sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Meu Tempo V - Espelhos

 ESPELHOS

É necessário ter certo zelo para escrever. A caligrafia, por exemplo, deve ser escrita com um mínimo de capricho e clareza. Principalmente na era da computação em que vivemos, onde escrever à mão virou requinte, quase um ritual sagrado. A escrita nos proporciona um deleite que a digitação nos nega. Uso “nós”, pois creio piamente não ser o único a não sucumbir diante da tela fria do computador. Prefiro ainda, como Mario Quintana, a mesa de um bar ou a de um canto solitário de mim mesmo, sentindo o calor da caneta nas mãos e confesso arrependido que, por desleixo ou apego ao micro, deixei de escrever e um dia notei que a minha caligrafia tinha se deteriorado. Não que minha letra alguma vez foi bela, nem impecável, longe disso, sempre foram garranchos disparados de meus dedos deselegantes, porém sensíveis. Mas, aí percebi que mais que as letras, eram meu cérebro e meu coração que aos poucos se atrofiavam. O pensar a escrita estava desaparecendo, acuado nos emaranhados de meus e-mails, maus escritos e gélidos. Voltei a escrever em papel, lento e cautelosamente, por sentir que só neles poderia descrever que essa vida, passada tão rápida no ritmo endoidecido dos anos, não deixa-nos de acumular de experiências, histórias e vivências.
Deslocando-me de novo no tempo para que eu possa apurar, do lento destilar da vida, os fatos que me fizeram e com os  olhos perdidos numa rodovia que se estende tortuosa para além desse meu olhar,  enquanto sorvo lentamente uma cerveja, procuro as imagens vivas_ que vivo me mantém_ nas árvores súplicas das estradas. Vislumbro as paisagens de outrora sem o cheiro do asfalto, dos combustíveis e do dióxido de carbono que nesse tempo de destruição, inclemente, mata-as aos poucos e consigo resgatar, para além do caos que as deterioram o florir das ramagens nas taipas e nos telhados de uma velha casa à beira da estrada, que em seu madeiramento gasto e carcomido o acolhe, como se quisesse reafirmar que só por mim elas se refazem, essa paisagem que se repete ao longo da estrada, refazendo-se e se multiplicando como se quisesse me surpreender, levando-me a pensar em quantas vezes nos surpreendemos com a repetição de fatos _ nesse caso, quase nada assimilamos dos erros anteriores; lamentamos, depois, não tê-los evitados,_ pois a vida quase sempre é tão repetitiva e banal que coisas relevantes acabam passando despercebidas como leituras mal lidas de algum livro que só perceberemos de sua singeleza com o olhar do amanhã. Quando, porém, nos vemos em relatos daqueles que admiramos, embora sem razão ou alguma consequência disso_ como se tal fato de alguma maneira nos colocasse no patamar deles_ ficamos por assim dizer, envaidecidos. Pelo menos três instantes eu guardo sobre isso: primeiro Umberto Eco em “O que creem os que não creem”, quando diz ter nascido católico e levou boa parte de sua vida, para se desapegar de sua religiosidade; depois, Florestan Fernandes quando relata sua infância como engraxate e as estórias que viveu ali de companheiros até mais pobres que ele e como apesar de todas as vicissitudes da vida conseguiu sobrepujar-se através da leitura e dos estudos e por ultimo, Mário Quintana ao falar de suas passagens por bares e de escrever em suas mesas (no seu tempo, mesas de mármore) os seus poemas para no dia seguinte melhorá-los ou, simplesmente descartá-los. Pequenos fatos como esses perpassaram a minha vida e por mais fúteis que foram fizeram parte de mim e é quase divino vê-los descritos por tão admiradas figuras. Como Florestan Fernandes, convivi com engraxates, embora não fosse um deles, mais corria para com eles para brincar nos intervalos das minhas missas diárias, que assistia como coroinha. Humildes, não conseguiam vislumbrar em suas vidas, salas de aulas. Como Umberto Eco fui católico e me livrar das crenças foi um ritual longo e penoso e como ele acho que “a ética de um leigo que não crê na recompensa divina, tem como pressupostos sua própria condição humana e seu respeito a sim mesma e a defesa à dignidade leva cada homem à defesa de outro” e nesse sentido, qualquer religiosidade é plenamente desnecessária. Escondi-me, por fim, como Mario Quintana, nos bares da vida, escorregando minha caneta nos guardanapos de suas mesas e quase tudo que escrevi ou pelo menos boa parte dele, sairia dali. Essas recordações extasiam-me agora e minhas meditações só são parcialmente interrompidas pelo gargalhar das pessoas, que como eu,  purificam suas vidas numa mesa de bar e tentam assim esquecer, um pouco, os aborrecimentos cotidianos.

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