segunda-feira, 10 de abril de 2017

Um pequeno conto de terror: O energúmeno - Cap.II

Tudo começou naquela tarde em que o negrinho Quinzinho deu com os olhos no rosto triste e pálido de Carolina e estranhou aquela pele branca em excesso, tão fina e transparente, que através dela dava para ver todas as veiazinhas azuis e nos seus olhos transluzia uma pureza diáfana, que chegava até a dar medo que o ar do sertão pudesse maculá-la.
Quinzinho nos seus dezessete anos, maroto e ligeiro, (teve o azar de nascer um ano antes da promulgação da lei que o libertaria)1, gostava de aprontar das suas e no canavial só era visto, se não tivesse tido jeito algum de se safar e safava-se não só do trabalho duro dos ancinhos e enxadas, mas de qualquer serviço corriqueiro que lhe mandassem fazer e não havia capataz ou capitão do mato que conseguisse encontrá-lo; como se tivesse parte com o tinhoso, simplesmente sumia antes que dele dessem conta. Por simpatia, comiseração ou por que era divertido vê-lo por em polvorosa toda a capangada de Telúrio e até o próprio, seus irmãos e companheiros o protegiam e seu pai por várias vezes recebera nas costas o castigo que seria dado em seu endiabrado filho.
Naquela manhã, porém, Telúrio, o filho, pegara-o antes que tivesse tempo de se escapulir e o levou até a capital da Província para que carregasse as malas da irmã. Quando Telúrio Filho abraçou a irmã, pondo nesse amplexo tamanho ardor e saudade, que parecia que a esmagaria em seus braços de gigante, Quinzinho, por trás desses músculos e ombros, conseguiu contemplar aquele rosto pequeno, alvo como porcelana fina, que os arroubos do irmão pincelavam de círculos vermelhos, quase rosa. E o menino irrequieto, quedou-se pasmo, embevecido com a cativante beleza da recém-chegada e, para ele, tudo também se fez rosa durante a viagem de volta, extasiado e bambo em cima do estribo, fazendo trotar molemente os animais pela poeirenta estrada que os levaria à fazenda. Os irmãos, ávidos em contar todos os pormenores da vida que separados levavam, quilometricamente em distância e tempo, não cansavam de tagarelar e com isso não deram conta dos devaneios do negrinho, nem do ritmo lerdo dos animais.
Chegando ao destino o crepúsculo já ardia vermelho e a passarinhada já revoava aos seus ninhos esvoaçando-se no céu azul-escuro dourado, prenunciando uma noite tépida de verão.
João Telúrio recebeu a filha sem alardes, quase a contragosto, antevendo o estorvo que seria para ele aquela criatura frágil e doentia naquelas terras selvagens e separadas do mundo. Os escravos, no entanto, receberam a novidade com uma festa, afoitos por conhecerem a filha do senhorio, suas ricas roupas, suas maneiras refinadas e seu leve sotaque afrancesado, que tão bem combinava com os seus olhinhos de espanto e até altas horas da noite uma algazarra festiva tomou conta da Casa Grande e se espalhou por toda a fazenda, antes sempre taciturna, sombria e silenciosa.
Os primeiros raios solares estupefatos encontraram o Quinzinho já acordado e para maior espanto ainda, avidamente trabalhando. Tal vivacidade era algo inédito e por muito tempo ninguém atinou a sua origem. Quinzinho se apresentou para ordenhar as vacas, alimentar os porcos, depois para limpar os estábulos e para todas as outras tarefas que, coincidentemente, o mantinham nos arredores da Casa Grande. Mesmo sem entender o porquê de tamanha mudança, o filho mais velho do fazendeiro, vendo com bom grado a disposição do rapazola nem cogitou em mandá-lo para o canavial, pensando _ “Antes assim do que trabalho nenhum".
Apesar de pouco se falarem, criou-se entre o escravo e a sinhazinha uma cumplicidade, refletida apenas nos olhares esquivos, por parte do negrinho e maliciosamente ingênuos, divertidos, no rosto da menina e desse conluio nasceu uma pueril amizade que aos poucos foi perdendo a timidez.

1 Lei do Ventre Livre.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

O ENERGÚMENO - Cap. I

I - A PASSAGEM DE CAROLINA

Se por ventura você se deparar um dia com a casa de número 120, na Rua Boa Vista, nesta cidade de Mogi das Cruzes, notará que essa construção é só de taipas, barro e taquaras, hoje maquiada com reboco e tinta. Curiosamente, ela não possui janelas na frente e a porta de madeira também é outra, pois a antiga, feita de taquaras e cordas, trançando-as transversalmente, desfez-se com o tempo. Toda desengonçada, essa construção compunha-se de uma sala com menos de seis metros quadrados; um corredor exíguo; um quarto um tanto comprido, comparando-se com resto da casa e subdividido por uma divisória de madeira que não alcançava o teto, por certo para facilitar a ventilação e por fim, uma pequena cozinha com uma porta baixa e estreita e uma ínfima janela também de madeira. Foi lá, debaixo de um telhado de telhas velhas e enegrecidas, que vivi meus primeiros anos de vida, com meus pais e nove irmãos.
A construção ao todo não tinha mais de trinta e cinco metros quadrados, um terreno disforme de menos de setenta, aonde o ar penetrava trepidando os pés de cana de açúcar e ia uivar barulhento, quando ventania, num alçapão mal encaixado na parede da cozinha, ao final do afunilado corredor. Esse alçapão tinha um aspecto lúgubre com suas tábuas estorricadas, como que lambidas por estranhas labaredas, atiçando mais nossas infantis e aterrorizadas mentes que o povoava de bruxas e demônios. Iguais a essa casa havia outras, que juntas, arrimavam-se recíprocas para não desabarem e que em nossos pesadelos agigantavam-se em um único e medonho casarão, muitas vezes sem saída.
Dizia-se que aquelas casas foram construídas por mãos escravas num tempo em que os primeiros colonizadores apareceram pelas terras de Piratininga e ergueram, poucos anos depois, uma das primeiras vilas da Província de São Paulo e foram palco de muitas histórias e tragédias, algumas verídicas, outras nem tanto, inspiradas pelo estilo medonho das construções.
O que vou relatar não fez parte de nossos pesadelos, mas sim, consta da memória dos descendentes daqueles que participaram dos sinistros acontecimentos ocorridos nas últimas décadas do século passado, época em que o lugarejo já se elevara à condição de Vila e essas casas, hoje beiradas por ruas claras e urbanizadas, faziam parte da senzala de uma imensa fazenda onde predominavam a cultura da cana-de-açúcar e caqui, entre outras menores como o café e a mandioca.
Fazenda subdividida em terras arrendadas que se espalhavam até os limites da Serra do Itapeti e circundada por inúmeras chácaras que iam desembocar na vila propriamente dita, que tinha o seu marco de origem a poucas centenas de metros dali, em frente a que seria depois a singela Matriz de Sant’Anna, rodeada de ruas bucólicas e pequenas praças. Para não nos estendermos além do cenário que emoldurou os episódios que aqui serão narrados, vamos caro leitor, retornar ao principal palco desta história.
Nas dependências daquela casa de chão batido que há menos de quarenta anos atrás, foi por minha mãe atijolado para que seus filhos desfrutassem de ínfimo conforto e menos umidade, viviam na época, duas famílias de crioulos, que se somados com os outros habitantes das outras três casas, totalizavam 27 pessoas, entre elas, onze mulheres e com uma particularidade, rara nos anais da história escravocrata brasileira, compunham-se de famílias inteiras e se faltavam alguns de seus membros fora devido a mortes naturais ou maus tratos e não como a maioria dos negros africanos chegados às terras tupiniquins, que para que se cortassem laços de solidariedade, dizimassem suas culturas e vínculos tribais, ou por outros torpes motivos, principalmente mercantis, era utilizada nas regiões do Brasil Imperial com as famílias desmembradas e, com exceção dos filhos de colo, os irmãos eram vendidos separados e os filhos, sem os pais.
Eram, portanto, cinco famílias a labutarem no plantio e corte de cana, no engenho, na colheita de caquis e demais tarefas da fazenda e alimentadas com caquis, mandioca, farinha e gordura; aliás, idêntica ração dada aos porcos que a eles, obviamente, cabia também alimentar.
Conta-se que por aqueles tempos, meados do século XIX1, João Maciel Telúrio, dono de imensas propriedades nesses confins e logicamente destas terras, de suas senzalas e das famílias dos negros que nelas viviam, trouxe de volta de Paris sua filha Carolina, menina ainda com seus quinze anos, tísica, de uma alvura imaculada, um sorriso triste e quiçá encantador e de uma educação esmerada, frutos de seus estudos no estrangeiro, interrompidos devido ao agravamento de sua doença e do declínio repentino da fortuna da família, já em sensível decadência. Telúrio até então, esforçara-se para cumprir os compromissos financeiros assumidos com médicos e professores pelo seu cunhado e procurador, lá em terras francesas.
Tinha a pequena uma beleza ímpar realçada por indiscutíveis fragilidade e leveza, o que destoava de seu pai, mameluco rude e de uma força descomunal. Sua falecida mãe, Camile, de origem francesa, de quem a filha herdara todos os atributos e enfermidades físicas, morrera ainda jovem e rogara no leito de morte que a menina recebesse uma educação peculiar longe do que ela chamava das grosserias luso-tupiniquins, pedido este regiamente atendido até aquele dia.
Telúrio, aos cinqüenta e cinco anos de idade, cento e vinte quilos e mais de 1,80 m de altura, tinha além de Carolina, dois mancebos de 13 e 23 anos. O mais novo, Thiago, estava de malas prontas para prosseguir seus estudos no Rio de Janeiro, uma vez que por aqui, segundo palavras do próprio Telúrio, "mau e porcamente” a gurizada tinha condições de concluir o primário, pois aulas, só quando o tempo e as condições da estrada permitiam. E mesmo assim quando, arcando com todas as despesas, o velho fazendeiro conseguia trazer e manter uma professora num tosco barracão improvisado de Escola e que atendia também os filhos dos pequenos sitiantes e colonos do lugar. Transferi-lo para o Rio, onde morava sua irmã e alguns parentes de sua mulher, era sem dúvida a única alternativa viável para realizar sua ambição de ver pelo menos um dos seus filhos se “tornar” doutor, já que o outro há tempos abandonara os estudos. Agigantado como o pai, porém de um coração tão grande quanto acalentador, João Maciel Telúrio Filho, gostava mesmo era de embrenhar-se nas matas à caça de gambás e tatus toda vez que os pequenos afazeres da fazenda e a renhisse do velho deixava. Era muito afeiçoado aos escravos e sempre que necessário intercedia por eles junto ao pai; prática essa que o tornara uma pessoa muita bem vinda e respeitada pelos negros que não se faziam de rogados para procurar sua ajuda.
Se o embrutecido Telúrio não via com bons olhos tal magnanimidade do filho, parecia não ter muito empenho em proibi-lo dessas amizades; no fundo entendia que essa camaradagem tornava os negros senão mais dóceis, pelo menos não tão aguerridos. Mesmo porque naquele rincão longínquo, seria quase impossível repor a mão de obra escrava, pois a Capital da Província de São Paulo ficava a mais de quarenta quilômetros atrás de serras e picadas, quase intransponíveis no lombo dos animais e os rios eram estreitos e traiçoeiros e de maneira alguma, navegáveis. Por seu lado, os negros tinham consciência que dificilmente teriam para aonde ir naquelas terras perdidas, que bordeavam o rio que os índios chamavam de "M'boygi”, Rio das Cobras.
Abalroados por tais contingências a vida naquela fazenda e por extensão naquele pequeno vilarejo, seguia dolente, quase se arrastando em dias intermináveis que qualquer incidente podia se transformar em convulsões inimagináveis. Mas ninguém poderia imaginar que tamanha hecatombe pudesse ocorrer, tirando o sossego daquele marasmático lugar.



1 Na realidade a instalação da Vila deu-se em 1611.

quinta-feira, 30 de março de 2017

QUEDO


Que
do
-me.
Meu
cor
po
em
que
da
li
vre
...Cai.

Em
queda
meu
corpo
...l
i
v
r
e
cai.


outubro/95



quarta-feira, 22 de março de 2017

Fora de Tom - 1990

FORA DE TOM



É proibido ser triste
Precisamos ser revolucionários
Otimistas.

(Caiu o Muro de Berlim)

É proibido ser triste
É preciso ser mercenário
Capitalista.

O braço do operário
Sangra em minhas veias
e não nas veias do capitalista
que o mutilou. E daí?

Tudo agora é só palavra oca
cheirando a mofo.
Fora de tom.
O desabafo já mudou de rumo.

Não luto mais pelos negros. Sou branco.
Não luto mais pelos excluídos. Alienei-me.
Não luto mais por causa alguma. Sou niilista.
Pela vida não luto mais.
Parto-me
Daqui.



terça-feira, 14 de março de 2017

Poema de Pé Quebrado



O apressado como cru.
O retardado come frio.
O ansioso morde a língua.
O atrasado perde o ônibus.
O afobado desce em ponto errado.
O distraído morre atropelado.

E João fez tudo isso
porque estava apaixonado.
E Maria, coitada,
continua sozinha
do outro lado da rua.
Na rua dos Desafortunados.


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

As lutas de classes e golpes no Brasil


Hoje, é comum , políticos de várias tendências e partidos citar o “Estado democrático de direito” referendado pela Constituição de 1988, como resistência ao totalitarismo. Mas nem sempre foi assim. A segunda guerra mundial dividiu o mundo entre países “democráticos ” e países ditos “comunistas”. O Leste X Oeste. De um lado os países sobre a influência da URSS e do outro os países sobre a tutela da USA e mais que isso, foram divididos militarmente entre o Pacto de Varsóvia, dos comunistas e a OTAN, dos países ditos liberais. Tratado só possível pela beligerância que separou não só países como civilizações e mais estupidamente: Estados e até famílias, como o que ocorreu na Alemanha com o muro de Berlim, só derrubado em 1989.
A democracia só faz sentido, hoje, se der à todos o direito de ser julgado com amplo direito de defesa e o mais fundamental, dar garantia de escolha, individualizando os direitos.
A guerra fria calou, de ambos os lados, todas as vozes e dividiu o mundo na dicotomia das armas. E pior: com bombas nucleares que só poderiam manter a paz pelo terror. Caçar comunistas, como declarar como ilegais seus partidos, tanto no Brasil, como na América Latina _quintais americanos_ tornou-se regra de uma só ideologia. Ideologia imposta a nações e povos, sem dar chance de questionamentos.
O imperialismo pós II Guerra inovava no sentido de quebrar a resistência do país ultrajado sem perguntar ao seu povo se seria favorável a tal doutrinamento. Não seria implantado por invasões ou guerras, mas pela complacência dos governantes dos países nativos, que viam em sua geopolítica uma necessidade. Para o Estado Novo e para os militares, que assumiram o poder em 64, não havia antagonismo entre a guerra contra o comunismo e a vontade de fazer do Brasil uma grande potência. As lutas de classes, então, são sufocadas no mundo pelo nacionalismo das mais diferentes matizes.
Confirmada a divisão do mundo entre comunistas e liberais o caça as bruxas foi ativada pelo mundo afora. Em 1966, já dentro do Regime Militar, o Ato institucional n. 2, limitou as garantias e os direitos individuais e dissolveu os partidos políticos. De março de 1967 até 13 de outubro de 1968, com o AI-5, o Brasil viveu sobre a Constituição de 1967, promulgada por um Congresso controlado pelos militares e que queriam dar ao golpe ares de legalidade e normalidade.
Vale lembrar que o golpe gestado pelas elites e consagrado pelos tanques da Redentora, começou a ser gestado com o suicídio de Getúlio Vargas, negando-se a renunciar. Ou seja, só saímos de fato do Estado de Exceção, depois da Constituição de 1988, finalmente uma Constituição democrática. Os partidos comunistas só foram legalizados em 1985. O que prova como a nossa democracia é frágil e de vida curta.
O livro Ideologia de Segurança Nacional do Pe. Joseph Comblin traz em sua introdução “O fato que mais conhecemos sobre os sistemas militares latino-americanos é sua permanente prática de violação, quase institucionalizada, dos Direitos do Homem, levando ao desaparecimento das liberdades democráticas e dos direitos individuais . (...) Essa ideologia chama-se : Doutrina da Segurança Nacional”.
O fim dos regime militar no Brasil não significou por si só, o fim da Ideologia de Segurança Nacional e seus entraves e sua geopolítica perduram não só na cabeça de militares e das elites, mas estão enraizados em parte significativa da população e de muitos de seus representantes parlamentares. Mas é no Judiciário, o mais conservador dos poderes, que se dá os maiores entraves à democracia.
O sofisticamento do golpe parlamentar desfechado contra o governo Dilma, apesar da ausência, ainda, dos tanques nas ruas, começou em 2006, com o processo do "mensalão", que condenou inocentes e culpados  e só não foi deflagrado na época pela liderança e popularidade inconteste do presidente Lula. Mas a semente já estava plantada e o Judiciário já sabia o seu papel. Com a minoria parlamentar de Dilma no Congresso e a massa manipulada nas ruas em 2013, o desfecho dificilmente seria outro.


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

A Desconhecida Conexão Cósmica


Para criar a primeira célula
dita humana, um espermatosóide
carregando 23 cromossomos
faminto e alucinado
recompõe toda epopeia evolucionária
_ graças ao óvulo
imenso e benevolente
também com outros 23 cromossomos
disposto a saciá-lo e
deixa-se unir-se a ele_
disputando com outros milhões
um projeto de ser vivo.

Alavanca-se depois, miríades de moléculas
que nem se davam conta de serem compostas
de carbono, hidrogênio, oxigênio
nitrogênio, fósforo e enxofre
herdados de estrelas que você mal vê.
O processo todo formou-se em células
que se duplicou em trilhões
e  sem ter consciência disso
formou você
pobre ser ignorante de tudo.
Daí, criar-se fábulas e deuses
foi a coisa mais fácil do mundo!


Fevereiro/2015

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

A Origem da Vida


Stephen Hawking, em seu livro o Grande Projeto nos narra a seguinte lenda: “O povo bacuba da África Central, conta que, no princípio, havia apenas escuridão, água e o grande deus Bumba. Um dia, Bumba, em consequência de uma dor de estômago, vomitou o Sol. O Sol secou a água e apareceu a terra seca . Mas as dores de Bumba continuavam e ele vomitou ainda mais . Assim surgiram a Lua , as estrelas, e então alguns animais _ o leopardo, o crocodilo, a tartaruga e finalmente o homem.
Na Bíblia judaica-cristã lemos: “No dia em que o Senhor Deus fez o céu e a terra, ainda não havia na terra nenhum arbusto do campo e a vegetação ainda não tinha brotado, porque o Senhor Deus não havia feito chover sobre a terra, nem havia ninguém para cultivar o solo. Mas subia um vapor da terra e umedecia toda a superfície do solo. Então o Senhor Deus formou o ser humano do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida e ele tornou-se um ser vivo”.
Os evolucionistas e os astros-físicos têm explicações muito mais interessantes:

“A origem da vida foi a origem da verdadeira hereditariedade; poderíamos dizer a origem do primeiro gene (a mais ou menos 4,5 bilhões de anos). Apresso-me a dizer que, quando digo primeiro gene, não me refiro a primeira molécula de DNA. Ninguém sabe se o primeiro gene era feito de DNA, e eu aposto que não era. Como primeiro gene quero dizer o primeiro replicador. O replicador é uma entidade, por exemplo, uma molécula , que forma linhagens de cópias de si mesmo. Sempre haverá erros nas cópias. E assim essa (primeira) população adquirirá variedade. (…) A origem de um replicador deste tipo não foi um exemplo provável, mas só teve que ocorrer uma vez. Dali por diante, suas consequências foram automaticamente autossustentáveis, e eles daí se originaram e pela evolução darwiniana, todas as formas de vida (…) O que é único no primeiro replicador, aquele que desencadeou a vida, é o fato de que ele não tinha nenhum suprimento pronto de coisa alguma que tivesse evoluído, sido projetada ou educada. Funcionou imediatamente , ab initio, sem precedentes e sem outra ajuda que não as leis comuns da física.
Uma poderosa fonte de ajuda para uma reação química é um catalisador, e seguramente , alguma forma de catálise esteve presente na origem da duplicação.(...) Catalisadores, são em geral grandes moléculas de proteínas, chamadas enzimas(...) Catalizadores, por definição não são consumidos na reação química que promovem, mas podem ser produzidos. (...)Uma reação autocatalítica não começa facilmente , mas, uma vez desencadeada, desenvolve-se por conta própria. (…) A hereditariedade (então) como uma reação fortuita de um processo auto-catalisador, (...)disseminou como um fogo, levando por fim a seleção natural e tudo que se seguiu”.
A grande história da Evolução, pags 647 e 648- Richard Dawkins.

*
“Os astrobiólogos nos dirão com honestidade que esta questão não tem uma resposta simples ou aceita de modo geral. (…) Seja qual a característica que especificamos para separarmos a matéria viva da não viva sobre a Terra. A vida se reproduz? O fogo também. A vida evolui para produzir novas formas? Isso também se observa em certos cristais que crescem em soluções aquosas. (...) No entanto, a vida tem conjuntos de objetos que podem se reproduzir e evoluir (...) mas, para serem qualificados como vida devem se evoluir em novas formas com o passar do tempo.
A maioria dos paleobiólogos acredita que a vida deve ter surgido pelo menos há três bilhões de anos e provavelmente há mais de 4 bilhões de anos (…) Por uma estranha coincidência, a época ausente no registro geológicos que inclui a origem da vida também abrange a assim chamada era dos bombardeamento, que cobre aquelas primeiras centenas de milhões de anos críticos depois da formação da Terra (…) Como esses impactos afetaram a origem da vida? Os biólogos nos dizem que talvez eles tenham desencadeado tanto o surgimento como a extinção da vida sobre a Terra, não apenas uma vez, mas várias vezes. (…) O bombardeamento cometário (que trouxe do espaço todos os elementos necessário a vida: hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, uma menor quantidade de fósforo, e principalmente o carbono, entre outros ) parece , portanto, ter fornecido para a Terra parte da água de seus oceanos e o material com que a vida podia começar”.
Origens: catorze bilhões de anos de evolução cósmica; pags: 245 a 247 – Neil deGrasse Tyson.



terça-feira, 31 de janeiro de 2017

A Luta pela volta da Democracia

      
Apesar de não ser mais filiado ao partido ouso comentar sobre ele nesse momento que a democracia é tão agredida pelo governo golpistas e se esbarroa no país. Lembro-me de uma artigo publicado pelo saudoso e brilhante companheiro Plínio de Arruda Sampaio, escrito em 2000, na Folha de São Paulo, falando da luta do povo brasileiro durante os 500 anos de Brasil, dizia que a luta para a fundação do PT tinha, com certeza, esses mesmos 500 anos.
Faço minhas as suas palavras, pois o PT, um partido surgido dos trabalhadores, com os trabalhadores e para os trabalhadores, tinha o calor e os suores das lutas de todos os brasileiros e se fez como um dos partidos mais democráticos do país. Ainda hoje representa o avanço na política brasileira e por ele ainda passa a luta de classes no Brasil.
Mas, cabe neste momento auto-crítica e uma estratégia de luta contra o arcabouço montado pelas elites no poder. Escrevi conjuntamente com Inês Paz, em 2004, um artigo que aqui reproduzo um pequeno texto:
A luta popular e sindical, que teve um papel fundamental no final da década de 70, na aglutinação de todos aqueles que lutavam contra a ditadura militar __ lideres socialistas de organizações que retornavam da clandestinidade, do movimento contra a carestia, as organizações eclesiais de base da Igreja, agrupamentos de esquerda gestados em pleno regime militar e outros anteriores a ele__ e debatiam a criação de um instrumento de luta que fosse capaz de organizar os trabalhadores, os excluídos, enfim, o povo, visando à transformação social do país.
Todos esses anos de lutas que culminaram com a eleição de um operário para presidente do Brasil, mostraram que estávamos certos.
Porém, como falou o deputado federal Ivan Valente em nota divulgada conjuntamente com Plínio de Arruda Sampaio, meados de 2004: O PT esgotou seu papel como instrumento de transformação da realidade brasileira. A manutenção da essência da política econômica do governo anterior frustrou boa parte dos militantes e apoiadores que esperavam mudanças...”
E cabe acrescentar agora: O governo Lula, eleito para ser a esperança do país, teve avanços na redistribuição de renda e na diminuição da miséria ou seja, na inclusão social. Falhou na democratização da mídia, monopólica desde os tempos da ditadura e em não alavancar, com a sustentação dos votos e a popularidade que conquistou, as mudanças radicais na política brasileira. Mudanças essas necessárias e urgentes. E mais, para mim Lula e o PT erraram por não saberem usar a democracia em benefício das forças populares. Por mais paradoxal que pareça, por ser democrático Lula, com oitenta por cento de popularidade e o Congresso quase à mão, acertou ao não querer se perpetuar no poder a exemplo de seus colegas sul-americanos: Ivo Morales na Bolívia e Hugo Chaves na Venezuela; mas errou ao aceitar as regras democráticas vigentes, dando poder maior ao Ministério Público e liberdade de ação as promotorias e a PF e incentivou a criação de partidos (evangélicos, principalmente). Como consequência entregou um governo para Dilma sem base parlamentar e cercada de fisiologistas e corruptos. Assim fragilizado o PT deu espaço as manobras do impeachment e foi acuado pela grande mídia. Com um pulso mais firme tudo isso poderia ter sido evitado. Ou seja, a esquerda esqueceu de ler Maquiavel (frase que pego emprestado de Carlos Henrique Vieira Santana, no La Monde) e a arte de bem governar. Agora temos que esperar que o massacre ao seu principal líder dê uma trégua para que a democracia vença novamente com eleições diretas e a saída dos golpistas, ou o que é mais provável, com a volta de Lula em 2018, para dar um basta no entreguismo e na delapidação do patrimônio público, bem como resgatar os princípios da Constituição Cidadã, hoje adulterados. E mais que isso: Elaborar uma plataforma de mudanças radicais que volte a empolgar o povo, democratizar o acesso à mídia e sacramentar o poder popular. Isso se a Casa-grande e sua poderosa mídia não conseguirem impedir.







terça-feira, 24 de janeiro de 2017

A ÁRVORE


Como descrever essa árvore
e sua silhueta cravada de estrelas?
Poucos veem o deslumbramento
de seus contornos desnudado
aos meus olhos! Eu, mudo!
Eu de olhos privilegiados.
Como descrever, sem parecer insano,
a maravilha de suas pétalas que tímidas
desabrocham no espelho-orvalho de seus galhos?
Paisagem e miragens idílicas,
a árvore estampada no quadro da noite
é uma estonteante aparição!
E a mente-memória desperta estupefata
sem acreditar que isso tudo
é possível de compreensão.
Sentir que esse cenário de árvore
e estrelas fazem parte de mim.
Eu, ateu em delírio,
extasiado como fruto dessa revelação!
A árvore como essência
de uma moldura invisível
é unção do empíreo à terra
que, do ângulo acanhado dos quintais,
cobra-nos apenas sua contemplação!


sábado, 14 de janeiro de 2017

Meu Tempo VIII - Velho Lima


Um livro não escrito:

          Em final de 2002, resolvi por no papel um projeto que tinha há alguns anos: escrever sobre um amigo que tive o prazer de conhecer em 1981, quando me filiei ao PT. Ele foi um militante comunista filiado ao antigo PCB e, como muitos, cassado e preso, em l968, pela ditadura militar. Chamava-se Manoel Bendito de Lima, que por respeito e admiração, ouso me dirigir aqui como Velho Lima. Eu tinha acabado de lançar um livro de contos _se é que se possa chamar de lançamento uma brochura de cento e trinta páginas, com apenas cem exemplares, embora minha mulher tenha observado que jamais me tinha visto em tal estado de felicidade_ e talvez, entusiasmado com o feito, achei-me à altura para tal ousadia. Mesmo inseguro com a empreitada, consegui convencer alguns amigos para me ajudar na tarefa, muitos deles que fatalmente seriam incluídos na narrativa, pois de uma forma ou outra fizeram parte dela. A minha intenção era escrevê-la romanceada para mais facilmente ir preenchendo as lacunas da história, e não transformá-la em um documentário ou biografia.
               Até a data que escrevo ainda não consegui esse feito, embora se encontre até hoje em uma caixa de papelão, junto com outros rascunhos, mais de trezentas páginas manuscritas, reportagens, entrevistas e coisas mais, à espera de condições favoráveis para tanto. Entre os amigos que resolveram me ajudar nessa empreitada devo destacar a figura de Rubens Magalhães, falecido recentemente, em 2010. Advogado sindicalista durante longa parte de sua vida foi muito ligado ao velho Lima e se mostrou solícito em tudo que tive a ousadia de lhe pedir. Concedeu entrevista, forneceu materiais da época e inclusive, embora já debilitado fisicamente, não se furtou a nos acompanhar ao antigo DOPS _ Delegacia de Ordem Política e Social_, em São Paulo, hoje um museu com todos os arquivos possíveis do tempo da repressão. Morreu em 2010, sem ver esse trabalho concluído e é sem dúvida, a primeira dívida que tenho que computar; ou melhor, a segunda, pois antes dele, faleceu Dona Teresa, grande amiga e simpática senhora, esposa de Lima, com qual conversei muito sobre o projeto e da qual ela contribuiu com depoimentos emocionantes e entusiasmados que eu passo a relatar agora sem o carinho, nem a paixão de esposa: 
              Ele, Lima,  depois de abandonar sua crença religiosa que o fazia pregar sermões nas praças de Salvador, onde conheceu Luís Carlos Prestes, candidato a senador da república, (em 1946). De pregador evangélico foi resgatado pela militância comunista e escreveu sem o saber uma das mais belas histórias de luta e resistência contra o regime militar que sublevou o país por mais de vinte anos. 
             Quando chegou a Mogi das Cruzes, já integrado aos quadros do Partido ia de bicicleta entregar os panfletos e jornais do PC, antes mesmo do sol iluminar suas esburacadas ruas. Lutou aqui, como sindicalista por mais de vinte anos sendo várias vezes preso e nessa cidade passou os restos de seus dias, vindo a falecer em 17 de abril de 1994 vítima de um câncer intestinal, do qual pouco reclamou, com certeza por ter aprendido a suportar a dor e a tortura, mesmo quando arrastado de hospital a hospital até conseguirmos (seu filho, Lima Filho e eu) interná-lo em São Paulo. (Lima nunca relatou torturas físicas pelos presídios por quais passou; mas, sim,  que eles eram obrigados a ouvir nas ante-salas de suplícios a agonia e gritos dos torturados. O pânico os invadia pelo pavor de ser o próximo e ter que confirmar ou desmentir as delações saídas dessas salas de horror. Quando, no outro dia, iam tomar banho-de-sol, assoviavam a Internacional com a quase certeza que os carcereiros ou vigias não tinham a menor ideia do que se tratasse).
               Uma foto de Lima com Prestes foi-me dada por um dos seus amigos, e meu também, Plínio José Romeiro_ infelizmente também recentemente falecido (2016)_ e se encontra entre as cópias de antigas fichas e escritos recolhidos no antigo DOPS.


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               Esta será uma história verídica em homenagem a Manoel Benedito de Lima e a todos aqueles que nem a anistia, nem a liberdade e nem o avanço da democracia conseguiram resgatar. Relato-a romanceada e muito do enredo, principalmente aquilo que salta de sua infância e adolescência, é peça empobrecida da imaginação do autor, embora tenha sido colhido aos pedaços das reminiscências de alguns poucos que tiveram o privilégio de conhecê-lo.
Peço, portanto, a complacência daqueles que de alguma maneira se sentirão frustrados com o mau uso de suas contribuições. A eles meus agradecimentos e minha eterna gratidão e também, antecipadamente, minhas sinceras desculpas. Realço: qualquer fato omitido, negligenciado ou fora do contexto é de inteira responsabilidade do autor.

P.S: Esta quase promessa de escrever a vida de Manoel Benedito de Lima ainda não foi cumprida, mas ainda não desisti.    

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

MELK

Capítulo I

Aquela gigantesca massa branca, dava para perceber, já estava amarelecendo. Inerte, já há bastante tempo e dura como uma rocha. Aos poucos fui me acostumando com ela ali estirada e o meu medo deu lugar à curiosidade. Cheirei-a toda e percebi que não mais oferecia perigo. Passei sobre ela, mordisquei-a e dei meu veredicto: estava morta. Fred se aproximou como se, tendo assistido todo o ritual, confiasse no meu diagnóstico. Apesar da rapidez de seus movimentos, suas patinhas não demonstravam mais nenhum nervosismo e certa alegria estampou-se em sua fisionomia. Eu também fui tomado por uma súbita felicidade, mesclada de espanto, sem saber ao certo explicar o porquê. Na verdade, estava em estado de estupefação.
Como se esquecesse do motivo de sua curiosidade, Fred começou seu costumeiro farejar: era óbvio que estava com fome. Pensei comigo: Agora tudo será mais difícil! (O outro ser, semelhante a este que jazia imóvel, viera há apenas duas noites e como de costume só retornaria no clarear do quinto dia. Deixara tudo limpo e reluzente e o que havia de comestível, devidamente trancado, ou em lugares que dificilmente alcançaríamos). Comecei a me preocupar com o nosso futuro! É claro que, talvez, pudéssemos nos utilizar daquele ser volumoso. Mas para mim, pois tenho certeza que o esfomeado Fred teria outra opinião, aquilo estava fora de cogitação. Pelo menos, por enquanto. Primeiro, por ainda considerar uma heresia tocá-lo e segundo, porque até suas carnes começaram a amolecer, já estaríamos mortos. Fred insinuou com o focinho que tentaria perfurar com seus afiados dentes a parte superior da cabeça, que ainda permanecia com um pouco de calor e pendia com seus olhos sem brilho, quase na altura do ralo da cozinha. Repeli tal ato com veemência, dando-lhe a entender que acharíamos alguma coisa. “E rápido” - observou meu aflito companheiro, no remexer sibilante do seu focinho.



Capítulo II

Ter encontrado aquela casa foi um verdadeiro achado. O terreno baldio onde até então estávamos alojado, fora completamente incendiado e logo, pás e betoneiras fizeram dele um lugar insuportável para viver e forçaram a nossa peregrinação.
Depois de muito caminhar, termos conseguido esse lugar seco e arejado, foi motivo de festas. Esquadrinhamos toda a construção, seus aposentos e frestas e a possibilidade de conseguirmos comida e neste aspecto ela se mostrou pródiga. Fred e Meg conseguiam localizar ração em lugares inimagináveis e juntos faziam um rebuliço tamanho que, com certeza, punham em risco nossa segurança. Adverti-os várias vezes, mas acabei me convencendo que tais preocupações eram infundadas. Outra coisa me impressionou e serviu também para que eu mais ainda desleixasse de manter-me alerta: como se a providência não só velasse por nós como também nos acudisse, ração chovia sobre nós quando dela já estávamos desesperançados. E muitas vezes, alimentos eram colocados em lugares mais fáceis de serem alcançados. Tal situação durou muitos e muitos dias até que percebi a ilusão em que tinha sido engabelado.
O pressentimento, pela primeira vez, de que todas aquelas dádivas não eram obras do acaso, deslumbrou-me a tal ponto que passei dias tentando encontrar o meu Onipotente protetor. Foi maravilhoso perceber que um ser superior e magnânimo velava diurnamente por nós. Porém, tal revelação não era compartilhada pelos meus dois companheiros, que prosseguiam impassíveis em suas buscas por comida, sem perceberem que ela se encontrava sempre a mão. Para eles nada mudara e nem eu conseguia imaginá-los compartilhando de minhas "esquisitices". Solitário em meus devaneios, fiz para mim mesmo, o juramento de descortinar as barreiras que havia entre eu e o incompreensível ser que tomava conta de todo o espaço em minha volta, com prodígios que só a mim conseguiam deslumbrar.”


Capítulo III

Há tempos tinha compreendido que havia no nosso mundo outros seres situados muito além dos predadores e intuí que os prodígios aqui verificados e muitas coisas que se materializavam em nossa volta eram, com certeza, obras deles. As minhas investigações, por muito tempo, se mostraram inglórias. Não que nosso Protetor se ocultasse; muito pelo contrário, sentia cada vez mais a sua presença; e sim, por que desconhecia a chave que abriria a porta desse Universo imenso que me circundava e na qual eu ocupava apenas um ínfimo canto. Nem meus olhos, nem minha mente, estavam preparados para absorvê-lo, dar conta de sua grandiosidade e magnitude. O instinto que me mantinha a salvo da ação de vários predadores não mais me bastava. Intuitivamente, percebi que o primeiro artifício há ser usado era a educação dos meus sentidos; principalmente, o do olfato e do tato. Tudo precisaria ser minuciosamente observado e comecei a anotar as mais insignificantes mudanças no ambiente: claridade, sombras, ruídos, pequenos detalhes na paisagem em nossa volta. Enfim, tudo que mesmo de maneira imperceptível, por um segundo que fosse se movia ou se transformava. Concentrava-me nisso obcecadamente todos os segundos de que dispunha, até minhas forças, esgotadas, cederem ao sono. Nessas árduas vigílias procurei aguçar o máximo meu olfato, já por natureza muito potente, e percebi com alegria que conseguia identificar o cheiro do insofismável ser a léguas de distância e embora não conseguisse vê-lo, sabia da materialidade de sua presença. Ele, de fato existia.
Fred e Meg, sempre alheios a todo o resto que não fosse procurar comida e dormir quando saciados, dobrando-se sem resistência aos primeiros clarões que ofuscassem seus pequeninos olhos, começaram a notar a minha estranha maneira de agir e embora não conseguissem compreender a razão de tudo aquilo, começaram a se preocupar com a minha saúde. Eu não comia o suficiente. Não querendo aborrecê-los com minhas conjecturas, aconselhei-os que não se importassem comigo: "Eu estava bem", conclui, e só isso bastou para que eles voltassem a me ignorar.
Afastei-me, então, dos meus companheiros concentrando-me, apenas, em tentar surpreender as aparições de nosso protetor, para mim cada vez mais palpáveis.


Capitulo IV

Certo dia, o ruído do motor que, tinha certeza agora, precedia a chegada do ser bendito, sobressaltou-me quando me preparava para começar minha vigilância noturna. Por alguma razão ele chegara antes do habitual. Rápido corri até a entrada do casarão e por pouco não fui esmagado pela roda de um veículo, ofuscados que meus olhos foram pela luminosidade que dali se irradiava. Por infelicidade minha, quando o foco de luz diminuiu só consegui enxergar uma silhueta grandiosa que se perdia atrás da porta. Tresloucadamente contornei a construção e esgueirando-me pelo labirinto, estreito e úmido, que Fred e eu construímos para dar passagem para o interior do prédio e que desembocava entre dois canos: um fino de metal e outro bem mais grosso, de cerâmica, e cheguei ao local onde sempre achávamos restos de comida em profusão e que dava em frente ao quarto dele. Mas para minha desgraça, meu protetor ali se refugiara e só de lá sairia, sabia eu, após o amanhecer.
Desiludido, voltei para minha toca e exasperado, com a cabeça girando adoidada, só conseguia pensar em uma maneira de conseguir o meu intento. As paredes para outro pavimento, raciocinei, eram grossas demais e a porta ao ser fechada não deixava brechas alguma que coubesse o meu corpo. A única possibilidade era esperá-lo já lá dentro, sabendo de antemão que a espera não seria pequena. Eu poderia entrar lá, assim que ele se retirasse, logo de manhã.
Essa alternativa empolgou-me tanto que imediatamente iniciei uma febril atividade e num ir e vir constante fui estocando, grão a grão, durante a noite toda, pilhas de mantimentos que julgava necessárias para uma longa vigília. E mal a claridade matutina espreitou pelos orifícios da janela e pressentindo o local deserto, penetrei nos seus aposentos. Logo descobri rente ao chão, um estreito, mas bem comprido vão onde fui depositando o que conseguia armazenar. Mesmo com as réstias solares fustigando meus olhos e a sonolência querendo entorpecer os meus músculos, labutei horas da tarde até que, exaurido, aconcheguei-me junto aos suprimentos, que da maneira que estavam localizados, com certeza não seriam vistos por um ser de tão grande estatura. Assim protegido aproveitei para dormir do que restava para anoitecer e adormeci sonhando com o esperado encontro.


Capítulo V

Nunca tinha medido, na verdade, o espaço de tempo que havia entre a saída e o retorno do meu protetor, porém, devido, talvez, a ansiedade, nunca me pareceu tão longo. A noite veio, acordei, esperei horas a fio, a ponto de várias vezes abandonar o meu esconderijo e ele não apareceu. Só quando a luz solar espargia-se por entre os móveis envernizados foi que senti o cheiro característico que chegava e para espanto meu, minhas narinas identificaram outro odor. Um novo e desconhecido cheiro, mas, no entanto, similar ao primeiro. Arrisquei-me, então, e abandonei o meu esconderijo para tentar encontrar um local mais alto para minhas observações, que desse para focalizar a totalidade da porta, mesmo correndo o risco de ser descoberto. Assim instalado, com o coração palpitando descompassado, fui observando a claridade que invadia o quarto. Concomitantes às duas sombras que se espetaram no chão, dois vultos adentraram-se pela porta e se fizeram nítidos à medida que a penumbra se desfazia. Fazia muito barulho e pareciam felizes.
Minhas narinas detectaram o forte cheiro de álcool que tomou conta do ambiente. Os dois, então, despiram-se das primeiras peles e outras, toda branca, foram aparecendo mostrando-se quase que peladas: só pequenos tufos de pêlo escapavam escassos, num ou outro lugar dos corpos. Pela primeira vez eu via por inteiro o meu protetor e essa visão não me agradou, mas mesmo assim, continuei atento no meu observatório onde, precavido, voltara a me ocultar.
Os dois seres começaram, então, um estranho e longo ritual de acasalamento: cheiravam-se e lambiam reciprocamente até a exaustão e só depois de um bom tempo é que tentaram a cópula. Algo que para aqueles corpos desproporcionados, com seus membros inferiores e superiores grandes e disformes, parecia deveras difícil.
Ouviu-se então, batidas na porta que se repetiram várias vezes, até que o protetor, visivelmente contrariado, foi até lá e dirigiu-se ao local de onde as batidas se originavam. Aproveitei a ocasião, ciente de que o que vira, fora por ora, suficiente e precipitei-me para fora sem ser notado.
Dei-me por feliz ao encontrar de volta as companhias de Fred e Meg que, encolhidinhos num canto da toca, dormiam inocentes. Em meu cérebro continuavam registradas as imagens daquelas cenas e me intrigavam certos sentimentos que começaram a tomar conta de mim e eu não conseguia explicar seus motivos: sentia-me frustrado e com medo. Se aquele Ser por quem eu, ávido esperava, quase idolatrado, mostrou-se asqueroso e prosaico demais para o paradisíaco lugar que eu lhe reservara na minha imaginação, nada, no entanto, aconteceu que justificasse a transformação de minha expectante alegria do dia anterior, na desagradável desconfiança que me assolava agora. Nem o seu aspecto físico que me enojara e que de fato não me agradara, nem a constatação de que agora ele não estava mais só, eram motivos para tão ríspida mudança de avaliação. "Mas os nossos instintos, pensei comigo, dificilmente falham". Para não mais ficar remoendo inutilmente essas sensações, acomodei-me o mais perto possível de meus companheiros e procurei dormi.


Capitulo VI

Vários dias e noites se passaram sem que se percebesse na casa qualquer tipo de atividade. Silenciosa, parecia que com o seu marasmo iria sufocar todos os meus receios, até que um dia que amanheceu chuvoso, eu o senti chegar e novamente alcoolizado. O cheiro de outro ser ficara do outro lado da rua, desvanecendo-se logo. Ele entrava sozinho.
Mais confiante, desci rapidamente as escadas e pude vê-lo cambaleante. Não conseguiu chegar até o quarto, pois se desequilibrou de repente, estatelando-se no chão. Nesse momento certa comiseração tocou-me. Com certeza, pensei, eu tinha sido rígido demais no meu julgamento. Se esse ser não era o todo onipotente que imaginara nas minhas primeiras investigações, também não era o ser horrendo que eu o transformei depois. Ao vê-lo ali, desfalecido, dava-me dó e não horror.
Resolvi, então, aproximar-me mais, para sentir melhor as suas narinas e averiguar se ele estava bem, pois, sua forte respiração saia entrecortada, aos borbotões.
Perplexo, percebi que seus olhos esmaecidos arregalaram-se de chofre, assustados. Ele tinha me visto! Readquirindo, num átimo, uma agilidade que julguei impossível, armou-se de uma vassoura e pôs-se em meu encalço, desferindo golpes que por pouco não me acertaram. Sai atônito, em desabalada corrida para o quintal e pude notar que meu perseguidor se dera por vencido e retornara raivoso, oscilando seu corpanzil para dentro da casa. A porta foi fechada com estrondo.
A partir desse dia procurei alertar meus companheiros para os perigos que estavam correndo, mas eles, da mesma maneira que antes menosprezaram os meus devaneios, agora faziam ouvidos moucos a minha postura alarmista. Parecia que sabiam de tudo aquilo e que só eu, desgrudando-me da realidade como fiz, pudera ter a sensação de uma segurança que nunca tivéramos. "Vai ver que eles têm mesmo razão, conjecturei, afinal a vidinha deles não se alterara em nada.”
Tal constatação deixou-me por muito tempo abalado. Sentia-me o menor dos camundongos! Eu que me considerava tão superior a eles, dono de uma clarividência que só eu mesmo enxergava, era obrigado a ceder às evidências e aceitar, resignado, minha estupidez.



Capítulo VII

Por pouco tempo, no entanto, perdurou a minha apatia, um novo ser começou a freqüentar a casa e novos fatos impediram que eu me entregasse à letargia. Trazia um cheiro peculiar que me fez crer que se tratasse de uma fêmea e quando saía, todos os detritos da residência haviam sido removidos. Desta maneira, nossa ração foi também drasticamente reduzida ou ficava bem mais difícil localizá-la. Essa situação colocou Fred e Meg em tal estado de aflição, que me deixou muito apreensivo. Eu tinha, mais do que nunca, de ajudá-los. Devia isso a eles e estava em jogo a nossa sobrevivência!
A experiência que adquiri com as minhas frustrantes investigações e longas vigílias__ como a resistência ao sono e a claridade diurna__ tudo isso, argüi, poderia ser-me útil agora. Poderia realizar as minhas jornadas em busca de comida durante o dia, coisa que os meus companheiros não assimilariam com facilidade, já que com a chegada dessa nova personagem, a escassez de comida tornara-se maior à noite. É claro que seria perigoso, pois o risco de ser percebido durante os meus deslocamentos de um lugar para o outro, seria maior. No entanto, na minha cabeça, tal risco passara a ser inevitável.
Pus-me, então, a calcular o tempo entre a saída de um e outro ser, como também horários mais favoráveis para encontrar comida e para armazená-la. Tinha que me esforçar para conseguir estocar uma quantidade suficiente para várias noites, pois nem todo dia o alimento seria encontrado.
Assim decidido comecei a minha tarefa e, com passar do tempo, muitas vezes a noite me surpreendia ainda acordado. Mas confortava-me ver a feliz agitação de meus amigos quando acordavam e viam quantos alimentos eu conseguira recolher. Só então, cansado, é que eu procurava abrigo na minha toca e com o frio cortante da noite, tentava dormir. Nisso levava mais uma desvantagem, Fred e Meg dormiam de dia e sempre juntinhos.


Capitulo VIII

Fui acordado pela correria frenética de Fred sobre meu corpo. Até dar-me conta de que realmente acordara, senti que ele passou sobre mim como um bólido, no mínimo, três vezes. Era sua maneira de chamar atenção. E pela sua agitação, estava nervosíssimo.
No dia anterior eu já havia levado um susto tremendo: a faxineira me viu por uma fresta na parede da sala, justamente na hora em que eu concluía o trabalho de armazenagem, e quase me apanhou. A minha sorte é que seu escarnecido grito me alertara e tive tempo e agilidade para escapulir de sua investida, escorregando-me pela tábua solta do assoalho. Depois disso um barulho ensurdecedor de martelo e tábuas tomou conta do ambiente e acabou acordando os meus companheiros que, assustados, correram para o quintal.
Fui atrás dele e lá ficamos até que as coisas se normalizassem e sentíssemos seguros para retornar. Nossa volta, porém, só foi possível após o pôr do sol, com a saída da faxineira que naquele dia acabou se demorando mais do que o habitual.
Ao regressarmos tivemos outra surpresa desagradável: todo mantimento que eu tinha conseguido recolher havia desaparecido. O assoalho tinha sido remendado e encontrava-se úmido, sinal de que fora lavado há bem pouco tempo. O que restava de suprimento era o que estava estocado há dias. E não era lá grande coisa. Abstive-me então de comer e induzi meus companheiros a iniciarem a busca noturna, enquanto eu tentaria dormir um pouco, pois o dia seguinte prenunciava-se sombrio.
Agora Fred me acordava e no pisca-piscar de seus olhinhos, compreendi que algo muito sério estava acontecendo. Acompanhei-o até a cozinha, aonde encontramos Meg, endoidecida, correndo em círculos. Seu pequeno abdomem apresentava-se flácido e notava-se em sua pele ondas de calafrio. Estava desesperadamente esfomeada. Olhando a derredor notei que nada havia mais para comer; a ração que tínhamos acabara e pelo visto as buscas de meus companheiros foram infrutíferas. Mal tomei pé da situação, ouvi os ruídos característicos da chegada do protetor. Fred e eu imobilizamos, então, a pequena Meg e a fizemos retroceder até o banheiro, onde, tentando superar o pânico que a todos nós assolara, ficamos escondidos, vigiando atentos todos os movimentos do revoltante ser.
Para nossa surpresa, ele tirou do armário punhados e punhados de comida e começou a distribuí-la pela cozinha (como eu, em meus devaneios passados, imaginava que ele altruisticamente, assim o fizesse). Porém, o esmero era tanto e a quantidade tamanha que uma leve suspeita instigou-me o espírito. Vi que meus amigos salivavam enquanto se reprimiam vorazmente para não se atirarem de vez ao banquete que em nossa frente se materializava. Foram os minutos mais agoniados da minha vida.
Como uma clarividência o pânico tomou conta mim, adivinhando uma tragédia iminente. Nem bem constatou que o recinto estava vazio, Meg projetou-se sobre o farto banquete. Não tive tempo de contê-la. Essa sua precipitação fez a minha suspeita concretizar-se em trágica certeza. Ao meu grunhido desesperado Fred estancou-se perplexo ao meio do caminho, mesmo sem entender o meu inusitado alarme e olhou-me apreensivo implorando uma explicação. Entendeu-a nos meus olhos horrorizados e ao voltar-se em direção a Meg, já a viu completamente inerte, estirada no chão.


Capitulo IX

O corpinho de Meg foi atirado com grande estardalhaço para um terreno baldio. Pela claridade matinal expandida da janela pude notar o jubiloso brilho nos olhos do hediondo ser, que sorria maléfico. Dessa cena não mais me esqueci e ela alimentou a minha revolta dando-me forças para arquitetar um plano de vingança que, por ora, tinha que ser adiado devido às precárias condições físicas de Fred. Era inquestionável que a prioridade agora era conseguir alimentos, com urgência e o mais longe possível daquela casa e de seus perigos. Eu não tinha condições de avaliar o quanto estávamos ameaçados e o melhor a fazer era nos afastarmos dali. Sufoquei assim a minha ira no meu inconsciente pranto. “O meu ódio será mais bem saciado se saboreado devagarzinho”_ pensei, enquanto literalmente arrastávamo-nos para fora dos limites da casa.
Demorei-me mais alguns dias em companhia de Fred, enquanto ele se restabelecia. O lixão que encontramos não era o melhor dos mundos, mas não tínhamos muito que escolher. Era enorme e bastante habitado. Urubus, ratazanas, seres imundos, faziam parte de sua fauna esfomeada e agressiva; mas, adaptarmo-nos a esse lugar inóspito, não chegou a ser difícil. Só me restava levar adiante o juramento de vingança e para conseguir esse intento não mediria esforço algum.

Capítulo X

Não foi difícil localizar o cadáver de Meg, pois dele emanava um mau cheiro que podia ser sentido a léguas de distancia. Esse adiantado estado de putrefação dificultava a identificação do veneno, mas mesmo arriscando soçobrar-me na tarefa, prossegui no meu trabalho e passei horas nessa faina até conseguir, finalmente, separar do nauseabundo cheiro putrefato, o cheiro sutil e adocicado da substância letal. A pele de Meg encontrava-se pincelada de manchas verdes do que se deduzia que sua pigmentação fora alterada pela absorção de produto. Recolhi, então com os dentes, pedaços desse material, o suficiente para assimilar a composição da droga e poder identificá-la futuramente. Só, então, adentrei-me à antiga casa. Tive sorte de encontrá-la vazia e meu olfato levou-me, depois de muito farejar e enganos, até um pequeno embrulho debaixo da pia da cozinha. O conteúdo dava para se notar, era suficiente para provocar a morte de centenas de roedores e avaliei que, com certeza, de alguém com igual tamanho. Eufórico de alegria, escavei uma entrada para nossa antiga toca, ciente de que primeira parte da minha missão estava cumprida. Bem antes do amanhecer eu já tinha ocultado o funesto embrulho, cavando freneticamente parede acima, até o lugar mais alto que consegui alcançar, depositando-o rente à torneira da pia. Apenas uma fina película de terra impedia que o produto entornasse e facilitaria sua desobstrução no momento em que eu precisasse dele. Esbaforido pelo esforço, recolhi-me ao meu ninho e logo adormeci.


Capitulo XI

A luz artificial que fluía no final de minha toca acabou por acordar-me. Sobressaltado, por instantes, pasmei confuso, sem conseguir atinar onde me encontrava. O odor do veneno e o prolongado manuseio dele entorpeceram o meu cérebro. Achava-me confuso. Depois percebi que dormira por um longo tempo e a noite já era bem velha. Lépido, ganhei os poucos metros que me separavam da pia da cozinha, temeroso que o meu esconderijo pudesse ter sido descoberto, pois se por alguma razão a fina parede cedera, não só o embrulho teria sido encontrado, como a minha presença estaria revelada, o que poria fim nos meus planos de vingança.
Felizmente meus temores eram infundados. Tudo estava em ordem e apesar do adiantado da hora, meu inimigo ainda lá estava. Dava para ouvir o rumor da água que vinha do quartinho adjacente à cozinha e o cheiro de sabonete que dali advinha.
Corri saltitante ao ver que bem embaixo do ponto onde eu depositara o veneno encontravam-se agora, sobre a pia, frutas expostas e algumas delas cortadas ao meio. Pensei comigo: "Se conseguir alcançar o túnel que eu tinha cavado, rente à parede, fácil seria espalhar sobre as frutas o veneno que lá se encontrava". Subi rápido, então, pelo pequeno orifício e me posicionei na borda ainda fechada. Porém, na minha sofreguidão, acabei caindo, ao escavar a terra que faltava, entre a toca e o embrulho. Ao retornar, agoniado notei que o conteúdo do embrulho havia vazado todo para fora. Quando tentava descobrir nas frutas os sinais de veneno, notei que o asqueroso ser voltava e tive que escapulir-me para o esconderijo, enquanto ele, não dando sinais que notara minha presença, caminhou em direção a pia.
Já tinha me dado por vencido quando descobri que grande parte de veneno fora cair dentro de uma espécie de triturador de frutas, dissolvendo-se no líquido que lá estava. Da minha toca pude ver que ele reiniciava a tarefa, que por alguma razão havia interrompido e, uma a uma, as frutas foram sendo espremidas no recipiente. Respirei aliviado: Meg, com certeza, seria vingada.


Capitulo XII

As chamas das velas tremeluzem em seus castiçais, apaticamente inúteis, na sala fartamente iluminada.
_ Foi terrível, quando abri a porta encontrei-o caído no chão. Pelo jeito acabara de sair do banho e juro... Vi ratos correndo pelo seu corpo. Meu Deus! Nunca vi coisa igual
_ ( ...............)
_ Veja ali, aquela senhora conversando com o senhor idoso, o pai dele... É a faxineira de quem lhe falei. Foi ela que me telefonou contando o ocorrido. Meu Deus, eu ainda não consigo acreditar! Estou chocado!
_Você não notou nele, nos seus últimos encontros, algum sinal de depressão?
_ Não. Uma vez até ele chegou a comentar que, morando sozinho, ele se sentia mais leve. Que se sentia mais aliviado depois da separação.
_ Mas, vocês não tinham brigado?
_ Não... Já falei sobre isso com o delegado. Há um mês tivemos um pequeno desentendimento,... Mas, coisa à toa. Eu tinha entrado de férias e resolvemos viajar para o litoral. Lá, na ultima sexta feira que saímos juntos, ele bebeu um pouco demais. Ficou inconveniente... Falava demais. Chamei um táxi e levei-o até sua casa e desta vez me recusei a entrar. Ele estava chatíssimo! Dois dias depois ele me telefonou pedindo desculpas e me contou que encontrara ratos na cozinha e que contratara uma faxineira. Depois disso não mais o vi. Só hoje,... Aí!
_ (...............)
_ Veja, a Cinthia não apareceu. Só o companheiro dele veio. E ela, onde se encontra?
_ Dizem que está no exterior. Depois que ela soube que ele a traia e com quem, a coitadinha entrou em parafuso e o pai e o irmão, para evitar os possíveis desdobramentos do escândalo, aconselharam-na que viajasse.
_ Talvez, então, ela nem saiba do ocorrido. De qualquer maneira a polícia entrou em contato com os familiares e comunicou-lhes que precisava falar com ela. Você sabe, checar os fatos, descobrir os motivos de sua morte... Essas coisas.
_ Parece que o irmão já viajou para encontrá-la. Que coisa! No fundo ele acabou, mesmo involuntariamente, por inverter os papéis, tornando-se vítima. Seus amigos são capazes de dizer que a culpa foi dela.
_ É... eu li os jornais de hoje. Até que foram discretos. Deram a entender que foi a separação a causa mais provável da tragédia. Você sabe né? Gente rica em cidade pequena... Jornais não vão a fundo, não. Veja a manchete... Aqui! No canto direito da página três: "SUICÍDIO: EMPRESÁRIO TOMA SUCO DE LARANJA COM RATICIDA”.*

*Conto Escrito em 1998