segunda-feira, 10 de abril de 2017

Um pequeno conto de terror: O energúmeno - Cap.II

Tudo começou naquela tarde em que o negrinho Quinzinho deu com os olhos no rosto triste e pálido de Carolina e estranhou aquela pele branca em excesso, tão fina e transparente, que através dela dava para ver todas as veiazinhas azuis e nos seus olhos transluzia uma pureza diáfana, que chegava até a dar medo que o ar do sertão pudesse maculá-la.
Quinzinho nos seus dezessete anos, maroto e ligeiro, (teve o azar de nascer um ano antes da promulgação da lei que o libertaria)1, gostava de aprontar das suas e no canavial só era visto, se não tivesse tido jeito algum de se safar e safava-se não só do trabalho duro dos ancinhos e enxadas, mas de qualquer serviço corriqueiro que lhe mandassem fazer e não havia capataz ou capitão do mato que conseguisse encontrá-lo; como se tivesse parte com o tinhoso, simplesmente sumia antes que dele dessem conta. Por simpatia, comiseração ou por que era divertido vê-lo por em polvorosa toda a capangada de Telúrio e até o próprio, seus irmãos e companheiros o protegiam e seu pai por várias vezes recebera nas costas o castigo que seria dado em seu endiabrado filho.
Naquela manhã, porém, Telúrio, o filho, pegara-o antes que tivesse tempo de se escapulir e o levou até a capital da Província para que carregasse as malas da irmã. Quando Telúrio Filho abraçou a irmã, pondo nesse amplexo tamanho ardor e saudade, que parecia que a esmagaria em seus braços de gigante, Quinzinho, por trás desses músculos e ombros, conseguiu contemplar aquele rosto pequeno, alvo como porcelana fina, que os arroubos do irmão pincelavam de círculos vermelhos, quase rosa. E o menino irrequieto, quedou-se pasmo, embevecido com a cativante beleza da recém-chegada e, para ele, tudo também se fez rosa durante a viagem de volta, extasiado e bambo em cima do estribo, fazendo trotar molemente os animais pela poeirenta estrada que os levaria à fazenda. Os irmãos, ávidos em contar todos os pormenores da vida que separados levavam, quilometricamente em distância e tempo, não cansavam de tagarelar e com isso não deram conta dos devaneios do negrinho, nem do ritmo lerdo dos animais.
Chegando ao destino o crepúsculo já ardia vermelho e a passarinhada já revoava aos seus ninhos esvoaçando-se no céu azul-escuro dourado, prenunciando uma noite tépida de verão.
João Telúrio recebeu a filha sem alardes, quase a contragosto, antevendo o estorvo que seria para ele aquela criatura frágil e doentia naquelas terras selvagens e separadas do mundo. Os escravos, no entanto, receberam a novidade com uma festa, afoitos por conhecerem a filha do senhorio, suas ricas roupas, suas maneiras refinadas e seu leve sotaque afrancesado, que tão bem combinava com os seus olhinhos de espanto e até altas horas da noite uma algazarra festiva tomou conta da Casa Grande e se espalhou por toda a fazenda, antes sempre taciturna, sombria e silenciosa.
Os primeiros raios solares estupefatos encontraram o Quinzinho já acordado e para maior espanto ainda, avidamente trabalhando. Tal vivacidade era algo inédito e por muito tempo ninguém atinou a sua origem. Quinzinho se apresentou para ordenhar as vacas, alimentar os porcos, depois para limpar os estábulos e para todas as outras tarefas que, coincidentemente, o mantinham nos arredores da Casa Grande. Mesmo sem entender o porquê de tamanha mudança, o filho mais velho do fazendeiro, vendo com bom grado a disposição do rapazola nem cogitou em mandá-lo para o canavial, pensando _ “Antes assim do que trabalho nenhum".
Apesar de pouco se falarem, criou-se entre o escravo e a sinhazinha uma cumplicidade, refletida apenas nos olhares esquivos, por parte do negrinho e maliciosamente ingênuos, divertidos, no rosto da menina e desse conluio nasceu uma pueril amizade que aos poucos foi perdendo a timidez.

1 Lei do Ventre Livre.

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