Tudo começou naquela tarde em
que o negrinho Quinzinho deu com os olhos no rosto triste e pálido
de Carolina e estranhou aquela pele branca em excesso, tão fina e
transparente, que através dela dava para ver todas as veiazinhas
azuis e nos seus olhos transluzia uma pureza diáfana, que chegava
até a dar medo que o ar do sertão pudesse maculá-la.
Quinzinho nos seus dezessete
anos, maroto e ligeiro, (teve o azar de nascer um ano antes da
promulgação da lei que o libertaria)1,
gostava de aprontar das suas e no canavial só era visto, se não
tivesse tido jeito algum de se safar e safava-se não só do trabalho
duro dos ancinhos e enxadas, mas de qualquer serviço corriqueiro que
lhe mandassem fazer e não havia capataz ou capitão do mato que
conseguisse encontrá-lo; como se tivesse parte com o tinhoso,
simplesmente sumia antes que dele dessem conta. Por simpatia,
comiseração ou por que era divertido vê-lo por em polvorosa toda a
capangada de Telúrio e até o próprio, seus irmãos e companheiros
o protegiam e seu pai por várias vezes recebera nas costas o castigo
que seria dado em seu endiabrado filho.
Naquela manhã, porém, Telúrio,
o filho, pegara-o antes que tivesse tempo de se escapulir e o levou
até a capital da Província para que carregasse as malas da irmã.
Quando Telúrio Filho abraçou a irmã, pondo nesse amplexo tamanho
ardor e saudade, que parecia que a esmagaria em seus braços de
gigante, Quinzinho, por trás desses músculos e ombros, conseguiu
contemplar aquele rosto pequeno, alvo como porcelana fina, que os
arroubos do irmão pincelavam de círculos vermelhos, quase rosa. E
o menino irrequieto, quedou-se pasmo, embevecido com a cativante
beleza da recém-chegada e, para ele, tudo também se fez rosa
durante a viagem de volta, extasiado e bambo em cima do estribo,
fazendo trotar molemente os animais pela poeirenta estrada que os
levaria à fazenda. Os irmãos, ávidos em contar todos os pormenores
da vida que separados levavam, quilometricamente em distância e
tempo, não cansavam de tagarelar e com isso não deram conta dos
devaneios do negrinho, nem do ritmo lerdo dos animais.
Chegando ao destino o crepúsculo
já ardia vermelho e a passarinhada já revoava aos seus ninhos
esvoaçando-se no céu azul-escuro dourado, prenunciando uma noite
tépida de verão.
João Telúrio recebeu a filha
sem alardes, quase a contragosto, antevendo o estorvo que seria para
ele aquela criatura frágil e doentia naquelas terras selvagens e
separadas do mundo. Os escravos, no entanto, receberam a novidade com
uma festa, afoitos por conhecerem a filha do senhorio, suas ricas
roupas, suas maneiras refinadas e seu leve sotaque afrancesado, que
tão bem combinava com os seus olhinhos de espanto e até altas horas
da noite uma algazarra festiva tomou conta da Casa Grande e se
espalhou por toda a fazenda, antes sempre taciturna, sombria e
silenciosa.
Os primeiros raios solares
estupefatos encontraram o Quinzinho já acordado e para maior espanto
ainda, avidamente trabalhando. Tal vivacidade era algo inédito e por
muito tempo ninguém atinou a sua origem. Quinzinho se apresentou para ordenhar as
vacas, alimentar os porcos, depois para limpar os estábulos e para
todas as outras tarefas que, coincidentemente, o mantinham nos
arredores da Casa Grande. Mesmo sem entender o porquê de tamanha
mudança, o filho mais velho do fazendeiro, vendo com bom grado a
disposição do rapazola nem cogitou em mandá-lo para o canavial,
pensando _ “Antes assim do que trabalho nenhum".
Apesar de pouco se falarem,
criou-se entre o escravo e a sinhazinha uma cumplicidade, refletida
apenas nos olhares esquivos, por parte do negrinho e maliciosamente
ingênuos, divertidos, no rosto da menina e desse conluio nasceu uma
pueril amizade que aos poucos foi perdendo a timidez.
1
Lei do Ventre Livre.
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