quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Meu tempo VI - Prestes


ESQUERDA VOLVER

          Anos atrás fiz 50 anos e comecei a dar vazão a alguns detalhes que com o tempo nos apegamos e as datas que se tornaram  para nós tão especiais. O tempo torna-nos nostálgico com o seu passado cheio de cheiros, odores e imagens e muitas vezes romanceamos demais coisas que não teve tanta importância assim ou não damos o real valor a outras que de fato mereciam. Li em um dos livros de Umberto Eco que ele se lamentava de ser muito jovem nos anos quarenta e não viver a guerra que abalou o planeta e, anos depois, em 1968, o seu lamento era por ser velho demais e não ter participado ativamente das revoluções que sacudiram a França e o resto do mundo. Eu, ao contrário, era jovem demais em 1968 e só me senti inscrito na história de militância política no final dos anos 70 _ um pouco antes da fundação do PT (Partido dos Trabalhadores -1981)_  já nos estertores do golpe militar de 64, que forjaram os heróis da resistência. Em 1969, em pleno AI-5, dava-me ao luxo de me encantar com as maquiagens televisivas da chegada do homem à Lua e depois com o patriotismo da minha primeira copa do mundo, onde o Brasil, verde-amarelo, sagrar-se-ia tricampeão de futebol. (Na casa de vizinhos e parentes, claro, pois na minha ainda não chegara a televisão). Só alguns anos mais tarde, na minha militância tardia, foi que comecei a cultuar meus primeiros heróis: Che Guevara, Fidel Castro, Charlie Chaplin, Pablo Neruda, Octávio Paz e depois James Joplin, Bob Dylan e depois Chico Buarque, Lula, Paulo Freire entre outros e outros depois...

O CAVALEIRO DA ESPERANÇA

           A vida é uma eterna vigília, só adormecemos porque a fadiga nos envolve e teremos que acordar amanhã anestesiados ainda por sonhos que nunca nos abandonarão, a não ser quando a própria vida nos abandonar. Cada dia é uma incógnita que teremos que desvendar, mesmo que acabe por se perder na pasmaceira cotidiana das coisas sem muito sentido. Às vezes, porém, somos surpreendidos pelo inusitado: Na manhã de sete de março, com chuva fina _ coisa rara neste verão de 2010, no Rio de Janeiro _ sai de casa a caminhar. Sem exatamente saber para aonde ir e me dirigi ao cemitério de São João Batista, pensando_ movido por uma tênue curiosidade, em conhecer túmulos de muitas figuras históricas, que sabia lá existir_ caminhei em estreitas alamedas, procurando aleatoriamente reconhecer algum nome, alguma lápide famosa. Como aqueles que agora jazem naquele campo, nós também fazemos dos emaranhados da vida o fio condutor que nos encaminhará para o nosso próprio desfecho, raramente feliz. Traçamos assim, quase sempre ao acaso _ na trança dúbia e incerta de um diálogo impossível conosco mesmo_ os mesmos fios que nos conduzirão pela vida. Algumas imagens dessas teias que nos enrolam e nos paralisam, ajudam-nos a pinçar a dor e ansiedade de fatos irrecuperáveis. Assim pensando deparei-me com um aglomerado de homens e mulheres _ a maioria idosa que ornavam de flores (as rosas vermelhas que ele sempre cultivou) um túmulo modesto.            Tomado de curiosidade, deles me aproximei e para deleite meu, como que meus pensamentos tivessem sido ouvidos pelas franjas do tempo, essas pessoas prestavam homenagem a Luís Carlos Prestes, o “Cavaleiro da Esperança”, morto há exatos vinte anos. Na fina chuva que varria o cemitério, as janelas do tempo de repente para mim se abriram e pude de novo ver a figura já envergada do velho Prestes a contar mais uma vez, nos vários comícios que assisti sobre a Coluna Prestes, e de toda essa epopeia que atravessou o Brasil, confundindo-se com a sua própria história de luta e resistência que se prolongou por mais de cinco décadas. Esse cenário me lavou o espirito rebelde  excluso aqui no Rio de Janeiro e fiquei como que extasiado com a singela homenagem prestada quase que anonimamente a um dos grandes heróis da História e da esquerda brasileira.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

AUTÓPSIA


Retalha-se a carne
como se fossem
fibras mortas.
O sangue
que escorre dos cortes
vibra
denunciando que  há vida
no corpo disforme e inerte.
A carne branca
lívida
contrasta com as pulsações
débeis
mas insistentes
como se esperasse
o momento exato
para soerguer-se.
O corpo inanimado
se prestarmos bastante atenção
ainda se move.
...E respira.

( A vida microscópica beira à eternidade!)

20/11/03





sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Meu Tempo V - Espelhos

 ESPELHOS

É necessário ter certo zelo para escrever. A caligrafia, por exemplo, deve ser escrita com um mínimo de capricho e clareza. Principalmente na era da computação em que vivemos, onde escrever à mão virou requinte, quase um ritual sagrado. A escrita nos proporciona um deleite que a digitação nos nega. Uso “nós”, pois creio piamente não ser o único a não sucumbir diante da tela fria do computador. Prefiro ainda, como Mario Quintana, a mesa de um bar ou a de um canto solitário de mim mesmo, sentindo o calor da caneta nas mãos e confesso arrependido que, por desleixo ou apego ao micro, deixei de escrever e um dia notei que a minha caligrafia tinha se deteriorado. Não que minha letra alguma vez foi bela, nem impecável, longe disso, sempre foram garranchos disparados de meus dedos deselegantes, porém sensíveis. Mas, aí percebi que mais que as letras, eram meu cérebro e meu coração que aos poucos se atrofiavam. O pensar a escrita estava desaparecendo, acuado nos emaranhados de meus e-mails, maus escritos e gélidos. Voltei a escrever em papel, lento e cautelosamente, por sentir que só neles poderia descrever que essa vida, passada tão rápida no ritmo endoidecido dos anos, não deixa-nos de acumular de experiências, histórias e vivências.
Deslocando-me de novo no tempo para que eu possa apurar, do lento destilar da vida, os fatos que me fizeram e com os  olhos perdidos numa rodovia que se estende tortuosa para além desse meu olhar,  enquanto sorvo lentamente uma cerveja, procuro as imagens vivas_ que vivo me mantém_ nas árvores súplicas das estradas. Vislumbro as paisagens de outrora sem o cheiro do asfalto, dos combustíveis e do dióxido de carbono que nesse tempo de destruição, inclemente, mata-as aos poucos e consigo resgatar, para além do caos que as deterioram o florir das ramagens nas taipas e nos telhados de uma velha casa à beira da estrada, que em seu madeiramento gasto e carcomido o acolhe, como se quisesse reafirmar que só por mim elas se refazem, essa paisagem que se repete ao longo da estrada, refazendo-se e se multiplicando como se quisesse me surpreender, levando-me a pensar em quantas vezes nos surpreendemos com a repetição de fatos _ nesse caso, quase nada assimilamos dos erros anteriores; lamentamos, depois, não tê-los evitados,_ pois a vida quase sempre é tão repetitiva e banal que coisas relevantes acabam passando despercebidas como leituras mal lidas de algum livro que só perceberemos de sua singeleza com o olhar do amanhã. Quando, porém, nos vemos em relatos daqueles que admiramos, embora sem razão ou alguma consequência disso_ como se tal fato de alguma maneira nos colocasse no patamar deles_ ficamos por assim dizer, envaidecidos. Pelo menos três instantes eu guardo sobre isso: primeiro Umberto Eco em “O que creem os que não creem”, quando diz ter nascido católico e levou boa parte de sua vida, para se desapegar de sua religiosidade; depois, Florestan Fernandes quando relata sua infância como engraxate e as estórias que viveu ali de companheiros até mais pobres que ele e como apesar de todas as vicissitudes da vida conseguiu sobrepujar-se através da leitura e dos estudos e por ultimo, Mário Quintana ao falar de suas passagens por bares e de escrever em suas mesas (no seu tempo, mesas de mármore) os seus poemas para no dia seguinte melhorá-los ou, simplesmente descartá-los. Pequenos fatos como esses perpassaram a minha vida e por mais fúteis que foram fizeram parte de mim e é quase divino vê-los descritos por tão admiradas figuras. Como Florestan Fernandes, convivi com engraxates, embora não fosse um deles, mais corria para com eles para brincar nos intervalos das minhas missas diárias, que assistia como coroinha. Humildes, não conseguiam vislumbrar em suas vidas, salas de aulas. Como Umberto Eco fui católico e me livrar das crenças foi um ritual longo e penoso e como ele acho que “a ética de um leigo que não crê na recompensa divina, tem como pressupostos sua própria condição humana e seu respeito a sim mesma e a defesa à dignidade leva cada homem à defesa de outro” e nesse sentido, qualquer religiosidade é plenamente desnecessária. Escondi-me, por fim, como Mario Quintana, nos bares da vida, escorregando minha caneta nos guardanapos de suas mesas e quase tudo que escrevi ou pelo menos boa parte dele, sairia dali. Essas recordações extasiam-me agora e minhas meditações só são parcialmente interrompidas pelo gargalhar das pessoas, que como eu,  purificam suas vidas numa mesa de bar e tentam assim esquecer, um pouco, os aborrecimentos cotidianos.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Meu tempo III - A finitude da Vida


(Subtraída de Meu Tempo)


Fazemos pequenos retratos de nosso passado e um dos quais eu até hoje guardo comigo é dos telhados que avistava de minha rua. Incrustada em morros envoltos por serras, deixava o centro da cidade com seus casarões antigos de taipas ou de enormes _ e mais antigos ainda _ tijolos de barro a se estender aos seus pés, deixando sobressair majestosos telhados que sublimavam, ao sol reluzente, as estreitas ruas de paralelepípedos. Eu adorava caminhar sozinho, percorrendo-as vazias de fim-de-semana, em caminhadas difíceis de terminar. Sempre descobria alguma coisa ainda não notada, alguma beleza a minha espera. Ou evocava, dos cheiros ainda recentes, reminiscências de meus poucos anos. Sabemos que tudo é naturalmente novidade para uma criança em crescimento e pouco nos recordamos de como foi se processando em nós esse aprendizado febril e ininterrupto. Espanta-me hoje, o quando esse aprendizado se processa na velocidade absurda dos computadores. Com certeza comendo ruas e tornando cada vez mais fugazes as frágeis recordações. (Não terão os futuros adultos, na mente, apenas a memória dos “facebooks” ?) De qualquer maneira, em algum momento, para todo jovem tudo é a primeira vez, tudo deslumbramento e espanto, tudo vontade de se descobrir e de repente, damo-nos espantados com o inusitado. Com a descoberta de nosso corpo, redescobrimos o mundo em nossa volta: novos amigos, gostos, novas paisagens, novos costumes e com eles emoções antes estranhas como o sexo e a cumplicidade com o trágico na vida, o sentimento da morte e da fatalidade. Coisas que não faziam parte ainda de nossos temores.
Ao tomarmos consciência da finitude da vida a morte fica cada vez mais difícil de ser assimilada. Até certa idade a morte é incompreensível e, portanto, um sentimento estranho, mas irrelevante. De repente ela é real e presente. Por exemplo, da morte de meu avô paterno só me recordo de sua lenta agonia que me incomodou tanto... e eu tinha apenas três anos de idade. Anos depois, quando tudo aquilo só fazia parte de meus sonhos, foi a fedentina do ambiente _formal e álcool misturado ao cheiro das flores_ o que ainda trago na memória do primeiro velório que participei e certa repugnância, devida talvez as circunstâncias da morte de meu tio. Repugnância que não me furtou, mesmo na juventude, de ir a outros velórios ( mesmo porque nem todo cadáver está, ainda quando velado, em estado tão próximo da decomposição _ pelo menos eu o julguei assim) _ ainda por acreditar na vida após a morte, mas mais por respeito ao morto e aos seus familiares. A família ainda é para mim, mesmo sem a opressão de antigamente, uma referência marcante e o ritual da última despedida, sei lá por quais sentimentalismos, ainda me atraí. Porém é ainda esse cheiro que trago na lembrança associado a um ambiente escuro emoldurado por fotografias de falecidos e imagens de santos, numa sala sombria e lúgubre, palco de outros inúmeros funerais. Pois era esse o limiar entre esse mundo sombrio e o outro, manifestando-se assim ainda mais fantasmagórico e aterrador. Nesse quadro a passagem desta vida parecia pesarosa e triste, nada que lembrasse algo empíreo ou celestial _ promessa da Santa Igreja_ para aonde nossas almas seriam transladadas depois de nosso martírio terreno. Minha avó morreu não muito tempo depois e a compreensão do fato, deixou-me estupefato. Mas só, oito anos depois, descobri o outro lado da morte num funeral de uma menina que estudou comigo a quinta ou sexta série do ginásio e por quem tinha me apegado tanto que foi, com certeza, minha primeira e única paixão juvenil.
Vítima de um acidente automobilístico por qual tanto se culpou sua mãe, que dirigia o veículo, Olguinha morreu às vésperas de seu aniversário de 14 anos. Recordo-me de ter corrido a sua casa assim que soube da notícia, sem mesmo avisar meus pais para aonde e por que ia tão aflito e já tarde da  noite. Na verdade era para certificar-me daquele absurdo que me desesperava e que eu não conseguia acreditar; tinha que refutá-lo, pois relutava... E quanto tempo eu relutei, depois, em aceitar. A morte é inevitável, mas nem por isso fácil de ser aceita e no meu caso, essa sensação de finitude e aniquilamento, antes jamais sentida, foi-me terrivelmente cruel, pondo-me de frente a uma perda irreversível. Tanto assim que em lembrança a ela, pela primeira vez na minha vida, conseguiria escrever mais de três páginas de uma prosa manuscrita cheia de dor e saudade e da qual até hoje me arrependo por tê-la rasgado, com inúmeros poemas dessa mesma época, quando me julgando adulto, achei-os infantis.
Desta vez, para alívio e deslumbramento meu, o ambiente não tinha aquele ar nauseabundo e sim, um cheiro suave de incenso que nem de longe me lembrava àqueles das procissões e ao invés de cruzes e imagens de santos católicos, ícones budistas. Hoje não acho mais nenhum velório aterrador, mas o contraste foi sensível e revelador. Primeiro por notar que o budismo não era a opção única naquela família: ela e sua mãe eram católicas e aceitavam conviver com os cultos orientais paternos; segundo por presenciar algo tão exótico e singular, onde a procura da paz do espírito e da transcendência se contrapunha à salvação da alma no cristianismo. E, por fim, por enxergar uma verdade possível em outros credos. A infalibilidade de minha religião quebrava-se no meu espírito de uma maneira irreparável e definitiva. Continuava cristão, mas meu horizonte se abria para salutares dúvidas e brindava-me com a leveza do mundo. A morte a partir de então teceria outras marcas em minha vida.

                                                            *

O ritmo de minha caneta torna-se febril, mas minha mente acha-se cada vez mais confusa; a única coisa que me impede de avançar é a covardia de me desnudar aos olhos censores de mim mesmo. Não consigo mais conter o fluxo que emerge voraz e incontinenti e ao mesmo tempo fugidio, daquilo que um dia eu fui. Rasgo mais vorazmente os registros inacabados de minhas memórias; seus pequenos pedaços se avolumam ao meu redor como se fossem escamas que abandonaram meu corpo deixando nele feridas que se recusam a cicatrizar. “Conhece-te a ti mesmo”, disse Sócrates por saber que não existe para o homem algo mais difícil. No caleidoscópio de nossa infância fica impossível macular com a verdade a nós mesmos e assim nos escondemos ou tentamos nos esquivar de tudo aquilo que nos incomoda e das lembranças que nos ferem a alma. As franjas que tecemos com o tempo sobre nós mesmos são apenas pálidas molduras, pouco sensíveis àquilo que realmente foi e deixa-nos ainda muito tempo depois, desarmado. E da meninice à adolescência o que consigo perscrutar, fora as pinceladas dadas, é um mundo que em mim, parecia sempre a se esboroar, abarrotando-me de tédio, vacilações e medo. É evidente que nem tudo na minha infância foi nauseabundo, havia também alegrias, através das amizades e das brincadeiras comuns da idade. Mas, paradoxalmente, como foram fugidias por terem sido, naqueles tempos, tão necessárias!


terça-feira, 1 de novembro de 2016

O Jardim



Sua casa sempre foi repleta de flores e todo tipo de folhagem. Havia um jardim, ao fundo dela, que tomava conta de todo quintal. Havia vasos: inúmeros deles espalhados pela varanda, pelos quartos, cozinha, sala, até nos banheiros. O cuidado com tudo isso praticamente tomava conta de todas as suas manhãs. Gerânios, camélias, orquídeas, azaleias, rosas, cravos, alecrins, comigo-ninguém-pode, espada-de–são-Jorge, bromélias, lírios... Podia não saber o nome científico de nenhuma delas, nem suas origens, nem suas famílias, nem mesmo como vieram parar ali; mas sua coleção de flores, folhagens e plantas se esparramavam numa fruição de tirar o fôlego. Como era possível em uma casa, consideravelmente pequena, caber tanta exuberância e beleza. Lá nunca houve a mão de nenhum jardineiro profissional ou decorador. Tudo nascia e crescia naturalmente, apenas pelo cuidado dele e ele agia como tivesse medo de mutilá-las; podando-as só para mantê-las íntegras em suas raízes e belas em suas copas. Seu rústico jardim era mostrado com orgulho para todos os seus amigos e vizinhos. Repetidas vezes. Não se importava se mostravam enfado ou desinteresse.
Um dia, cedendo aos rogos de seu filho, ainda criança, deixou introduzir naquele jardim particular e para ele, único: um cão. Foi o inicio de sua agonia.
O cão adorava estraçalhar suas flores. Cavoucava toda a terra e depois se recolhia comiserado em sua casinha, triste, como se implorasse perdão.
Em sua raiva ele vociferava àquele animal imbecil, tão alheio a tudo que fosse beleza, mil palavrões e ameaças. Chegava, às vezes a surrá-lo. Tudo em vão: noutro dia a cena se repetia. O animal parecia ter ciúmes das plantas. Era irritante! E seu jardim jamais voltou a ser o mesmo. Pior: degradava-se... Morria!

*
Apesar de aguentar as afrontas do cão e relevar, embora irritado, as broncas de sua mulher que não entendia a sua raiva, nem sua paixão doentia pelo seu desleixado jardim, Jonathan __esse era o seu nome__ nada fazia de fato contra o impertinente animal. Muito pelo contrário, era ele quem lhe dava banho e recolhia tufos de pelo que diariamente se acumulava no quintal. Mesmo porque, na verdade, embora suas rusgas fossem reais e sinceras, fazendo-o perder o sono, foi aos poucos se apegando àquela criatura inconveniente que passou a fazer parte de sua vida. Sabia entender a fragilidade e a beleza de tudo que o envolvia e lhe retribuísse afagos; mesmo que o fizesse presenciar tragédias e infortúnios e até se lhe trouxesse sérios aborrecimentos. Tanto que quando, devido à velhice e a um câncer maligno, veio a lhe faltar o cão, chorou compulsivamente durante vários dias e só veio a se recompor, tempo depois, quando percebeu que o seu jardim voltou a ter a pujança e a graça de tempos atrás.
Ficou tão fascinado com a recuperação de seu jardim, que se esqueceu completamente de seus afazeres profissionais e abandonou-se na faina diária de cuidar de suas plantas e flores.
As manhãs _ parecia_ jamais o abandonariam.


*

Se lhe perguntassem como ocorrera a separação, com certeza ele não saberia dizer; pois, embora desconhecesse as razões porque sua mulher o abandonara, era inquestionável que só ele sofrera com o fato e tanto foi esse sofrimento,__ inclusive porque ela levou-lhe o filho __ que Jonathan foi se definhando, caindo numa letargia e abandono como se o seu próprio mundo se comprimisse ao seu redor. Receava até olhar pela janela de seu quarto, agora resumida a um pequeno orifício na parede, cujo vidro, há tempos quebrado, não fora mais recolocado e parecia pender como um porta-retratos negligenciado acima de sua cabeça.
Um dia foi acordado pela água da chuva que por aquele orifício invadia seu quarto. Percebeu, no entanto, que o vento a ranger as folhas da janela o incomodava mais que a água da chuva, que teve vontade de sair correndo da casa. Por fim, um frio intenso gelou seus ossos. Meio tonto como se estivesse prestes a desfalecer, armou-se de um guarda-chuva e saiu. De fato, não conseguiria suportar aquele ambiente. Pensou, então, em comprar pães e um jornal. Levantou-se e com esse gesto sentiu-se tomado por uma vertigem. “Um café quente àquela hora viria mesmo a calhar e ler preencheria um pouco o seu dia”. Dias esses, inúteis há tanto tempo.
Foi dessas coisas que se recordou, algum tempo depois, quando se deu conta de que não sabia mais onde se encontrava. As ruas, tão conhecidas, não mais o levavam a lugar nenhum. Seus nomes lhes pareceram completamente estranhos. Perdera, também, a noção das horas, não mais sabendo há quanto tempo se encontrava perdido.
A chuva parara e com ela o dia se foi. Sentiu medo da noite que o envolvera. Tal medo voltou-lhe depois, como um possível pesadelo que o despertou, em pânico, debaixo de uma marquise de um edifício em construção. Os ruídos de uma noite inquieta e festiva fizeram-no pensar em regressar. Regressar para onde?
A vaga ideia de uma morada revolveu, por instantes, o seu cérebro. Engoliu os pedaços de pão que ainda trazia consigo e voltou a dormir como num desmaio.
A chuva, que voltou pesarosa, não mais o incomodava.


*
O casarão! Achou-o por acaso e, tomado sabe lá por que temores, recusou-se a entrar. Qualquer ideia de penetrar em seus aposentos enchia-o de repulsa. No resto da noite que restava dormiu na varanda. Seus fantasmas nunca mais o abandonaram.
Numa manhã cheia de sol, descobriu o jardim!
Ajude-nos”. Espantado olhou para todos os lados e percebeu que tudo em volta, morria ressecado. “Não tinha chovido recentemente?”
_ O verão, este ano, foi demais!
As meninas que, de repente, ele viu surgir a sua frente, pareciam aflitas. Com uma mangueira espargiu todo o jardim e o cheiro adocicado e úmido tomou conta do ambiente. Com isso percebeu que ele próprio fedia. Teria que tomar um banho. Como ficara sujo daquele jeito?
As meninas sorriam, pareciam agradecidas. Jonathan olhou-as maravilhado: nunca lembrava ter visto crianças tão lindas. Uma delas tinha uma pele extremamente branca e a outra, ao contrário, era toda vermelha, como se castigada pelo sol. Encheu-se, porém, de vergonha ao lembrar-se de seu lastimável estado. Despediu-se e, tomado de súbita coragem, adentrou ao casarão.
Espantou-se com o que viu! O interior do casarão deixava claros os sinais de abandono: as paredes úmidas estavam verdes de musgos; o teto, lavado pelas chuvas, tinha as marcas da umidade. Todo prédio cheirava a bolor. Porém, notou que não cheiravam tão mal quanto ele próprio. Nunca em sua vida tinha sentido tanta imundície; imundície que parecia lhe impregnar a alma e o fez raciocinar que tal acúmulo de sujeira não poderia ser de poucos dias. Tal constatação apavorou-o, pois punha em dúvida sua sanidade. Onde esteve que não se deu conta do passar dos dias? Por onde teria andado se só conseguia se lembrar da noite fria que o envolvera e de seus pesadelos tão angustiantes? Seria a sua casa aquele casarão?
Teve que se contentar com um banho gelado, pois a energia da casa tinha sido cortada. A água gelada parecia rasgar a sua pele, mas ao sentir a sujeira sendo banida do seu corpo, acalmou-se. Vestiu-se com roupas que lhe pareceu familiares, encontradas em um velho guarda-roupa. Todas essas sensações de familiaridades e presenças o deixaram aturdido e resolveu retornar ao jardim.
O dia, já em despedida, o esperava risonho.

*
Resolveu chamá-las de Renata e Roberta; embora vexado e com medo de constrangê-las, já que nunca conseguiu entender os seus nomes. Para seu espanto, quando descobriram sua artimanha, elas gostaram: “Soam lindos!”.
Old Time”. “Femina Spanishi Sun Schneewittchen”. Carandá é Palmae “Corpenicia Alba Morong”. Esta veio da Malásia: “Syzyguin aromático”, Cravo da Índia. E a azaléia? “Ericaceae Rhododendron indicum”. É da China ou Japão? As meninas o esclareciam e eufórico, quase aos gritos, continuava: Papiro do Egito? “Marantaceae _ Maranta divaricata roscoe”. Capuchinha? “Tropacolum majus”. Abacaxi-roxo? Aquela de face verde escuro e lado violáceo? “Tradescantia spathacea”. Coração magoado? “Trenise herbstii”.
Muitas vezes, ao fazer sua caminhada em volta do quarteirão, ele se recordava dessas verdadeiras aulas de botânica e repetia para si mesmo:
_Cinerária é “senecio cinerária”... Mil folhas: “Achicleia millefolium”... Como deixam estranhos os nomes das flores, pensava.
_ Ele não fala mais nada com nada.
Sem querer, falara alto, mas sorriu deliciado. Não poderia exigir daquele homem, inculto, outra reação.
Coitado”! _era sempre a chula sentença de uma mulher atrás dele ou de alguém que passava. Jonathan, contemplativo, apenas ria.
Outras vezes podia sentir, mesmo com todo o ruído do trânsito e do intermitente barulho das sirenes, os passos que vinham em sua direção e aquela voz insuportável: “Caduco”. E de novo ouvia do outro lado da rua, o porteiro que ria... Zombando dele com certeza.
As meninas, sempre comedidas, olhavam-no constrangidas e diziam: “É, de novo, aquela senhora antipática de nome horrendo”. Essa sutileza deixava-o ao mesmo tempo sem graça e agradecido. Como e por que “caduco”, pensava chateado. Por que toda essa agressão, se ele mal a conhecia? Pensava em retrucar: “Caduca é a senhora”. Porém não o fazia, pois isso nada acrescentaria à expansão cósmica do Universo, nem a sua rotina, em particular.
Um dia, notou que homens de branco o seguiam. Agora que os notara, lembrou-se de tê-los visto rondando o casarão. A mulher ranzinza, ás vezes os acompanhava e parecia falar sobre ele. Mas não deu importância, pois já se acostumara a ter medos que depois se revelavam gratuitos. Aliás, começara a temer mais os seus pesadelos que sempre o acordavam em calafrios e pareciam cada vez mais reais.
Ao chegar à entrada do casarão, ouviu as meninas gritarem: “Cuidado, eles vão te levar”. No entanto, não teve forças para reagir. As imagens bambolearam na sua frente. Suas pernas já não mais o obedeciam e assim, combalido, deixou-se levar.
A paisagem, em sua frente, desvanecia-se.
*
Aos poucos sua memória ia voltando. Agora, depois de alguns dias na clínica, sentia-se agradecido. Os dias nas ruas ainda permaneciam ofuscados; mas se recordava de sua casa e que esta fizera parte de sua vida e de sua família. Teve uma repentina saudade de seu filho que, em seus sonhos, sempre aparecia ainda criança. Recordava, também, de sua infância e de seu jardim. De repente lembrou-se ter ouvido alguma coisa como: “ele precisa ser demolido”. Assustado, pensou nas meninas e correu em direção à porta. Ninguém o impediu.
Foi tomado de pavor quando dobrou a esquina que o levava ao casarão, e viu o que já antecipara em sua mente... Tratores punham-no abaixo e com ele todo o imenso jardim. No fundo, mesmo diante de toda aquela destruição, sentiu-se aliviado, mas, ainda trêmulo, questionou um dos funcionários, justo aquele que inúmeras vezes lhe pareceu zombar dele: “Você viu as meninas?”
_ Que meninas? Refere-se às flores?
_ Bom dia, querido! Arranjei-as para você.
Jonathan virou-se, ainda assustado, e viu a Dona Tibúrcia (a mulher ranzinza de nome horrendo) com dois enormes vasos, lindamente ornamentados, contendo as mais belas flores que jamais vira: rosas brancas e vermelhas.
Notou-a de repente simpática e, como que fulminado por um raio que lhe transpassou todo seu corpo, reconheceu nela sua mulher e atrás dela, rosto assustado, mas sorridente, seu filho. Sua alegria foi tanta que não conseguia conter o choro e extasiado percebeu que, entre suas lágrimas e as nuvens avermelhadas do horizonte, estampava-se um lindo amanhecer.