I - A
PASSAGEM DE CAROLINA
Se
por ventura você se deparar um dia com a casa de número 120, na Rua
Boa Vista, nesta cidade de Mogi das Cruzes, notará que essa
construção é só de taipas, barro e taquaras, hoje maquiada com
reboco e tinta. Curiosamente, ela não possui janelas na frente e a
porta de madeira também é outra, pois a antiga, feita de taquaras e
cordas, trançando-as transversalmente, desfez-se com o tempo. Toda
desengonçada, essa construção compunha-se de uma sala com menos de
seis metros quadrados; um corredor exíguo; um quarto um tanto
comprido, comparando-se com resto da casa e subdividido por uma
divisória de madeira que não alcançava o teto, por certo para
facilitar a ventilação e por fim, uma pequena cozinha com uma porta
baixa e estreita e uma ínfima janela também de madeira. Foi lá,
debaixo de um telhado de telhas velhas e enegrecidas, que vivi meus
primeiros anos de vida, com meus pais e nove irmãos.
A construção ao todo não
tinha mais de trinta e cinco metros quadrados, um terreno disforme de
menos de setenta, aonde o ar penetrava trepidando os pés de cana de
açúcar e ia uivar barulhento, quando ventania, num alçapão mal
encaixado na parede da cozinha, ao final do afunilado corredor. Esse
alçapão tinha um aspecto lúgubre com suas tábuas estorricadas,
como que lambidas por estranhas labaredas, atiçando mais nossas
infantis e aterrorizadas mentes que o povoava de bruxas e demônios.
Iguais a essa casa havia outras, que juntas, arrimavam-se recíprocas
para não desabarem e que em nossos pesadelos agigantavam-se em um
único e medonho casarão, muitas vezes sem saída.
Dizia-se que aquelas casas foram
construídas por mãos escravas num tempo em que os primeiros
colonizadores apareceram pelas terras de Piratininga e ergueram,
poucos anos depois, uma das primeiras vilas da Província de São
Paulo e foram palco de muitas histórias e tragédias, algumas
verídicas, outras nem tanto, inspiradas pelo estilo medonho das
construções.
O que vou relatar não fez parte
de nossos pesadelos, mas sim, consta da memória dos descendentes
daqueles que participaram dos sinistros acontecimentos ocorridos nas
últimas décadas do século passado, época em que o lugarejo já se
elevara à condição de Vila e essas casas, hoje beiradas por ruas
claras e urbanizadas, faziam parte da senzala de uma imensa fazenda
onde predominavam a cultura da cana-de-açúcar e caqui, entre outras
menores como o café e a mandioca.
Fazenda subdividida em terras
arrendadas que se espalhavam até os limites da Serra do Itapeti e
circundada por inúmeras chácaras que iam desembocar na vila
propriamente dita, que tinha o seu marco de origem a poucas centenas
de metros dali, em frente a que seria depois a singela Matriz de
Sant’Anna, rodeada de ruas bucólicas e pequenas praças. Para não
nos estendermos além do cenário que emoldurou os episódios que
aqui serão narrados, vamos caro leitor, retornar ao principal palco
desta história.
Nas dependências daquela casa
de chão batido que há menos de quarenta anos atrás, foi por minha
mãe atijolado para que seus filhos desfrutassem de ínfimo conforto
e menos umidade, viviam na época, duas famílias de crioulos, que se
somados com os outros habitantes das outras três casas, totalizavam
27 pessoas, entre elas, onze mulheres e com uma particularidade, rara
nos anais da história escravocrata brasileira, compunham-se de
famílias inteiras e se faltavam alguns de seus membros fora devido a
mortes naturais ou maus tratos e não como a maioria dos negros
africanos chegados às terras tupiniquins, que para que se cortassem
laços de solidariedade, dizimassem suas culturas e vínculos
tribais, ou por outros torpes motivos, principalmente mercantis, era utilizada nas regiões do Brasil Imperial com as famílias
desmembradas e, com exceção dos filhos de colo, os irmãos eram
vendidos separados e os filhos, sem os pais.
Eram, portanto, cinco famílias
a labutarem no plantio e corte de cana, no engenho, na colheita de
caquis e demais tarefas da fazenda e alimentadas com caquis,
mandioca, farinha e gordura; aliás, idêntica ração dada aos
porcos que a eles, obviamente, cabia também alimentar.
Conta-se que por aqueles tempos,
meados do século XIX1,
João Maciel Telúrio, dono de imensas propriedades nesses confins e
logicamente destas terras, de suas senzalas e das famílias dos
negros que nelas viviam, trouxe de volta de Paris sua filha Carolina,
menina ainda com seus quinze anos, tísica, de uma alvura imaculada,
um sorriso triste e quiçá encantador e de uma educação esmerada,
frutos de seus estudos no estrangeiro, interrompidos devido ao
agravamento de sua doença e do declínio repentino da fortuna da
família, já em sensível decadência. Telúrio até então,
esforçara-se para cumprir os compromissos financeiros assumidos com
médicos e professores pelo seu cunhado e procurador, lá em terras
francesas.
Tinha a pequena uma beleza ímpar
realçada por indiscutíveis fragilidade e leveza, o que destoava de
seu pai, mameluco rude e de uma força descomunal. Sua falecida mãe,
Camile, de origem francesa, de quem a filha herdara todos os
atributos e enfermidades físicas, morrera ainda jovem e rogara no
leito de morte que a menina recebesse uma educação peculiar longe
do que ela chamava das grosserias luso-tupiniquins, pedido este
regiamente atendido até aquele dia.
Telúrio, aos cinqüenta e cinco
anos de idade, cento e vinte quilos e mais de 1,80 m de altura, tinha
além de Carolina, dois mancebos de 13 e 23 anos. O mais novo,
Thiago, estava de malas prontas para prosseguir seus estudos no Rio
de Janeiro, uma vez que por aqui, segundo palavras do próprio
Telúrio, "mau e porcamente” a gurizada tinha condições de
concluir o primário, pois aulas, só quando o tempo e as condições
da estrada permitiam. E mesmo assim quando, arcando com todas as
despesas, o velho fazendeiro conseguia trazer e manter uma professora
num tosco barracão improvisado de Escola e que atendia também os
filhos dos pequenos sitiantes e colonos do lugar. Transferi-lo para
o Rio, onde morava sua irmã e alguns parentes de sua mulher, era sem
dúvida a única alternativa viável para realizar sua ambição de
ver pelo menos um dos seus filhos se “tornar” doutor, já que o
outro há tempos abandonara os estudos. Agigantado como o pai, porém
de um coração tão grande quanto acalentador, João Maciel Telúrio
Filho, gostava mesmo era de embrenhar-se nas matas à caça de gambás
e tatus toda vez que os pequenos afazeres da fazenda e a renhisse do
velho deixava. Era muito afeiçoado aos escravos e sempre que
necessário intercedia por eles junto ao pai; prática essa que o
tornara uma pessoa muita bem vinda e respeitada pelos negros que não
se faziam de rogados para procurar sua ajuda.
Se o embrutecido Telúrio não
via com bons olhos tal magnanimidade do filho, parecia não ter muito
empenho em proibi-lo dessas amizades; no fundo entendia que essa
camaradagem tornava os negros senão mais dóceis, pelo menos não
tão aguerridos. Mesmo porque naquele rincão longínquo, seria quase
impossível repor a mão de obra escrava, pois a Capital da Província
de São Paulo ficava a mais de quarenta quilômetros atrás de serras
e picadas, quase intransponíveis no lombo dos animais e os rios eram
estreitos e traiçoeiros e de maneira alguma, navegáveis. Por seu
lado, os negros tinham consciência que dificilmente teriam para
aonde ir naquelas terras perdidas, que bordeavam o rio que os índios
chamavam de "M'boygi”, Rio das Cobras.
Abalroados por tais
contingências a vida naquela fazenda e por extensão naquele pequeno
vilarejo, seguia dolente, quase se arrastando em dias intermináveis
que qualquer incidente podia se transformar em convulsões
inimagináveis. Mas ninguém poderia imaginar que tamanha hecatombe
pudesse ocorrer, tirando o sossego daquele marasmático lugar.
1
Na realidade a instalação da Vila deu-se em 1611.
Nenhum comentário:
Postar um comentário