quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Hospedeiro

HOSPEDEIRO
(o fantástico mundo quântico da biologia molecular)

Pense por um segundo que seja no que estamos fazendo neste exato momento de nossas vidas. Com certeza, bem pouco. Somos um minúsculo absoluto do nada. Se, em toda nossa plenitude, tivéssemos consciência disso, seria tão grandiloquente quanto supérfluo, diante da imensidão e da magnitude cósmica onde estamos inseridos.
Nessa paradoxal grandiloquência e pequenez _ colhida pela imensidade do Universo em seus bilhões de mundo hoje percebíveis_ tecemos tão nefastas quanto prolíferas ideias e criatividades. Somos capazes de tudo, para o bem ou para o mal. E isso nos oprime e nos exalta!
Sermos esse ser cósmico, imprescindível e pequeno, único e multifacetado, horripilantemente potente e frágil, faz desse paroxismo nossa epopeia suicida, pois, tudo construímos, tudo destruímos e de tudo nos omitimos. Resumindo: somos o máximo do mínimo possível. Miragens de um “vir-a-ser” grandioso possível e ao mesmo tempo, inalcançáveis.
Se nos retirarmos humildes dos Cosmos e nos esmiuçarmos nas moléculas de nosso corpo, essa constatação se amplia! Fomos concebidos do nada na vasta imensidão de um planeta feroz. E se darwiniamente considerarmos a disputa tresloucada de minúsculos espermatozoides _ menor célula do corpo humano, centenas de vezes menor que o óvulo (numa diferença comparativa entre a Terra e Júpiter)_ que partem em uma corrida desenfreada para saciarem a fome no citoplasma generoso da amada parceira ovular, veremos que a sobrevivência ou adaptação dos mais capazes é o único impulso que temos naquilo que alguns chamam de milagre da vida e veremos que nada mais somos do que infinitesimais partículas carregadas de bactérias. E só bebemos, comemos, respiramos e nos apaixonamos graças a elas e, para recompensá-las por tudo isso, as alimentamos e deixamos que também ávidamente disputem os nutrientes do citoplasma de nossas próprias células.
Richard Dawkins, sabiamente, dá voz à Thermus aquaticus: “Olhem a vida de nossa perspectiva e vocês, eucariotas, logo deixarão de lado toda a empáfia. Seus primatas bípedes, bando de tupaias cotós, peixes de nadadeiras lombada dessecados! Seus vermes vertebrados, esponjas turbinadas com genes Hos, emergentes, eucariotas, congregações quase indistinguíveis de uma paroquia monotonamente restrita! Vocês nada são além de uma espuma extravagante na superfície da vida bacteriana ! Ora, as próprias células de vocês são construídas de colônias de bactérias, e reproduzem os mesmos velhos truques que nós, bactérias, descobrimos há um bilhão de anos. Nós estávamos aqui, antes de vocês chegarem, e aqui estaremos depois que vocês se forem”.*
Nessa epopeia pela vida nos fragmentamos a todo momento e só não se apercebemos disso por não temos capacidade para isso...nosso cérebro nos livra desse deslumbrante horror . Com a palavra Steve Grand: Pense numa experiência de sua infância. Alguma coisa de que você se lembre bem, alguma coisa que você consiga ver, sentir, talvez até cheirar, como se estivesse mesmo lá. Afinal, você estava mesmo lá, naquela época, não estava? Senão, como iria se lembrar? Mas aqui vem a bomba: você não estava lá. Nem um único átomo que está no seu corpo hoje estava lá quando aquilo aconteceu […] A matéria flui de lugar para lugar e por um instante reúne-se para formar você. O que quer que você seja, portanto, você não é aquilo de que é feito. Se isso não faz você sentir um calafrio na espinha, leia de novo até que faça, porque isso é importante.* *
O fato de termos vida e de termos nascido no reino animal, deveu-se apenas porque o silício foi substituído pelo carbono em nossa composição. Poderíamos ser um simples quartzo ou estar vagando nos circuitos de um computador. E pouco importa se a vida veio encrustada na cabeça de um cometa, há bilhões de ano-luz daqui, se foi gerada nas profundezas vulcânicas dos oceanos, ou ainda, se surgiu de maneira singular numa tépida lagoa de Darwin neste minúsculo planeta; somos, de uma maneira toda especial, o seu mais complexo hospedeiro!

* “Na trilha dos nossos ancestrais – A grande História da Evolução”, pag 641. Ed. Companhia das Letras. Richard Dawkins;
** “Deus, um Delírio”, pag.470. Idem. Richard Dawkins.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

O Crápula

O Crápula

(Um resumo de várias tragédias)

Preâmbulo:

Caminhavam, o maníaco do parque e a modelo, em direção à parte mais densa e escura da mata. Vendo, a modelo, que a noite avançava e a estrada mais e mais se estreitava, mata adentro, disse: “Credo, estou ficando apavorada”. Em que o maníaco revidou quase que sussurrando: “Se você está com medo, imagine eu, que vou voltar sozinho”.
Esta mórbida anedota, surgida após a prisão do assassino confesso de mais de treze mulheres, em 1998, em São Paulo, ilustra bem, na contramão da tragédia “a normalidade doentia” dos psicopatas, e leva-nos a um mundo completamente desconhecido para nós, “os normais”. Após esse fato, durante semanas, destilaram em hipóteses e explicações, nos noticiários diários da imprensa escrita, falada e televisiva, psiquiatras, psicólogos, sociólogos, psicanalistas e outros que tais e assim nos inundaram de teorias sobre o caso. Assunto, aliás, nada inédito ou original, seja na vida ou nas artes (teatro, cinema e literatura), como também brinda-nos, periodicamente, com episódios iguais a esse a história policial, as rádios e a televisão, em todas as partes do globo. Para não nos alongarmos com exemplos, citaremos, pela complexidade dos personagens dos livros e pela genialidade do autor, os romances: “Crime e Castigo” e “Irmãos Karamasóvski”, de Dostoiévski, embora, nesses romances, os autores não falem em crimes em série, e talvez, por esse prisma, seus criminosos não possam ser taxados de psicopatas. Cabe, então, a citação aqui, do filme magnífico de Charles Chaplin: “Dr Verdun”.
Têm essas evocações a finalidade de lhe introduzir, caro leitor, na narrativa que segue; antes, porém, cabe-me alertá-lo que termina aqui a similaridade com as obras citadas e se as fiz preâmbulo, confesso, foi apenas para reter sua atenção. Esclareço-lhe, também, que os motivos que me levaram a buscar dos recônditos da mente essas lembranças, foram à prisão do tal maníaco e a comoção que tomou conta de toda uma cidade. Ouso pedir-lhe, então, que continue a leitura; mas, antes de prosseguir, daremos ao principal personagem desta história um nome para melhor familiarizá-lo com você: Pedro Benotti.
Agora com o personagem já batizado e devidamente caracterizado, pois claro está que se trata de um suposto assassino, saltaremos algumas páginas para melhor conduzir o drama; causas e consequências se definidas, facilitam sempre o destrinchar da trama.



Capítulo I – Uma visita inusitada

Deparei-me com uma fisionomia que tinha menos de triste do que de cansada e pareceu-me que, se vinha procurar-me era a contragosto e qualquer desculpa que eu lhe desse, motivo seria para voltar aliviada, considerando cumprida a sua missão. Mais: batera na porta na certeza de que não me encontraria. A minha recepção a frustrava e lhe impunha uma incontornável obrigação:
  • Serei breve, - mastigou sem olhar-me – Pedro quer vê-lo e pediu-me que lhe dissesse que não aceitará uma negativa sua. Ameaça se matar, dando a entender que você é a única pessoa em quem deposita alguma esperança. Pediu-me tão desesperado e veemente que não tive como me negar a procurá-lo. Espero que não o desaponte, embora isso não tenha para mim a menor importância.
Sem esperar resposta voltou-se abruptamente e desceu as escadas quase a correr.
Foi desta maneira, que páginas viradas de um passado tão recente, voltaram a me exigir respostas. Sem saída, resolvi encarar de novo aquele pesadelo.
Visto de fora, o prédio do 4º distrito policial, acinzentado e velho, lembrava um grande baú plantado na praça árida e descuidada. Quais feridas exangues, suas paredes nuas e descascadas, causavam uma impressão de abandono e aniquilamento.
Adentrei àquele asqueroso lugar movido mais por curiosidade pelo inusitado, do que por consideração ou altruísmo. Na verdade, tão inesperado pedido arrebatava-me de meses de esquecimento, que em meu cérebro pareciam séculos. Era como se tivessem sido abertas janelas carcomidas pela poeira dos tempos, das quais conseguira ignorar a existência ou reprimi-las com repulsa.
O prédio parecia deserto e pude caminhar por várias de suas dependências sem encontrar nenhum funcionário que me interpolasse, pedisse explicações sobre minha intrusão ou quisesse me identificar. Nem parecia uma cadeia pública onde a segurança deveria ser mais que uma regra. Passou-me pela cabeça recuar, desistir da empreitada, esquecer porque vim, recuperando assim minha passividade cotidiana. Por um momento cheguei a considerar a possibilidade de um equívoco: teria sonhado. Será que teria sido de fato chamado? No entanto, para que não pairasse nenhuma dúvida sobre isso, um funcionário, surgido sabe-se lá por qual porta, materializou-se em minha frente identificando-se como oficial de justiça:
- Com quem está marcada sua audiência? – perguntou, confundindo-me, por certo, com algum outro advogado.
Tal pergunta deixou-me aturdido e confuso, soando aos meus ouvidos como uma acusação.
- Vim visitar um amigo – respondi depois de algum tempo, tentando disfarçar o meu constrangimento. Minha voz soou-me falsa, como se minha não fosse.
- Visita só daqui à uma hora – retrucou encarando-me e completou: Portão ao lado, por aquela rua.
Tartamudeei um agradecimento e saí.
Uma hora ainda”, pensei. Uma hora que se escorregou devagar, quase a conta-gotas. A água tônica que pedi na lanchonete da esquina, só para matar o tempo, acabou logo, deixando-me sem graça a olhar transeuntes que surgiam e desapareciam nas calçadas. Dali onde estava dava para vislumbrar, em frente ao distrito, um cemitério grande e recém-caiado que roubava esquinas e esparramava calçadas e, ao longe, atrás e a direita, o prédio da Universidade, emoldurado pelas serras que circundam a cidade. Foi lá, outrora, que cursávamos a Faculdade de Direito.
Pedro, na época, já era casado, pai de dois meninos, um de sete e outro de nove anos, o que o diferenciava dos outros estudantes, a maioria bem mais jovem e descompromissada. Bem antes de conhecê-lo eu já tinha amizade com a sua mulher, pois cursara com ela o segundo grau, e frequentava esporadicamente a sua casa. Aos olhos daqueles dias, parecia impossível imaginar-me, aqui, à porta de uma cadeia pública, esperando vê-lo como um sentenciado.
Mas, prossigamos, voltemos a nos colocar na sequência correta do tempo: estávamos no último ano da Faculdade. A ansiedade tomava conta de nós: ver terminar o curso, jogar fora os livros e cadernos; dar um basta nas aulas maçantes e nos chatos professores. Mas o último ano é também o ano de acontecimentos marcantes, que fazem germinar as sementes de futuras reminiscências e relevam ao esquecimento as lembranças passadas. Sofregamente tudo o que ainda não dera passagem nos anos anteriores, entra em nossas vidas ávido em ocupar o seu lugar, num frenesi do apagar das luzes.
Nesse burburinho que tumultuava nossas mentes somaram-se novas amizades que, para nós, já desiludidos de novas aventuras, foi como um vento bom depois de enfadonha calmaria. Assim, apareceram-nos, Soraya, ainda nos seus dezessete anos, preparando-se para enfrentar o vestibular; Marisa, sua amiga, no segundo ano de Psicologia e Sueli, caloura nesse mesmo curso. As duas últimas dividiram um mesmo apartamento e as bagagens da Sueli seriam trazidas no dia seguinte, de manhã. Solícitos, oferecemos nossa ajuda quando se despediram e, no murmurejar da madrugada que silenciosamente clareava, ficamos a bebericar as nossas frescas amizades, de repente mais do que felizes e de bem com a vida.
Os clarões de um novo dia fulguravam tímidos por detrás dos velhos telhados dos antigos casarões, quando resolvemos ir embora. Tais silhuetas configuravam em nós o eterno convalescer das coisas: o antigo dando lugar à novidade e o novo se amadurecendo, sem disso se dar conta.



Capítulo II – Um Romance pouco casual

O dia mal despertara e lá estávamos nós, indecisos se batíamos na porta, ou, com uma ponta de frustração e outra de arrependimento fustigando nossos espíritos se, batíamos em retirada por essa mancada idiota de virmos tão cedo em um domingo que amanhecia frio e premeditando chuva, ajudar pessoas que mal conhecíamos e que, talvez, nem mais se lembrassem da gente.
Resolvemos pelo meio termo e instalamo-nos num bar a poucas quadras dali, que mal acabara de abrir as portas, na expectativa de ver se de dentro da casa alguma alma piedosa dava sinais de vida e acudia dois boêmios ainda de ressaca e tiritando de frio.
Mais de uma hora se passou e, depois de muito café e pouco assunto, surge vindo em nossa direção, a pequena Soraya, linda em seu abrigo negro que realçava seu rosto tão alvo quanto juvenil. Notei que para Benotti foi como uma revelação. Ele a cumprimentou com entusiasmo e nos dirigimos para o apartamento. Esse entusiasmo manteve-se no transcorrer do dia, durante o qual ele a privilegiou com sua atenção e amabilidades, assim prosseguindo, nos outros subsequentes.
Soraya transpôs fácil, em poucas semanas, a timidez de sua tenra idade frente a um homem bem mais velho e na simplicidade de seus gestos embaraçados deixou, aos poucos, transparecer a todos a sua paixão mal disfarçada, até abrir-se às amigas as quais pediu segredo, querendo assim selar com as duas uma cumplicidade já consentida e premeditada.
O enredo torna-se óbvio e podemos resumir a narrativa: Pedro não se fez de rogado para corresponder aos sentimentos da menina e se seu casamento, o que já era de conhecimento de todos, evidenciava uma crise, tal situação a exacerbou. Sonia, sua mulher, viu-os juntos num shopping e não afeita a grandes escândalos foi despir sua alma dilacerada, num impulso vingativo e ao mesmo tempo querendo atabalhoadamente conservar o casamento, nos ouvidos do pai de Soraya. Este, além de infligir à filha, pesada surra, proibiu-a de sair de casa e de rever os amigos. Tirou-a da Escola e passou a vigiá-la constantemente. Sonia não mais falou comigo e Pedro abandonou a Faculdade.
No meu caso, estando tão próximo o término dos meus estudos, por eles fui absorvido por inteiro e mesmo das meninas, fora algum encontro casual, perdi o contato e não mais as vi.
Como nem tudo na vida é definitivo e certos reencontros são inevitáveis, encontrei meses depois, quando saía eufórico dos exames da OAB, Marisa e Sueli na porta da Faculdade. Diferente das outras vezes, eu não estava com pressa, sentia-me, aliás, leve e disposto para longas conversas, querendo mesmo saber das novidades. Fomos a uma lanchonete e horas depois, ao nos despedirmos, combinamos passar juntos alguns dias na praia, no início do novo ano, que já batia à porta.
Nesses poucos meses que me ausentei propositalmente de suas vidas; pois fugi, essa é a verdade, de qualquer contato com qualquer um deles, muita coisa aconteceu – como me contou Marisa – o que era lógico, ninguém paralisa com sua ausência, embora possa imaginar assim, os fluxos das inúmeras vidas que lhe cercam. Além de para nós mesmos, não somos tão importantes para mais ninguém. Nesse breve tempo, Pedro se separou de Sônia, sua mulher, reatando a partir daí seu romance com Soraya. Porém, um único e grave empecilho se interpunha entre eles: a família dela. E diante disso os encontros, às escondidas, aconteciam no apartamento das meninas.
Amores assim proibidos são tão comuns quanto belos e tão belos quanto trágicos: Romeu e Julieta, em Shakespeare, se mataram; Tristão e Isolda, segundo R. Wagner, séculos atrás, tiveram o mesmo fim; Julia, de Balzac, deixa o marido e entrega-se ao amante, Lorde de Greenville. A senhora de Rênal abandona-se nos braços do jovem Julien, em Stendhal. Madame Bovary, Flaubert, cansada da frívola vida, toma também o mesmo caminho; Anne Karênina, Tolstoi, enfrenta toda uma sociedade, até suicidar-se para não renegar seus sentimentos; Gilliatt enfrenta marés, ventos e tempestades pela mão de Deruchètte e deixa-se morrer no mar, por sentir-se rejeitado, em Victor Hugo; Johannes, de Kierkegaard, abandona a noiva no altar para ser padre... Espera, essa é outra história. Em todas elas, no entanto, o desfecho é trágico. Com mais ou menos intensidade, os romances proibidos, também na vida real, tem seu grau de tragédia e as tragédias assim como as grandes alegrias, acontecem sempre de supetão, inopinadamente e quase sempre se contrapondo umas às outras.


Capítulo III – Um trágico desfecho.

Como combinamos, passamos alguns dias na praia: Marisa, Sueli, um casal amigo delas e eu. Retornamos num sábado, já no fim da tarde, quando o sol ainda ardia amarelo.
Ao sairmos da Rodovia Ayrton Senna para desembocarmos rumo ao centro da cidade, a noite se avizinhava e, há um quarteirão antes do prédio, já avistamos luzes no terceiro andar, onde elas moravam.
- Olha só! – indicou Marisa – Será que Soraya está em casa? - sugeriu alegre, olhando-me de relance.
- Ou Pedro –, retruquei.
- Ou ambos – completou Sueli, mostrando-se apreensiva.
Pelo retrovisor do carro, os amigos de Sueli davam sinais de despedida, tomando o rumo do centro da cidade. Sueli respondeu buzinando e acelerou o veículo, tomada de súbita pressa.
- Faça assim - propus – sobe você, Marisa e eu a esperaremos lá na esquina, p’rá tomarmos uma saideira.
- Isso! Aproveita e os convida também – concordou Marisa, enquanto já descíamos do carro – Se tiver jeito, é claro.
Aguardamos que Sueli estacionasse o veículo e a vimos subir rapidamente as escadas. Mal tínhamos atravessado a rua em direção ao bar, quando ouvimos seu grito de terror que cortou, sufocado, o ar. Precipitamo-nos ao seu encontro.
Jamais tinha estado antes tão perto da morte, nem tão de frente com o horror e minhas amigas, com certeza, também não. Senti algo próximo ao pânico e demorei longos minutos para reagir à paralisia que tomou conta de todo meu corpo.
Ao entrar no quarto deparei-me com o corpo nu de Soraya desfalecido na cama. Sueli estava de joelhos e seu corpo tremia, convulsionado. O grito morrera em sua garganta e nenhum balbucio saia de sua boca. Seu rosto, perplexo num esgar mudo e desfigurado, parecia uma máscara sem cor.
Soraya notava-se, teria sido jogada na cama, pois suas pernas achavam-se retorcidas. Seu pescoço arroxeado, quase azul, com marcas de cordas finas de varal – três ou quatro superpostas – pendia como se tivesse sido deslocado para trás ou para cima. Marcas no chão indicavam que ela tinha sido arrastada do banheiro.
Esses detalhes foram se formando em minha mente com o transcorrer das horas, pois no momento em que adentrei ao quarto, senti que perdera toda a capacidade de raciocínio. Lembro que depois (e sei lá quantos minutos ou horas mantive-me petrificado a contemplar o desespero de Sueli) dirigi-me à sala para telefonar à polícia. Ato esse interrompido pela sirene de várias viaturas que chegavam. Da janela pude ver que a primeira delas já ultrapassava o portão do condomínio. Desci das escadas como um autômato e observei que Marisa e Sueli choravam abraçadas. Quando cheguei ao térreo, me surpreendi com a multidão que se aglomerava nas escadas e na rua. Dirigi-me ao veículo e os policiais passaram por mim como se não me notassem. Por trás deles, dentro do carro, identifiquei o rosto de Pedro. “Ah! Foi ele quem os trouxe, então soube da desgraça antes de nós”, pensei e chamei-o com sinais. Ele, contudo, não me encarou; desviou os olhos de mim e escondeu o rosto entre as mãos. Chorava compulsivamente.
Nuvens trevosas silhuetavam-se no horizonte aos clarões dos relâmpagos. A noite caíra mergulhada na escuridão.


Capítulo IV – Um assassino confesso.

Na tarde fria, um vento gélido uivava por entre os túmulos e fazia gemer as folhas das árvores. Passos, compassados, escorregavam-se num ritmo monótono. Esporadicamente, esse silêncio pesaroso era cortado por soluços abafados.
O número de pessoas no enterro me surpreendeu, pois a família de Soraya viera de Sorocaba há pouco mais de um ano; não julgava que tivesse tantos amigos. É verdade que não sabia também precisar quantos parentes tinha, nem quantos vieram. Talvez o fato de serem evangélicos, explicasse essa multidão ou, o mais provável, a curiosidade da população pela notícia estampada nos jornais. O crime, raro numa cidade pacata, não acostumada às grandes tragédias, envolto em mistério, escândalo e violência, acabou virando atração.
Uma ausência, porém, se fazia notar, embora eu não tenha estranhado tanto: o pai de Soraya não apareceu. Devia ser remorso ou dor, pensei, e esqueci-me disso o resto do dia.
Estávamos chocados! Mais Sueli que todos nós e mais nós que seus amigos de classe. E não eram tantos.
Pedro Benotti não só confessara o crime, como dera detalhes: estrangulara-a no banheiro e a arrastara até o quarto. Entregara-se a polícia logo em seguida, repetindo inúmeras vezes, como marteladas: “Eu a matei! Eu a matei!” Deu como motivo algo fútil: ciúmes. Motivo para mim, que me afastara meses de seu convívio, inimaginável. Estranho mesmo! Desestranhou-se-me-o, aos poucos, alguns dias depois, quando procurei as meninas para conversar mais detalhadamente sobre o assunto.
- Ele era ciumento, sim. – confirmava Marisa – Lógico, nunca pensei que assim desse jeito, dessa maneira doentia. Mas, algum tempo depois do alvoroço causado quando chegou aos ouvidos do pai o caso dos dois, Soraya começou a namorar um rapaz, mais ou menos da idade dela. Foi-nos apresentado numa lanchonete onde, casualmente, os encontramos. Isso foi mais o que suficiente para ele, que havia um tempo sumido, reaparecer. Chegaram a discutir muito e depois voltaram a se encontrar.
- E ela?
- Recobrou sua antiga paixão, algo que acredito nunca ter sido sepultado. Procurou a gente para dizer isso; parecia ter esquecido todos os problemas havidos. E mais: estava eufórica porque soube da separação de Pedro.
- Quando vi a janela acesa naquele dia – intrometeu-se Sueli, até então alheia à conversa – parece que pressenti a tragédia. Só o fato de, possivelmente, estarem sozinhos no apartamento, foi para mim motivo de apreensão. É claro que jamais imaginei uma coisa daquelas. Nossa, até agora, me desespero, só em lembrar tudo aquilo! Soraya era tão sonhadora. Tão cheia de vida! _ Concluiu quase em prantos.
Apesar dessa conversa, continuei por muito tempo, achando inacreditável que Pedro fosse capaz de tal monstruosidade. O motivo alegado_ conhecendo-o como eu o conhecia_ incoerente demais. O tempo, porém, congelou minhas dúvidas e afastei-me acovardado, inclusive de Sonia. Uma parede de constrangimento e medo intrometeu-se entre nós, desligando-nos do passado. Tentávamos, sufocando-o, antecipar um futuro longe de qualquer resquício daquele dia fatídico que tanto dilacerara todos nós.
Agora, como se as manivelas do destino forçassem o retroceder do tempo, ali estava eu na fila do presídio, pronto para ser sacudido até as vísceras por um passado que tentei repelir e que, sabia-o bem, não mais poderia evitar.


Capítulo V – Uma visita mais que esperada.

Pedro Benotti estava magérrimo e de uma palidez impressionante. Aqueles dezoito meses de cárcere envelheceram-o anos. Uma mórbida debilidade fazia seu corpo contorcer-se com tremores que tentava disfarçar com repetidos gestos, que o faziam uma caricatura cômica. Consciente de minha estupefação e presumível vacilação abarcou-me sem rodeios e com uma fluidez que transparecia que preparara tudo com muita antecedência:
- Obrigado por vir. Tinha certeza que viria – disse-me com certa aflição. Seus olhos vibraram com um brilho que transmitiam mais ansiedade do que alegria. – Temos menos de quinze minutos, insuficientes, você verá; por isso tomei a liberdade de lhe escrever esta carta – passou-me um envelope sem remetente e continuou, sem dar-me tempo de lhe responder. – Deixe para lê-la em sua casa e amanhã conversaremos sobre ela.
- Como sabe que voltarei aqui? – retruquei, não por relutância, mas apenas para tentar mostrar-me natural; já temendo ter sido grosseiro.
- Tudo que aí está escrito – prosseguiu, como se não tivesse sido interrompido – é a mais pura verdade. Uma confissão que faço unicamente porque não consigo mais conviver com esse silêncio. Sinto-me asfixiado. Convenci Sonia a vir aqui, queria ver meus filhos... Ela relutava em trazê-los e nem respondia as minhas cartas, - disse engasgando-se e entre tosses, prosseguiu: - mas acabei não entregando essa carta a ela. Na hora compreendi que não poderia ser assim. Daí, pensei em você. Mesmo porque, não teria mesmo outra pessoa.
Nos cubículos estreitos do corredor, dos guichês que se sucediam, portinholas começaram a se fechar como matracas endoidecidas. Murmúrios e choros se confundiam com risadas, com lábios a estalarem. Momentos antes, sem que Pedro parecesse ter se dado conta, uma sirene sentenciara que o tempo de visitas tinha expirado.
- Prometo-lhe que lerei esta carta, porém, voltar aqui, vai depender dessa leitura – frisei bem o final da frase e me despedi. Ele olhou-me com simpatia, sorrindo com humildade.
Ligeiro, sentindo que me atrapalhava nas pernas, ganhei a rua, aliviado por encontrar-me fora daquelas asfixiantes paredes.
A brisa que bateu clara de sol em meu rosto, jamais me reconfortara tanto. O sino da Catedral, que nunca eu ouvira tão alto, badalava dezessete horas. À tarde preguiçosa, agora, não mais me afligia.





Capítulo VI – Uma carta reveladora...


M... 1º de julho de 19xx.
Estou escrevendo como degredado. Degredado da vida. Degredado de qualquer esperança ou aspiração. Escrevo porque não quero levar para o túmulo uma culpa maior do que aquela que sei que carrego, que me tumultua o sono e faz angustiantes minhas noites de insônia. Escrevo porque gostaria de compartilhar com alguém a verdade que até agora sucumbi comigo nesta cela”.
Eu matei Soraya”.
O que confessei no horror daquele amaldiçoado dia é a mesma confissão que faria hoje, pois cônscio estou de todos os meus pecados, vacilações e cobardias e reconheço que minha punição não poderia ser menor, como não rogo absolvição, nem clemência”.
Eu matei Soraya”
No entanto, as mãos que a ultrajaram e a estrangularam, não foram as minhas. Fui o causador desse crime e conduzi, de fato, à morte, uma jovem adolescente de pouco mais de dezessete anos. E ser humano algum teve um maior castigo que o meu: Vê-la morta”.
Eu levei a pessoa que mais amava na vida a ser ultrajada, estrangulada e morta. Esse foi o meu crime e não mereço e nem clamo por perdão”.
Quando a conheci e por ela passei a nutrir uma paixão que jamais sentira antes, nunca imaginei que pudesse tão belo sentimento ser causa da ruína de tantas pessoas e banir da vida, a pessoa que mais amei. Consciência tinha que dera um passo irreversível que detonaria de vez o meu casamento e que meus filhos jamais me compreenderiam. Mas, tão alto preço com o tempo passou a ser irrelevante, pois Soraya fazia-me dono de uma felicidade imensurável, da qual julgava não ter mais direito. Depois de tantos anos, via-me de novo arrebatado de ciúmes e tinha certeza que conseguiria recomeçar a vida num patamar que bem poucos conseguiriam alçar. Era tanta a minha ansiedade em tê-la ao meu lado que muito sofri até conseguir removê-la de todos os seus medos e indecisões, natural na sua tenra idade, para que viesse morar comigo. No entanto, o nosso único obstáculo, que apesar de minha exasperação, nunca considerei intransponível, era a sua família, como todos sabiam, e mais especificamente, o seu pai, que depois vim a saber, tratava-se de seu padrasto.”
Apesar de seus amigos mais próximos não imaginarem o transtorno dessa situação, nenhum deles, tenho certeza, tinha a mais vaga ideia da complexidade que havia no relacionamento de Soraya com sua família e nem dos dilemas que nós dois passamos a viver”.
Atrás de seu sorriso e de suas maneiras desembaraçadas, Soraya escondia traumas de uma família psicologicamente insana. Insanidade essa traduzida num fanatismo sem freios e numa rigidez sem limites e sem critérios. Sob esse teto ela sofria perfídias, inimagináveis para seus amigos, pois por medo ou constrangimento, a ninguém revelava e nenhuma reclamação de seus lábios, jamais foi ouvida...”.
A carta continuava relatando as sevícias pelas quais passara Soraya quando criança. Discernia sobre a omissão e conivência da mãe que via em seu marido, que exercia as funções de pastor pentecostal, atributos divinos.
Quando chegou pela primeira vez aos ouvidos do padrasto, por intermédios de Sônia, que Soraya se apaixonara por um homem com quase a sua idade, ele ficou transtornado. Na sua mente doentia, aquela menina que tanto o repudiava, pertencia-lhe de corpo e alma. Era como uma afronta querer viver com um homem igual a ele.
Soraya que não cedia aos seus assédios, que se recusava a frequentar sua igreja; era tratada naquele lugar como devassa, prostituída e incrédula e na depravada mente do padrasto, culpada por todas as perversidades cometidas por ele, na infância, contra ela.
A mãe, num momento de alguma lucidez, tentara, para aplacar a ira ciumenta do marido, arrumar um namorado para a filha na própria igreja e convencera-o que deveria consentir com o namoro. Soraya também acabou concordando, pois vira nessa bizarra ideia, a única maneira de conseguir sair de casa e dos olhares do padrasto, nutrindo assim uma leve esperança de reencontrar Benotti.
O desfecho disso já se sabe: o romance foi recomeçado, porém, em condições muito mais difíceis e Pedro a partir daí, tentaria desesperadamente arrumar uma solução para o caso. A situação com o passar dos dias era cada vez mais complicada e constrangedora. André, o rapaz que servia como desculpa para tais conluios, não poderia ser enganado por muito tempo e os sumiços de Soraya, para pretensamente rever as amigas, passaram a levantarem suspeitas. Ela suplicava-lhe que não fosse, de maneira alguma, procurar o seu algoz e ao mesmo tempo vivia aterrorizada só em pensar que seus encontros poderiam ser revelados.
Pedro, então, um dia, mesmo indo contra as súplicas da menina, resolveu procurá-lo, e por um ponto final em tudo isso. – “Por mais asco que eu sinta daquele crápula” – finalizou como despedida.


Capítulo VII – Uma missão reconfortante.

Os recônditos da mente humana por mais que promissores sejam os avanços da ciência médica, por mais inegáveis se mostrem os conhecimentos da medicina nos campos de psiquiatria e neurologia, continuam indevassáveis.
O limite entre a normalidade e a esquizofrenia ainda se mantém indefiníveis por mais que a alma humana seja devassada pela psicanálise ou pela psicologia.
Qual o alcance previsível de uma mente doentia e sua patologia? Como apontar, sem medo de ser veementemente refutado, ser este homem são e aquele outro, insano?
Para nós, leigos essas interrogações são indecifráveis.
Essas perguntas perpassaram na minha mente enquanto lia e relia a carta de Pedro Benotti. A primeira impressão que me veio era que ele não avaliava seu próprio grau de loucura.
Qual o grau de sanidade de uma pessoa que assume a autoria de um crime real devido a ditames inquisitórios de sua consciência? Como alguém deixa de punir um assassino, ou de acusar um criminoso, para que a sua própria expiação seja realizada? Ou tudo ali relatado seria uma farsa e Pedro era, de fato, o autor do crime?
Porém, tal hipótese para mim, não fazia mais sentido e eu, no íntimo, sempre acreditara na sua inocência. A leitura da carta, neste aspecto, me deixava aliviado. No entanto, a pessoa que essas páginas me traziam de volta, era-me completamente estranha.
A carta terminava relatando o dia do assassinato e se até aquele momento ela discorria rica em detalhes, nesse momento deixava de ser prolixa, escasseando-se nas pormenorizações.
Minha visita a tal criatura foi rápida e áspera, sem mais delongas avisei-o de que não aceitaria ameaças e que assim que meu divórcio estivesse concluído me casaria com Soraya. E mais: para que ela não fosse mais importunada, não voltaria para aquela casa”.
Uma semana depois, ao retornar ao apartamento das meninas, ansioso por revê-la, encontrei-a morta; como todos sabem”.
As conclusões a que cheguei, são as mesmas que terá, após essa leitura.
Expresso aqui a certeza de poder contar com você”.

Pedro Benotti”

Numa coisa, porém, ele acertara: eu iria novamente visitá-lo e imbuído de aceitar a sua defesa; se é que Pedro estava de fato pensando nisso.
Assim decidido, fui novamente visitá-lo no dia seguinte e propus que me nomeasse seu advogado, pois assim teria mais tempo e liberdade para conversar com ele. Estava convencido de sua inocência, disse-lhe, e que gostaria de defendê-lo, caso ele não se opusesse.
Ele assentiu, dizendo que concordava com a ideia, mas, nem tanto pelo aspecto de sua defesa perante a justiça, e sim, por que se alguma dúvida houvesse sobre sua história, ele queria dirimi-la, pois pensara em mim justamente para ser o seu porta-voz perante seus filhos. Não conseguia conceder a ideia de que eles o tivessem como um monstro assassino. Fez-me jurar que eu tudo faria para provar a eles a sua inocência.
Ao contrário da visita anterior, sai de lá senhor de uma serenidade absoluta, como se tivesse recobrando a fé na vida e na raça humana. A missão a mim confiada, por mais espinhosa que pudesse ser, arrebatava-me o espírito e infundia-me alegria e esperança. Estava convicto de que a prisão do verdadeiro assassino era apenas uma questão de tempo.
Falei com Sônia e mostrei-lhe a carta. Ela demonstrou-se compreensiva, mas pouco entusiasmada com as revelações ali contidas, como era de se esperar. Disse-me que falaria com os filhos e que procuraria ajudar no que fosse possível, mas que não lhe fizessem nenhuma cobrança, pois sofrera muito e as feridas ainda eram recentes.
Meu reencontro com Sônia, apesar de certo constrangimento a princípio, foi agradável. Notei que suas mágoas comigo tinham sido esquecidas. Despedi-me confiando que reencontrara uma amiga.
Agradáveis não seriam, com certeza, as próximas visitas que me imbuí de fazer: decidi procurar os familiares de Soraya e também o garoto André, apesar de não conhecê-lo, intuí que, tendo tido contato direto com eles, talvez me ajudasse a desvendar o caso, conseguindo assim, as provas que precisaria para incriminar o padrasto.
Avaliei, também, que teria que pedir a exumação do cadáver, no intuito de conseguir com isso evidências de que outra pessoa esteve com Soraya e a matara. Depois, o próximo passo, seria marcar uma audiência com Pedro, para que ele, minuciosamente, me relatasse todos os fatos que antecederam a tragédia.
Pensei em ir até o apartamento das meninas, mas reavaliei: sem as evidências dos novos rumos que tomavam o caso, muito pouco elas poderiam contribuir. Por outro lado, sentia-me extasiado, minha alma amesquinhada por tantas e vis conjecturas que a solaparam nos últimos meses, hoje se jactava enlevada. Resolvi, então, sorver solitariamente esses bons presságios pelas reminiscências, de novo, reconfortadoras, que à noite auspiciosamente me prometia.
No céu se derramando em estrelas, a lua, redonda e bela, resplandecia a noite com todo fulgor.





Capítulo. VIII – Uma visita frustrante

A porta demorou um bom tempo para abrir-se. Chamei, bati, insisti, pois tudo indicava que havia alguém dentro de casa que resistia a aparecer. Dona Leocádia abriu-a com raiva, sem se preocupar em demonstrar o seu aborrecimento.
- O quê o senhor deseja, não vê que estou ocupada?
A primeira vista tratava-se de uma senhora velha e franzina. No entanto, ela não era tão idosa. O que lhe dava aquele ar de anciã era o seu traje escuro, acerbamente rígido, de colarinho fechado no pescoço e mangas que se alongavam sem elegância até os punhos. Os cabelos desalinhados, fartos e compridos, enrodilhados na cabeça e suas sobrancelhas grossas, realçando pele áspera e enrugada, davam-lhe um ar severo, aumentando assim, em muitos anos, a sua idade.
Quando me apresentei e disse-lhe que queria falar com o seu marido, um estremecimento percorreu todo seu corpo. Sua voz perdeu a segurança e lívida, tartamudeou
- Macedo ainda não voltou... Ele encontra-se no culto.
Atendendo ao meu pedido, indicou-me um endereço não muito longe dali; mas, logo a seguir começou a gritar, como se, de súbito, tivesse se arrependido de ter facilitado as coisas.
- Não revolva mais essa desgraça – admoestou-me – Foram os desígnios do Senhor que puseram fim à vida pecaminosa de minha filha. O senhor verá, o amante dela apodrecerá na cadeia. – E como se suplicasse acrescentou: Moço, não espezinhe mais o meu marido.
Seus olhos negros e pequenos não se definiam entre o medo e a raiva.
Deixando a remoer os seus recalques, apressei-me em procurar o local indicado.
A igreja, instalada em um salão, como tantas iguais a ela, onde possivelmente, antes funcionara um botequim, apesar de pequena, não se encontrava cheia. Umas trinta pessoas _ avaliei_ ouviam Macedo em seu improvisado púlpito.
Nem sempre o diabo é o que a gente pensa. A ideia que fazia do padrasto de Soraya, a quem nunca fora apresentado, não combinava em nada com aquele senhor que agora eu ouvia declamando comedido em minha frente. Se eu esperava um fanático desvairado a exorcizar demônios, a serenidade do pastor me surpreendeu. Percebia-se sua empatia com o público e que sua oratória o cativava. Passava uma imagem de um senhor sério, calmo e compenetrado.
Enquanto esperava o término do culto, que ainda levaria mais de trinta minutos notei após um breve tempo, uma pessoa dirigindo-se a ele. Esperou que interrompesse o discurso e cochichou-lhe aos ouvidos. Pelos olhares que me dirigiram em seguida, percebi que o avisaram do motivo de minha presença. Contando com a surpresa de minha investida, frustrou-me essa nova situação, que me desarmava. Aguardei apreensivo.
Terminando o culto, Macedo dirigiu-se a mim, resoluto, mas sem aparentar pressa alguma.
- O senhor deseja falar-me? – inquiriu – Seja breve. Mesmo porque não teremos muito o quê conversar.


Capítulo IX – Um final inesperado

Essas peças que prega-nos a vida, sempre nos deixam transtornados. Quando estamos convencidos da infalibilidade de nossos planos, vemos situações não previstas, desmoroná-los. Quanto mais nos elevamos pretensiosos, inatingíveis, com mais força ela nos derruba de volta, para a nossa ignobilidade.
Essa frustração inicial fez com que eu antecipasse a visita à cadeia pública. Precisava, com urgência, que Pedro me detalhasse os fatos que antecederam o crime. A segurança de Macedo me surpreendeu e fez desmoronar em mim, certezas que acreditava ter.
Antes de lhe relatar o desfecho de minha empreitada, procurei saber sobre sua confissão à polícia e por que ele declinara com tantos detalhes sobre o crime. Pedro respondeu-me que fora levado a isso pela maneira como o questionaram. Ao ter-se declarado culpado foi submetido a uma enxurrada de perguntas e ainda em choque, sentindo-se o causador de toda essa tragédia, respondeu a tudo afirmativamente e isso foi relatado no inquérito como uma confissão inquestionável, pois cheia de pormenores. As contradições só vieram a aparecer na reconstituição do crime, há mais de um mês e de cujo resultado, até agora não tomara ciência.
Contei-lhe, então, de minha conversa com Macedo e de sua rispidez ao negar veemente, como se isso eu lhe tivesse insinuado, qualquer ligação com o crime. E para espanto meu, tinha um álibi perfeito:
- Por que ao invés de perder o seu tempo comigo, não lê mais detalhadamente o inquérito? Não sei se o senhor sabe, – completou com um sorriso de ironia – já prestei declarações à polícia e lá consta que naquele dia eu estava em Londrina, no encontro de pastores de minha igreja, e só retornei três dias depois.
- A minha inexperiência – confessei a Pedro – levou-me de fato a um erro grosseiro; falhei naquilo que era elementar. Mas o que me deixou ainda mais desconfortável foi à arrogância do pastor. Seu tom era sarcástico e seus olhos brilharam num misto de triunfo e ódio. Longe do púlpito sua candura se metamorfoseava em júbilo de uma criatura que se sentia acima de qualquer outra e revelava ter um grande prazer em tripudiar sobre aqueles que ele considerava seus inimigos. Quando julgou encerrado o nosso encontro, despediu-se enigmático:
- Pobre André, eles vão fazê-lo sofrer mais ainda. Mas os caminhos do Senhor são sempre tortuosos. Boa tarde, caro advogado, se possível, poupe-me de revê-lo.
A partir deste ponto senti que meu relato passou a não interessar mais a meu amigo. Ouvia com enfado, quedando-se numa morbidez tamanha que seus olhos perderam todo o brilho. Minhas considerações e planos interessaram-no menos ainda. Despediu-se-me com um lacônico: “Faça o que achar melhor”, - Resumindo assim toda sua tristeza e letargia.
Saí dali muito mais arrasado do que entrara. A chuva fina que varria a tarde fustigou-me no rosto como um castigo. Perambulei por aquelas ruas vazias com a alma pesada em meu peito, contraída... Agoniada. No meu âmago, antecipava-se sem aparente razão de ser, talvez pelas minhas incontestáveis falhas ou pelo desânimo lancinante estampado na face de Pedro, enfim, entre idéias confusas e medos despropositados, uma iminente tragédia.
Na manhã seguinte fui surpreendido, ainda na cama, com batidas enérgicas na porta. Vesti-me rapidamente e antes de abri-la, espiei precavido, pelo olho mágico. Eram as meninas, felizes e alvoroçadas.
- Você soube da última? – Perguntaram uníssonas e Sueli prosseguiu: André se entregou. Não foi Pedro que a matou, afinal!
A notícia me pegava de surpresa, não pelo fato em si, que agora se mostrava óbvio, mas por estar esperando por uma árdua batalha. A confissão de André antecipava, talvez meses, a minha tarefa.
A alegria das meninas era a exorcização de um pesadelo que caíra sobre nós. Em particular, aliviava-me também da minha agonia premonitória e ponderei que, na verdade, não passava de delírios tenebrosos sem fundamento algum. A vida retomava seu curso e os maus presságios se desfaziam na bela manhã que se estampava lá fora.
Logo no início da tarde, com o espírito renovado, procurei me informar de tudo que acontecera nessas últimas horas e assim tomei conhecimento do depoimento do rapaz. Mais do que réu André era também vítima de uma situação sordidamente premeditada por outrem. Fora usado, na inexperiência de seus vinte anos, na sua paixão e ódio adolescentes, por mentes maléficas e criminosas. Apesar de nunca vislumbrar em Soraya a mesma paixão que ele lhe nutria, André, apaixonado, ainda tinha esperanças de um dia ser correspondido. Relutou em aceitar o simulacro em que o tinham metido e incapaz de dimensionar os limites da hipocrisia humana, foi aconselhar-se com aquele em quem mais confiava: no pastor de sua igreja e pai de sua namorada.
Macedo primeiro confirmou com nuances todas as suspeitas do jovem e depois, insuflou-lhe o seu ódio contando todas as ignomínias do devasso casal, conseguindo transferir o seu veneno para o coração de André, instigando-o ao crime. André passou a vigiá-la e com o tempo passou a odiá-la, ao sentir que a perdera, quando, na verdade, nunca a tivera.
Enquanto o pastor se deliciava com a sua perfídia, André se remoia em remorsos e desespero, mas era pelo outro convencido a não se entregar. Até o dia em que foi avisado por Macedo que ele estava prestes a ser descoberto e aconselhava-o a fugir.
Antes se entregar, pensou o jovem, do que continuar fugindo de minha própria consciência”. Talvez, agora, outra coisa não quisesse o pastor.
Foi pensando nas sórdidas vilanias da alma humana, que me dirigi à cela onde se encontrava Benotti. Queria ser o primeiro a comunicar-lhe que sua liberdade era apenas uma questão de horas.
- Meu Deus! - Gemeu o carcereiro que antecipou-se-me, no momento de adentrarmos ao corredor.
O corpo de Pedro, estertorando-se, pendia das grades da janela.
As sirenes, que agora já estridulavam o ambiente, cumpriam apenas um ritual inútil.


*Conto Escrito em 2002


terça-feira, 20 de setembro de 2016

Centúrias Fecais



(revisitando Nostradamus)


Começo de um redondo óbvio
(sinais do fim dos tempos)
defenestrado em hermética redoma
de cristais argênteos, dantes aprisionado
nas cavidades glúteas.

Balbucio sôfrego do ser supliciado
por cartilagens vítreas. Dessecadas.
Soluços roucos, gritos mudos.
Petrificados.

Involuntários atos falhos regados
depois em pequenas doses etílicas
espairecidas em cálice vulgar
remidos no sorver da noite
tênue de pálidas estrelas.

E os ponteiros ociosamente avançam.
Sóbrios.


janeiro/00