseadas e limpas, foram tomadas pelo mato e pela podridão. Inácio jura que não mais se recorda da sua localização, nem do paradeiro de nenhum de seus antigos habitantes.

X


- Ao exorbitar-se em seu livre-arbítrio, a criatura estarreceu seu próprio criador. Deus – quase gemeu Inácio, ao pronunciar essa palavra – se existe, e de repente voltei a acreditar nisso, abandonou sua criação. Em outras palavras: Deus pendurou as chuteiras e a Terra está à deriva. O Ser Único, Imóvel, Indivisível e Eterno, num ato de desprendimento, desgosto ou enfado, deixou para a sua criatura a imobilidade que precede o caos.
O padre riu, sem transparecer ironia, do paradoxo do mais tardio discípulo de Zenão. Poderia, pensou, para contrapor-se e lhe demover de idéias tão estapafúrdias citar Platão, seu demiurgo e seu caos inicial. Ou até apelar para a teologia cristã, mas achava-se, aquela altura, cansado demais para filosofar. E mais: o que diria a Inácio se suas próprias e mais caras convicções diluíam-se como num passe de mágica?
Na verdade, deduzia, o que Inácio não chegou a compreender era que a busca do homem eterno, que destoava da asséptica sordidez do Instituto e da frieza de seus gestores, podia vir a ser o trágico fim da humanidade; o que destoava do que preconizara fanaticamente Felipe.
- Sua história é fantástica – comentou já caminhando de volta a guisa de despedida e de longe completou: - Mas ainda prefiro acreditar que estou enlouquecendo.
Não procuraria mais explicações, e sim dormir e quando acordasse esse pesadelo teria acabado.
Inácio sorriu aliviado. Seus olhos perscrutaram o horizonte, onde os últimos raios solares teimavam em não se apagar e ardiam como que congelados. Na paisagem em volta, porém, tudo se consumia em trevas, sem um único som.
A Terra, estática, se emudecia.*

*Conto Escrito em 2001