quarta-feira, 5 de abril de 2017

O ENERGÚMENO - Cap. I

I - A PASSAGEM DE CAROLINA

Se por ventura você se deparar um dia com a casa de número 120, na Rua Boa Vista, nesta cidade de Mogi das Cruzes, notará que essa construção é só de taipas, barro e taquaras, hoje maquiada com reboco e tinta. Curiosamente, ela não possui janelas na frente e a porta de madeira também é outra, pois a antiga, feita de taquaras e cordas, trançando-as transversalmente, desfez-se com o tempo. Toda desengonçada, essa construção compunha-se de uma sala com menos de seis metros quadrados; um corredor exíguo; um quarto um tanto comprido, comparando-se com resto da casa e subdividido por uma divisória de madeira que não alcançava o teto, por certo para facilitar a ventilação e por fim, uma pequena cozinha com uma porta baixa e estreita e uma ínfima janela também de madeira. Foi lá, debaixo de um telhado de telhas velhas e enegrecidas, que vivi meus primeiros anos de vida, com meus pais e nove irmãos.
A construção ao todo não tinha mais de trinta e cinco metros quadrados, um terreno disforme de menos de setenta, aonde o ar penetrava trepidando os pés de cana de açúcar e ia uivar barulhento, quando ventania, num alçapão mal encaixado na parede da cozinha, ao final do afunilado corredor. Esse alçapão tinha um aspecto lúgubre com suas tábuas estorricadas, como que lambidas por estranhas labaredas, atiçando mais nossas infantis e aterrorizadas mentes que o povoava de bruxas e demônios. Iguais a essa casa havia outras, que juntas, arrimavam-se recíprocas para não desabarem e que em nossos pesadelos agigantavam-se em um único e medonho casarão, muitas vezes sem saída.
Dizia-se que aquelas casas foram construídas por mãos escravas num tempo em que os primeiros colonizadores apareceram pelas terras de Piratininga e ergueram, poucos anos depois, uma das primeiras vilas da Província de São Paulo e foram palco de muitas histórias e tragédias, algumas verídicas, outras nem tanto, inspiradas pelo estilo medonho das construções.
O que vou relatar não fez parte de nossos pesadelos, mas sim, consta da memória dos descendentes daqueles que participaram dos sinistros acontecimentos ocorridos nas últimas décadas do século passado, época em que o lugarejo já se elevara à condição de Vila e essas casas, hoje beiradas por ruas claras e urbanizadas, faziam parte da senzala de uma imensa fazenda onde predominavam a cultura da cana-de-açúcar e caqui, entre outras menores como o café e a mandioca.
Fazenda subdividida em terras arrendadas que se espalhavam até os limites da Serra do Itapeti e circundada por inúmeras chácaras que iam desembocar na vila propriamente dita, que tinha o seu marco de origem a poucas centenas de metros dali, em frente a que seria depois a singela Matriz de Sant’Anna, rodeada de ruas bucólicas e pequenas praças. Para não nos estendermos além do cenário que emoldurou os episódios que aqui serão narrados, vamos caro leitor, retornar ao principal palco desta história.
Nas dependências daquela casa de chão batido que há menos de quarenta anos atrás, foi por minha mãe atijolado para que seus filhos desfrutassem de ínfimo conforto e menos umidade, viviam na época, duas famílias de crioulos, que se somados com os outros habitantes das outras três casas, totalizavam 27 pessoas, entre elas, onze mulheres e com uma particularidade, rara nos anais da história escravocrata brasileira, compunham-se de famílias inteiras e se faltavam alguns de seus membros fora devido a mortes naturais ou maus tratos e não como a maioria dos negros africanos chegados às terras tupiniquins, que para que se cortassem laços de solidariedade, dizimassem suas culturas e vínculos tribais, ou por outros torpes motivos, principalmente mercantis, era utilizada nas regiões do Brasil Imperial com as famílias desmembradas e, com exceção dos filhos de colo, os irmãos eram vendidos separados e os filhos, sem os pais.
Eram, portanto, cinco famílias a labutarem no plantio e corte de cana, no engenho, na colheita de caquis e demais tarefas da fazenda e alimentadas com caquis, mandioca, farinha e gordura; aliás, idêntica ração dada aos porcos que a eles, obviamente, cabia também alimentar.
Conta-se que por aqueles tempos, meados do século XIX1, João Maciel Telúrio, dono de imensas propriedades nesses confins e logicamente destas terras, de suas senzalas e das famílias dos negros que nelas viviam, trouxe de volta de Paris sua filha Carolina, menina ainda com seus quinze anos, tísica, de uma alvura imaculada, um sorriso triste e quiçá encantador e de uma educação esmerada, frutos de seus estudos no estrangeiro, interrompidos devido ao agravamento de sua doença e do declínio repentino da fortuna da família, já em sensível decadência. Telúrio até então, esforçara-se para cumprir os compromissos financeiros assumidos com médicos e professores pelo seu cunhado e procurador, lá em terras francesas.
Tinha a pequena uma beleza ímpar realçada por indiscutíveis fragilidade e leveza, o que destoava de seu pai, mameluco rude e de uma força descomunal. Sua falecida mãe, Camile, de origem francesa, de quem a filha herdara todos os atributos e enfermidades físicas, morrera ainda jovem e rogara no leito de morte que a menina recebesse uma educação peculiar longe do que ela chamava das grosserias luso-tupiniquins, pedido este regiamente atendido até aquele dia.
Telúrio, aos cinqüenta e cinco anos de idade, cento e vinte quilos e mais de 1,80 m de altura, tinha além de Carolina, dois mancebos de 13 e 23 anos. O mais novo, Thiago, estava de malas prontas para prosseguir seus estudos no Rio de Janeiro, uma vez que por aqui, segundo palavras do próprio Telúrio, "mau e porcamente” a gurizada tinha condições de concluir o primário, pois aulas, só quando o tempo e as condições da estrada permitiam. E mesmo assim quando, arcando com todas as despesas, o velho fazendeiro conseguia trazer e manter uma professora num tosco barracão improvisado de Escola e que atendia também os filhos dos pequenos sitiantes e colonos do lugar. Transferi-lo para o Rio, onde morava sua irmã e alguns parentes de sua mulher, era sem dúvida a única alternativa viável para realizar sua ambição de ver pelo menos um dos seus filhos se “tornar” doutor, já que o outro há tempos abandonara os estudos. Agigantado como o pai, porém de um coração tão grande quanto acalentador, João Maciel Telúrio Filho, gostava mesmo era de embrenhar-se nas matas à caça de gambás e tatus toda vez que os pequenos afazeres da fazenda e a renhisse do velho deixava. Era muito afeiçoado aos escravos e sempre que necessário intercedia por eles junto ao pai; prática essa que o tornara uma pessoa muita bem vinda e respeitada pelos negros que não se faziam de rogados para procurar sua ajuda.
Se o embrutecido Telúrio não via com bons olhos tal magnanimidade do filho, parecia não ter muito empenho em proibi-lo dessas amizades; no fundo entendia que essa camaradagem tornava os negros senão mais dóceis, pelo menos não tão aguerridos. Mesmo porque naquele rincão longínquo, seria quase impossível repor a mão de obra escrava, pois a Capital da Província de São Paulo ficava a mais de quarenta quilômetros atrás de serras e picadas, quase intransponíveis no lombo dos animais e os rios eram estreitos e traiçoeiros e de maneira alguma, navegáveis. Por seu lado, os negros tinham consciência que dificilmente teriam para aonde ir naquelas terras perdidas, que bordeavam o rio que os índios chamavam de "M'boygi”, Rio das Cobras.
Abalroados por tais contingências a vida naquela fazenda e por extensão naquele pequeno vilarejo, seguia dolente, quase se arrastando em dias intermináveis que qualquer incidente podia se transformar em convulsões inimagináveis. Mas ninguém poderia imaginar que tamanha hecatombe pudesse ocorrer, tirando o sossego daquele marasmático lugar.



1 Na realidade a instalação da Vila deu-se em 1611.

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