O Crápula
(Um resumo de várias tragédias)
Preâmbulo:
Caminhavam,
o maníaco do parque e a modelo, em direção à parte mais densa e
escura da mata. Vendo, a modelo, que a noite avançava e a estrada
mais e mais se estreitava, mata adentro, disse: “Credo, estou
ficando apavorada”. Em que o maníaco revidou quase que
sussurrando: “Se você está com medo, imagine eu, que vou voltar
sozinho”.
Esta mórbida anedota, surgida
após a prisão do assassino confesso de mais de treze mulheres, em
1998, em São Paulo, ilustra bem, na contramão da tragédia “a
normalidade doentia” dos psicopatas, e leva-nos a um mundo
completamente desconhecido para nós, “os normais”. Após esse
fato, durante semanas, destilaram em hipóteses e explicações, nos
noticiários diários da imprensa escrita, falada e televisiva,
psiquiatras, psicólogos, sociólogos, psicanalistas e outros que
tais e assim nos inundaram de teorias sobre o caso. Assunto, aliás,
nada inédito ou original, seja na vida ou nas artes (teatro, cinema
e literatura), como também brinda-nos, periodicamente, com episódios
iguais a esse a história policial, as rádios e a televisão, em
todas as partes do globo. Para não nos alongarmos com exemplos,
citaremos, pela complexidade dos personagens dos livros e pela
genialidade do autor, os romances: “Crime e Castigo” e “Irmãos
Karamasóvski”, de Dostoiévski, embora, nesses romances, os
autores não falem em crimes em série, e talvez, por esse prisma,
seus criminosos não possam ser taxados de psicopatas. Cabe, então,
a citação aqui, do filme magnífico de Charles Chaplin: “Dr
Verdun”.
Têm essas evocações a
finalidade de lhe introduzir, caro leitor, na narrativa que segue;
antes, porém, cabe-me alertá-lo que termina aqui a similaridade com
as obras citadas e se as fiz preâmbulo, confesso, foi apenas para
reter sua atenção. Esclareço-lhe, também, que os motivos que me
levaram a buscar dos recônditos da mente essas lembranças, foram à
prisão do tal maníaco e a comoção que tomou conta de toda uma
cidade. Ouso pedir-lhe, então, que continue a leitura; mas, antes de
prosseguir, daremos ao principal personagem desta história um nome
para melhor familiarizá-lo com você: Pedro Benotti.
Agora com o personagem já
batizado e devidamente caracterizado, pois claro está que se trata
de um suposto assassino, saltaremos algumas páginas para melhor
conduzir o drama; causas e consequências se definidas, facilitam
sempre o destrinchar da trama.
Capítulo I – Uma visita inusitada
Deparei-me
com uma fisionomia que tinha menos de triste do que de cansada e
pareceu-me que, se vinha procurar-me era a contragosto e qualquer
desculpa que eu lhe desse, motivo seria para voltar aliviada,
considerando cumprida a sua missão. Mais: batera na porta na certeza
de que não me encontraria. A minha recepção a frustrava e lhe
impunha uma incontornável obrigação:
- Serei breve, - mastigou sem olhar-me – Pedro quer vê-lo e pediu-me que lhe dissesse que não aceitará uma negativa sua. Ameaça se matar, dando a entender que você é a única pessoa em quem deposita alguma esperança. Pediu-me tão desesperado e veemente que não tive como me negar a procurá-lo. Espero que não o desaponte, embora isso não tenha para mim a menor importância.
Sem esperar resposta voltou-se
abruptamente e desceu as escadas quase a correr.
Foi desta maneira, que páginas
viradas de um passado tão recente, voltaram a me exigir respostas.
Sem saída, resolvi encarar de novo aquele pesadelo.
Visto de fora, o prédio do 4º
distrito policial, acinzentado e velho, lembrava um grande baú
plantado na praça árida e descuidada. Quais feridas exangues, suas
paredes nuas e descascadas, causavam uma impressão de abandono e
aniquilamento.
Adentrei àquele asqueroso lugar
movido mais por curiosidade pelo inusitado, do que por consideração
ou altruísmo. Na verdade, tão inesperado pedido arrebatava-me de
meses de esquecimento, que em meu cérebro pareciam séculos. Era
como se tivessem sido abertas janelas carcomidas pela poeira dos
tempos, das quais conseguira ignorar a existência ou reprimi-las com
repulsa.
O prédio parecia deserto e pude
caminhar por várias de suas dependências sem encontrar nenhum
funcionário que me interpolasse, pedisse explicações sobre minha
intrusão ou quisesse me identificar. Nem parecia uma cadeia pública
onde a segurança deveria ser mais que uma regra. Passou-me pela
cabeça recuar, desistir da empreitada, esquecer porque vim,
recuperando assim minha passividade cotidiana. Por um momento cheguei
a considerar a possibilidade de um equívoco: teria sonhado. Será
que teria sido de fato chamado? No entanto, para que não pairasse
nenhuma dúvida sobre isso, um funcionário, surgido sabe-se lá por
qual porta, materializou-se em minha frente identificando-se como
oficial de justiça:
- Com quem está marcada sua
audiência? – perguntou, confundindo-me, por certo, com algum outro
advogado.
Tal pergunta deixou-me aturdido
e confuso, soando aos meus ouvidos como uma acusação.
- Vim visitar um amigo –
respondi depois de algum tempo, tentando disfarçar o meu
constrangimento. Minha voz soou-me falsa, como se minha não fosse.
- Visita só daqui à uma hora –
retrucou encarando-me e completou: Portão ao lado, por aquela rua.
Tartamudeei um agradecimento e
saí.
“Uma hora ainda”, pensei.
Uma hora que se escorregou devagar, quase a conta-gotas. A água
tônica que pedi na lanchonete da esquina, só para matar o tempo,
acabou logo, deixando-me sem graça a olhar transeuntes que surgiam e
desapareciam nas calçadas. Dali onde estava dava para vislumbrar, em
frente ao distrito, um cemitério grande e recém-caiado que roubava
esquinas e esparramava calçadas e, ao longe, atrás e a direita, o
prédio da Universidade, emoldurado pelas serras que circundam a
cidade. Foi lá, outrora, que cursávamos a Faculdade de Direito.
Pedro, na época, já era
casado, pai de dois meninos, um de sete e outro de nove anos, o que o
diferenciava dos outros estudantes, a maioria bem mais jovem e
descompromissada. Bem antes de conhecê-lo eu já tinha amizade com a
sua mulher, pois cursara com ela o segundo grau, e frequentava
esporadicamente a sua casa. Aos olhos daqueles dias, parecia
impossível imaginar-me, aqui, à porta de uma cadeia pública,
esperando vê-lo como um sentenciado.
Mas, prossigamos, voltemos a nos
colocar na sequência correta do tempo: estávamos no último ano da
Faculdade. A ansiedade tomava conta de nós: ver terminar o curso,
jogar fora os livros e cadernos; dar um basta nas aulas maçantes e
nos chatos professores. Mas o último ano é também o ano de
acontecimentos marcantes, que fazem germinar as sementes de futuras
reminiscências e relevam ao esquecimento as lembranças passadas.
Sofregamente tudo o que ainda não dera passagem nos anos anteriores,
entra em nossas vidas ávido em ocupar o seu lugar, num frenesi do
apagar das luzes.
Nesse burburinho que tumultuava
nossas mentes somaram-se novas amizades que, para nós, já
desiludidos de novas aventuras, foi como um vento bom depois de
enfadonha calmaria. Assim, apareceram-nos, Soraya, ainda nos seus
dezessete anos, preparando-se para enfrentar o vestibular; Marisa,
sua amiga, no segundo ano de Psicologia e Sueli, caloura nesse mesmo
curso. As duas últimas dividiram um mesmo apartamento e as bagagens
da Sueli seriam trazidas no dia seguinte, de manhã. Solícitos,
oferecemos nossa ajuda quando se despediram e, no murmurejar da
madrugada que silenciosamente clareava, ficamos a bebericar as nossas
frescas amizades, de repente mais do que felizes e de bem com a vida.
Os clarões de um novo dia
fulguravam tímidos por detrás dos velhos telhados dos antigos
casarões, quando resolvemos ir embora. Tais silhuetas configuravam
em nós o eterno convalescer das coisas: o antigo dando lugar à
novidade e o novo se amadurecendo, sem disso se dar conta.
Capítulo II – Um Romance pouco casual
O
dia mal despertara e lá estávamos nós, indecisos se batíamos na
porta, ou, com uma ponta de frustração e outra de arrependimento
fustigando nossos espíritos se, batíamos em retirada por essa
mancada idiota de virmos tão cedo em um domingo que amanhecia frio e
premeditando chuva, ajudar pessoas que mal conhecíamos e que,
talvez, nem mais se lembrassem da gente.
Resolvemos pelo meio termo e
instalamo-nos num bar a poucas quadras dali, que mal acabara de abrir
as portas, na expectativa de ver se de dentro da casa alguma alma
piedosa dava sinais de vida e acudia dois boêmios ainda de ressaca e
tiritando de frio.
Mais de uma hora se passou e,
depois de muito café e pouco assunto, surge vindo em nossa direção,
a pequena Soraya, linda em seu abrigo negro que realçava seu rosto
tão alvo quanto juvenil. Notei que para Benotti foi como uma
revelação. Ele a cumprimentou com entusiasmo e nos dirigimos para o
apartamento. Esse entusiasmo manteve-se no transcorrer do dia,
durante o qual ele a privilegiou com sua atenção e amabilidades,
assim prosseguindo, nos outros subsequentes.
Soraya transpôs fácil, em
poucas semanas, a timidez de sua tenra idade frente a um homem bem
mais velho e na simplicidade de seus gestos embaraçados deixou, aos
poucos, transparecer a todos a sua paixão mal disfarçada, até
abrir-se às amigas as quais pediu segredo, querendo assim selar com
as duas uma cumplicidade já consentida e premeditada.
O enredo torna-se óbvio e
podemos resumir a narrativa: Pedro não se fez de rogado para
corresponder aos sentimentos da menina e se seu casamento, o que já
era de conhecimento de todos, evidenciava uma crise, tal situação a
exacerbou. Sonia, sua mulher, viu-os juntos num shopping e não
afeita a grandes escândalos foi despir sua alma dilacerada, num
impulso vingativo e ao mesmo tempo querendo atabalhoadamente
conservar o casamento, nos ouvidos do pai de Soraya. Este, além de
infligir à filha, pesada surra, proibiu-a de sair de casa e de rever
os amigos. Tirou-a da Escola e passou a vigiá-la constantemente.
Sonia não mais falou comigo e Pedro abandonou a Faculdade.
No meu caso, estando tão
próximo o término dos meus estudos, por eles fui absorvido por
inteiro e mesmo das meninas, fora algum encontro casual, perdi o
contato e não mais as vi.
Como nem tudo na vida é
definitivo e certos reencontros são inevitáveis, encontrei meses
depois, quando saía eufórico dos exames da OAB, Marisa e Sueli na
porta da Faculdade. Diferente das outras vezes, eu não estava com
pressa, sentia-me, aliás, leve e disposto para longas conversas,
querendo mesmo saber das novidades. Fomos a uma lanchonete e horas
depois, ao nos despedirmos, combinamos passar juntos alguns dias na
praia, no início do novo ano, que já batia à porta.
Nesses poucos meses que me
ausentei propositalmente de suas vidas; pois fugi, essa é a verdade,
de qualquer contato com qualquer um deles, muita coisa aconteceu –
como me contou Marisa – o que era lógico, ninguém paralisa com
sua ausência, embora possa imaginar assim, os fluxos das inúmeras
vidas que lhe cercam. Além de para nós mesmos, não somos tão
importantes para mais ninguém. Nesse breve tempo, Pedro se separou
de Sônia, sua mulher, reatando a partir daí seu romance com Soraya.
Porém, um único e grave empecilho se interpunha entre eles: a
família dela. E diante disso os encontros, às escondidas,
aconteciam no apartamento das meninas.
Amores assim proibidos são tão
comuns quanto belos e tão belos quanto trágicos: Romeu e Julieta,
em Shakespeare, se mataram; Tristão e Isolda, segundo R. Wagner,
séculos atrás, tiveram o mesmo fim; Julia, de Balzac, deixa o
marido e entrega-se ao amante, Lorde de Greenville. A senhora de
Rênal abandona-se nos braços do jovem Julien, em Stendhal. Madame
Bovary, Flaubert, cansada da frívola vida, toma também o mesmo
caminho; Anne Karênina, Tolstoi, enfrenta toda uma sociedade, até
suicidar-se para não renegar seus sentimentos; Gilliatt enfrenta
marés, ventos e tempestades pela mão de Deruchètte e deixa-se
morrer no mar, por sentir-se rejeitado, em Victor Hugo; Johannes, de
Kierkegaard, abandona a noiva no altar para ser padre... Espera, essa
é outra história. Em todas elas, no entanto, o desfecho é trágico.
Com mais ou menos intensidade, os romances proibidos, também na vida
real, tem seu grau de tragédia e as tragédias assim como as grandes
alegrias, acontecem sempre de supetão, inopinadamente e quase sempre
se contrapondo umas às outras.
Capítulo III – Um trágico desfecho.
Como
combinamos, passamos alguns dias na praia: Marisa, Sueli, um casal
amigo delas e eu. Retornamos num sábado, já no fim da tarde, quando
o sol ainda ardia amarelo.
Ao sairmos da Rodovia Ayrton
Senna para desembocarmos rumo ao centro da cidade, a noite se
avizinhava e, há um quarteirão antes do prédio, já avistamos
luzes no terceiro andar, onde elas moravam.
- Olha só! – indicou Marisa –
Será que Soraya está em casa? - sugeriu alegre, olhando-me de
relance.
- Ou Pedro –, retruquei.
- Ou ambos – completou Sueli,
mostrando-se apreensiva.
Pelo retrovisor do carro, os
amigos de Sueli davam sinais de despedida, tomando o rumo do centro
da cidade. Sueli respondeu buzinando e acelerou o veículo, tomada de
súbita pressa.
- Faça assim - propus – sobe
você, Marisa e eu a esperaremos lá na esquina, p’rá tomarmos uma
saideira.
- Isso! Aproveita e os convida
também – concordou Marisa, enquanto já descíamos do carro – Se
tiver jeito, é claro.
Aguardamos que Sueli
estacionasse o veículo e a vimos subir rapidamente as escadas. Mal
tínhamos atravessado a rua em direção ao bar, quando ouvimos seu
grito de terror que cortou, sufocado, o ar. Precipitamo-nos ao seu
encontro.
Jamais tinha estado antes tão
perto da morte, nem tão de frente com o horror e minhas amigas, com
certeza, também não. Senti algo próximo ao pânico e demorei
longos minutos para reagir à paralisia que tomou conta de todo meu
corpo.
Ao entrar no quarto deparei-me
com o corpo nu de Soraya desfalecido na cama. Sueli estava de joelhos
e seu corpo tremia, convulsionado. O grito morrera em sua garganta e
nenhum balbucio saia de sua boca. Seu rosto, perplexo num esgar mudo
e desfigurado, parecia uma máscara sem cor.
Soraya notava-se, teria sido
jogada na cama, pois suas pernas achavam-se retorcidas. Seu pescoço
arroxeado, quase azul, com marcas de cordas finas de varal – três
ou quatro superpostas – pendia como se tivesse sido deslocado para
trás ou para cima. Marcas no chão indicavam que ela tinha sido
arrastada do banheiro.
Esses detalhes foram se formando
em minha mente com o transcorrer das horas, pois no momento em que
adentrei ao quarto, senti que perdera toda a capacidade de
raciocínio. Lembro que depois (e sei lá quantos minutos ou horas
mantive-me petrificado a contemplar o desespero de Sueli) dirigi-me à
sala para telefonar à polícia. Ato esse interrompido pela sirene de
várias viaturas que chegavam. Da janela pude ver que a primeira
delas já ultrapassava o portão do condomínio. Desci das escadas
como um autômato e observei que Marisa e Sueli choravam abraçadas.
Quando cheguei ao térreo, me surpreendi com a multidão que se
aglomerava nas escadas e na rua. Dirigi-me ao veículo e os policiais
passaram por mim como se não me notassem. Por trás deles, dentro do
carro, identifiquei o rosto de Pedro. “Ah! Foi ele quem os trouxe,
então soube da desgraça antes de nós”, pensei e chamei-o com
sinais. Ele, contudo, não me encarou; desviou os olhos de mim e
escondeu o rosto entre as mãos. Chorava compulsivamente.
Nuvens trevosas silhuetavam-se
no horizonte aos clarões dos relâmpagos. A noite caíra mergulhada
na escuridão.
Capítulo IV – Um assassino confesso.
Na
tarde fria, um vento gélido uivava por entre os túmulos e fazia
gemer as folhas das árvores. Passos, compassados, escorregavam-se
num ritmo monótono. Esporadicamente, esse silêncio pesaroso era
cortado por soluços abafados.
O número de pessoas no enterro
me surpreendeu, pois a família de Soraya viera de Sorocaba há pouco
mais de um ano; não julgava que tivesse tantos amigos. É verdade
que não sabia também precisar quantos parentes tinha, nem quantos
vieram. Talvez o fato de serem evangélicos, explicasse essa multidão
ou, o mais provável, a curiosidade da população pela notícia
estampada nos jornais. O crime, raro numa cidade pacata, não
acostumada às grandes tragédias, envolto em mistério, escândalo e
violência, acabou virando atração.
Uma ausência, porém, se fazia
notar, embora eu não tenha estranhado tanto: o pai de Soraya não
apareceu. Devia ser remorso ou dor, pensei, e esqueci-me disso o
resto do dia.
Estávamos chocados! Mais Sueli
que todos nós e mais nós que seus amigos de classe. E não eram
tantos.
Pedro Benotti não só
confessara o crime, como dera detalhes: estrangulara-a no banheiro e
a arrastara até o quarto. Entregara-se a polícia logo em seguida,
repetindo inúmeras vezes, como marteladas: “Eu a matei! Eu a
matei!” Deu como motivo algo fútil: ciúmes. Motivo para mim, que
me afastara meses de seu convívio, inimaginável. Estranho mesmo!
Desestranhou-se-me-o, aos poucos, alguns dias depois, quando procurei
as meninas para conversar mais detalhadamente sobre o assunto.
- Ele era ciumento, sim. –
confirmava Marisa – Lógico, nunca pensei que assim desse jeito,
dessa maneira doentia. Mas, algum tempo depois do alvoroço causado
quando chegou aos ouvidos do pai o caso dos dois, Soraya começou a
namorar um rapaz, mais ou menos da idade dela. Foi-nos apresentado
numa lanchonete onde, casualmente, os encontramos. Isso foi mais o
que suficiente para ele, que havia um tempo sumido, reaparecer.
Chegaram a discutir muito e depois voltaram a se encontrar.
- E ela?
- Recobrou sua antiga paixão,
algo que acredito nunca ter sido sepultado. Procurou a gente para
dizer isso; parecia ter esquecido todos os problemas havidos. E mais:
estava eufórica porque soube da separação de Pedro.
- Quando vi a janela acesa
naquele dia – intrometeu-se Sueli, até então alheia à conversa –
parece que pressenti a tragédia. Só o fato de, possivelmente,
estarem sozinhos no apartamento, foi para mim motivo de apreensão. É
claro que jamais imaginei uma coisa daquelas. Nossa, até agora, me
desespero, só em lembrar tudo aquilo! Soraya era tão sonhadora. Tão
cheia de vida! _ Concluiu quase em prantos.
Apesar dessa conversa, continuei
por muito tempo, achando inacreditável que Pedro fosse capaz de tal
monstruosidade. O motivo alegado_ conhecendo-o como eu o conhecia_
incoerente demais. O tempo, porém, congelou minhas dúvidas e
afastei-me acovardado, inclusive de Sonia. Uma parede de
constrangimento e medo intrometeu-se entre nós, desligando-nos do
passado. Tentávamos, sufocando-o, antecipar um futuro longe de
qualquer resquício daquele dia fatídico que tanto dilacerara todos
nós.
Agora, como se as manivelas do
destino forçassem o retroceder do tempo, ali estava eu na fila do
presídio, pronto para ser sacudido até as vísceras por um passado
que tentei repelir e que, sabia-o bem, não mais poderia evitar.
Capítulo V – Uma visita mais que esperada.
Pedro
Benotti estava magérrimo e de uma palidez impressionante. Aqueles
dezoito meses de cárcere envelheceram-o anos. Uma mórbida
debilidade fazia seu corpo contorcer-se com tremores que tentava
disfarçar com repetidos gestos, que o faziam uma caricatura cômica.
Consciente de minha estupefação e presumível vacilação
abarcou-me sem rodeios e com uma fluidez que transparecia que
preparara tudo com muita antecedência:
- Obrigado por vir. Tinha
certeza que viria – disse-me com certa aflição. Seus olhos
vibraram com um brilho que transmitiam mais ansiedade do que alegria.
– Temos menos de quinze minutos, insuficientes, você verá; por
isso tomei a liberdade de lhe escrever esta carta – passou-me um
envelope sem remetente e continuou, sem dar-me tempo de lhe
responder. – Deixe para lê-la em sua casa e amanhã conversaremos
sobre ela.
- Como sabe que voltarei aqui? –
retruquei, não por relutância, mas apenas para tentar mostrar-me
natural; já temendo ter sido grosseiro.
- Tudo que aí está escrito –
prosseguiu, como se não tivesse sido interrompido – é a mais pura
verdade. Uma confissão que faço unicamente porque não consigo mais
conviver com esse silêncio. Sinto-me asfixiado. Convenci Sonia a vir
aqui, queria ver meus filhos... Ela relutava em trazê-los e nem
respondia as minhas cartas, - disse engasgando-se e entre tosses,
prosseguiu: - mas acabei não entregando essa carta a ela. Na hora
compreendi que não poderia ser assim. Daí, pensei em você. Mesmo
porque, não teria mesmo outra pessoa.
Nos cubículos estreitos do
corredor, dos guichês que se sucediam, portinholas começaram a se
fechar como matracas endoidecidas. Murmúrios e choros se confundiam
com risadas, com lábios a estalarem. Momentos antes, sem que Pedro
parecesse ter se dado conta, uma sirene sentenciara que o tempo de
visitas tinha expirado.
- Prometo-lhe que lerei esta
carta, porém, voltar aqui, vai depender dessa leitura – frisei bem
o final da frase e me despedi. Ele olhou-me com simpatia, sorrindo
com humildade.
Ligeiro, sentindo que me
atrapalhava nas pernas, ganhei a rua, aliviado por encontrar-me fora
daquelas asfixiantes paredes.
A brisa que bateu clara de sol
em meu rosto, jamais me reconfortara tanto. O sino da Catedral, que
nunca eu ouvira tão alto, badalava dezessete horas. À tarde
preguiçosa, agora, não mais me afligia.
Capítulo VI – Uma carta reveladora...
M...
1º de julho de 19xx.
“Estou escrevendo como
degredado. Degredado da vida. Degredado de qualquer esperança ou
aspiração. Escrevo porque não quero levar para o túmulo uma culpa
maior do que aquela que sei que carrego, que me tumultua o sono e faz
angustiantes minhas noites de insônia. Escrevo porque gostaria de
compartilhar com alguém a verdade que até agora sucumbi comigo
nesta cela”.
“Eu matei Soraya”.
“O que confessei no horror
daquele amaldiçoado dia é a mesma confissão que faria hoje, pois
cônscio estou de todos os meus pecados, vacilações e cobardias e
reconheço que minha punição não poderia ser menor, como não rogo
absolvição, nem clemência”.
“Eu matei Soraya”
“No entanto, as mãos que a
ultrajaram e a estrangularam, não foram as minhas. Fui o causador
desse crime e conduzi, de fato, à morte, uma jovem adolescente de
pouco mais de dezessete anos. E ser humano algum teve um maior
castigo que o meu: Vê-la morta”.
“Eu levei a pessoa que mais
amava na vida a ser ultrajada, estrangulada e morta. Esse foi o meu
crime e não mereço e nem clamo por perdão”.
“Quando a conheci e por ela
passei a nutrir uma paixão que jamais sentira antes, nunca imaginei
que pudesse tão belo sentimento ser causa da ruína de tantas
pessoas e banir da vida, a pessoa que mais amei. Consciência tinha
que dera um passo irreversível que detonaria de vez o meu casamento
e que meus filhos jamais me compreenderiam. Mas, tão alto preço
com o tempo passou a ser irrelevante, pois Soraya fazia-me dono de
uma felicidade imensurável, da qual julgava não ter mais direito.
Depois de tantos anos, via-me de novo arrebatado de ciúmes e tinha
certeza que conseguiria recomeçar a vida num patamar que bem poucos
conseguiriam alçar. Era tanta a minha ansiedade em tê-la ao meu
lado que muito sofri até conseguir removê-la de todos os seus medos
e indecisões, natural na sua tenra idade, para que viesse morar
comigo. No entanto, o nosso único obstáculo, que apesar de minha
exasperação, nunca considerei intransponível, era a sua família,
como todos sabiam, e mais especificamente, o seu pai, que depois vim
a saber, tratava-se de seu padrasto.”
“Apesar de seus amigos mais
próximos não imaginarem o transtorno dessa situação, nenhum
deles, tenho certeza, tinha a mais vaga ideia da complexidade que
havia no relacionamento de Soraya com sua família e nem dos dilemas
que nós dois passamos a viver”.
“Atrás de seu sorriso e de
suas maneiras desembaraçadas, Soraya escondia traumas de uma família
psicologicamente insana. Insanidade essa traduzida num fanatismo sem
freios e numa rigidez sem limites e sem critérios. Sob esse teto ela
sofria perfídias, inimagináveis para seus amigos, pois por medo ou
constrangimento, a ninguém revelava e nenhuma reclamação de seus
lábios, jamais foi ouvida...”.
A carta continuava relatando as
sevícias pelas quais passara Soraya quando criança. Discernia sobre
a omissão e conivência da mãe que via em seu marido, que exercia
as funções de pastor pentecostal, atributos divinos.
Quando chegou pela primeira vez
aos ouvidos do padrasto, por intermédios de Sônia, que Soraya se
apaixonara por um homem com quase a sua idade, ele ficou
transtornado. Na sua mente doentia, aquela menina que tanto o
repudiava, pertencia-lhe de corpo e alma. Era como uma afronta querer
viver com um homem igual a ele.
Soraya que não cedia aos seus
assédios, que se recusava a frequentar sua igreja; era tratada
naquele lugar como devassa, prostituída e incrédula e na depravada
mente do padrasto, culpada por todas as perversidades cometidas por
ele, na infância, contra ela.
A mãe, num momento de alguma
lucidez, tentara, para aplacar a ira ciumenta do marido, arrumar um
namorado para a filha na própria igreja e convencera-o que deveria
consentir com o namoro. Soraya também acabou concordando, pois vira
nessa bizarra ideia, a única maneira de conseguir sair de casa e
dos olhares do padrasto, nutrindo assim uma leve esperança de
reencontrar Benotti.
O desfecho disso já se sabe: o
romance foi recomeçado, porém, em condições muito mais difíceis
e Pedro a partir daí, tentaria desesperadamente arrumar uma solução
para o caso. A situação com o passar dos dias era cada vez mais
complicada e constrangedora. André, o rapaz que servia como desculpa
para tais conluios, não poderia ser enganado por muito tempo e os
sumiços de Soraya, para pretensamente rever as amigas, passaram a
levantarem suspeitas. Ela suplicava-lhe que não fosse, de maneira
alguma, procurar o seu algoz e ao mesmo tempo vivia aterrorizada só
em pensar que seus encontros poderiam ser revelados.
Pedro, então, um dia, mesmo
indo contra as súplicas da menina, resolveu procurá-lo, e por um
ponto final em tudo isso. – “Por mais asco que eu sinta daquele
crápula” – finalizou como despedida.
Capítulo VII – Uma missão reconfortante.
Os
recônditos da mente humana por mais que promissores sejam os
avanços da ciência médica, por mais inegáveis se mostrem os
conhecimentos da medicina nos campos de psiquiatria e neurologia,
continuam indevassáveis.
O limite entre a normalidade e a
esquizofrenia ainda se mantém indefiníveis por mais que a alma
humana seja devassada pela psicanálise ou pela psicologia.
Qual o alcance previsível de
uma mente doentia e sua patologia? Como apontar, sem medo de ser
veementemente refutado, ser este homem são e aquele outro, insano?
Para nós, leigos essas
interrogações são indecifráveis.
Essas perguntas perpassaram na
minha mente enquanto lia e relia a carta de Pedro Benotti. A primeira
impressão que me veio era que ele não avaliava seu próprio grau de
loucura.
Qual o grau de sanidade de uma
pessoa que assume a autoria de um crime real devido a ditames
inquisitórios de sua consciência? Como alguém deixa de punir um
assassino, ou de acusar um criminoso, para que a sua própria
expiação seja realizada? Ou tudo ali relatado seria uma farsa e
Pedro era, de fato, o autor do crime?
Porém, tal hipótese para mim,
não fazia mais sentido e eu, no íntimo, sempre acreditara na sua
inocência. A leitura da carta, neste aspecto, me deixava aliviado.
No entanto, a pessoa que essas páginas me traziam de volta, era-me
completamente estranha.
A carta terminava relatando o
dia do assassinato e se até aquele momento ela discorria rica em
detalhes, nesse momento deixava de ser prolixa, escasseando-se nas
pormenorizações.
“Minha visita a tal criatura
foi rápida e áspera, sem mais delongas avisei-o de que não
aceitaria ameaças e que assim que meu divórcio estivesse concluído
me casaria com Soraya. E mais: para que ela não fosse mais
importunada, não voltaria para aquela casa”.
“Uma semana depois, ao
retornar ao apartamento das meninas, ansioso por revê-la,
encontrei-a morta; como todos sabem”.
“As conclusões a que cheguei,
são as mesmas que terá, após essa leitura.
“Expresso aqui a certeza de
poder contar com você”.
“Pedro Benotti”
Numa coisa, porém, ele
acertara: eu iria novamente visitá-lo e imbuído de aceitar a sua
defesa; se é que Pedro estava de fato pensando nisso.
Assim decidido, fui novamente
visitá-lo no dia seguinte e propus que me nomeasse seu advogado,
pois assim teria mais tempo e liberdade para conversar com ele.
Estava convencido de sua inocência, disse-lhe, e que gostaria de
defendê-lo, caso ele não se opusesse.
Ele assentiu, dizendo que
concordava com a ideia, mas, nem tanto pelo aspecto de sua defesa
perante a justiça, e sim, por que se alguma dúvida houvesse sobre
sua história, ele queria dirimi-la, pois pensara em mim justamente
para ser o seu porta-voz perante seus filhos. Não conseguia conceder
a ideia de que eles o tivessem como um monstro assassino. Fez-me
jurar que eu tudo faria para provar a eles a sua inocência.
Ao contrário da visita
anterior, sai de lá senhor de uma serenidade absoluta, como se
tivesse recobrando a fé na vida e na raça humana. A missão a mim
confiada, por mais espinhosa que pudesse ser, arrebatava-me o
espírito e infundia-me alegria e esperança. Estava convicto de que
a prisão do verdadeiro assassino era apenas uma questão de tempo.
Falei com Sônia e mostrei-lhe a
carta. Ela demonstrou-se compreensiva, mas pouco entusiasmada com as
revelações ali contidas, como era de se esperar. Disse-me que
falaria com os filhos e que procuraria ajudar no que fosse possível,
mas que não lhe fizessem nenhuma cobrança, pois sofrera muito e as
feridas ainda eram recentes.
Meu reencontro com Sônia,
apesar de certo constrangimento a princípio, foi agradável. Notei
que suas mágoas comigo tinham sido esquecidas. Despedi-me confiando
que reencontrara uma amiga.
Agradáveis não seriam, com
certeza, as próximas visitas que me imbuí de fazer: decidi procurar
os familiares de Soraya e também o garoto André, apesar de não
conhecê-lo, intuí que, tendo tido contato direto com eles, talvez
me ajudasse a desvendar o caso, conseguindo assim, as provas que
precisaria para incriminar o padrasto.
Avaliei, também, que teria que
pedir a exumação do cadáver, no intuito de conseguir com isso
evidências de que outra pessoa esteve com Soraya e a matara. Depois,
o próximo passo, seria marcar uma audiência com Pedro, para que
ele, minuciosamente, me relatasse todos os fatos que antecederam a
tragédia.
Pensei em ir até o apartamento
das meninas, mas reavaliei: sem as evidências dos novos rumos que
tomavam o caso, muito pouco elas poderiam contribuir. Por outro lado,
sentia-me extasiado, minha alma amesquinhada por tantas e vis
conjecturas que a solaparam nos últimos meses, hoje se jactava
enlevada. Resolvi, então, sorver solitariamente esses bons
presságios pelas reminiscências, de novo, reconfortadoras, que à
noite auspiciosamente me prometia.
No céu se derramando em
estrelas, a lua, redonda e bela, resplandecia a noite com todo
fulgor.
Capítulo. VIII – Uma visita frustrante
A
porta demorou um bom tempo para abrir-se. Chamei, bati, insisti, pois
tudo indicava que havia alguém dentro de casa que resistia a
aparecer. Dona
Leocádia abriu-a
com raiva, sem se preocupar em demonstrar o seu aborrecimento.
-
O quê o
senhor deseja, não vê que estou ocupada?
A primeira vista tratava-se de
uma senhora velha e franzina. No entanto, ela não era tão idosa. O
que lhe dava aquele ar de anciã era o seu traje escuro, acerbamente
rígido, de colarinho fechado no pescoço e mangas que se alongavam
sem elegância até os punhos. Os cabelos desalinhados, fartos e
compridos, enrodilhados na cabeça e suas sobrancelhas grossas,
realçando pele áspera e enrugada, davam-lhe um ar severo,
aumentando assim, em muitos anos, a sua idade.
Quando me apresentei e disse-lhe
que queria falar com o seu marido, um estremecimento percorreu todo
seu corpo. Sua voz perdeu a segurança e lívida, tartamudeou
- Macedo ainda não voltou...
Ele encontra-se no culto.
Atendendo ao meu pedido,
indicou-me um endereço não muito longe dali; mas, logo a seguir
começou a gritar, como se, de súbito, tivesse se arrependido de ter
facilitado as coisas.
- Não revolva mais essa
desgraça – admoestou-me – Foram os desígnios do Senhor que
puseram fim à vida pecaminosa de minha filha. O senhor verá, o
amante dela apodrecerá na cadeia. – E como se suplicasse
acrescentou: Moço, não espezinhe mais o meu marido.
Seus olhos negros e pequenos não
se definiam entre o medo e a raiva.
Deixando a remoer os seus
recalques, apressei-me em procurar o local indicado.
A igreja, instalada em um salão,
como tantas iguais a ela, onde possivelmente, antes funcionara um
botequim, apesar de pequena, não se encontrava cheia. Umas trinta
pessoas _ avaliei_ ouviam Macedo em seu improvisado púlpito.
Nem sempre o diabo é o que a
gente pensa. A ideia que fazia do padrasto de Soraya, a quem nunca
fora apresentado, não combinava em nada com aquele senhor que agora
eu ouvia declamando comedido em minha frente. Se eu esperava um
fanático desvairado a exorcizar demônios, a serenidade do pastor me
surpreendeu. Percebia-se sua empatia com o público e que sua
oratória o cativava. Passava uma imagem de um senhor sério, calmo e
compenetrado.
Enquanto esperava o término do
culto, que ainda levaria mais de trinta minutos notei após um breve
tempo, uma pessoa dirigindo-se a ele. Esperou que interrompesse o
discurso e cochichou-lhe aos ouvidos. Pelos olhares que me dirigiram
em seguida, percebi que o avisaram do motivo de minha presença.
Contando com a surpresa de minha investida, frustrou-me essa nova
situação, que me desarmava. Aguardei apreensivo.
Terminando o culto, Macedo
dirigiu-se a mim, resoluto, mas sem aparentar pressa alguma.
- O senhor deseja falar-me? –
inquiriu – Seja breve. Mesmo porque não teremos muito o quê
conversar.
Capítulo IX – Um final inesperado
Essas
peças que prega-nos a vida, sempre nos deixam transtornados. Quando
estamos convencidos da infalibilidade de nossos planos, vemos
situações não previstas, desmoroná-los. Quanto mais nos elevamos
pretensiosos, inatingíveis, com mais força ela nos derruba de
volta, para a nossa ignobilidade.
Essa frustração inicial fez
com que eu antecipasse a visita à cadeia pública. Precisava, com
urgência, que Pedro me detalhasse os fatos que antecederam o crime.
A segurança de Macedo me surpreendeu e fez desmoronar em mim,
certezas que acreditava ter.
Antes de lhe relatar o desfecho
de minha empreitada, procurei saber sobre sua confissão à polícia
e por que ele declinara com tantos detalhes sobre o crime. Pedro
respondeu-me que fora levado a isso pela maneira como o questionaram.
Ao ter-se declarado culpado foi submetido a uma enxurrada de
perguntas e ainda em choque, sentindo-se o causador de toda essa
tragédia, respondeu a tudo afirmativamente e isso foi relatado no
inquérito como uma confissão inquestionável, pois cheia de
pormenores. As contradições só vieram a aparecer na reconstituição
do crime, há mais de um mês e de cujo resultado, até agora não
tomara ciência.
Contei-lhe, então, de minha
conversa com Macedo e de sua rispidez ao negar veemente, como se isso
eu lhe tivesse insinuado, qualquer ligação com o crime. E para
espanto meu, tinha um álibi perfeito:
- Por que ao invés de perder o
seu tempo comigo, não lê mais detalhadamente o inquérito? Não sei
se o senhor sabe, – completou com um sorriso de ironia – já
prestei declarações à polícia e lá consta que naquele dia eu
estava em Londrina, no encontro de pastores de minha igreja, e só
retornei três dias depois.
- A minha inexperiência –
confessei a Pedro – levou-me de fato a um erro grosseiro; falhei
naquilo que era elementar. Mas o que me deixou ainda mais
desconfortável foi à arrogância do pastor. Seu tom era sarcástico
e seus olhos brilharam num misto de triunfo e ódio. Longe do púlpito
sua candura se metamorfoseava em júbilo de uma criatura que se
sentia acima de qualquer outra e revelava ter um grande prazer em
tripudiar sobre aqueles que ele considerava seus inimigos. Quando
julgou encerrado o nosso encontro, despediu-se enigmático:
- Pobre André, eles vão
fazê-lo sofrer mais ainda. Mas os caminhos do Senhor são sempre
tortuosos. Boa tarde, caro advogado, se possível, poupe-me de
revê-lo.
A partir deste ponto senti que
meu relato passou a não interessar mais a meu amigo. Ouvia com
enfado, quedando-se numa morbidez tamanha que seus olhos perderam
todo o brilho. Minhas considerações e planos interessaram-no menos
ainda. Despediu-se-me com um lacônico: “Faça o que achar melhor”,
- Resumindo assim toda sua tristeza e letargia.
Saí dali muito mais arrasado do
que entrara. A chuva fina que varria a tarde fustigou-me no rosto
como um castigo. Perambulei por aquelas ruas vazias com a alma pesada
em meu peito, contraída... Agoniada. No meu âmago, antecipava-se
sem aparente razão de ser, talvez pelas minhas incontestáveis
falhas ou pelo desânimo lancinante estampado na face de Pedro,
enfim, entre idéias confusas e medos despropositados, uma iminente
tragédia.
Na manhã seguinte fui
surpreendido, ainda na cama, com batidas enérgicas na porta.
Vesti-me rapidamente e antes de abri-la, espiei precavido, pelo olho
mágico. Eram as meninas, felizes e alvoroçadas.
- Você soube da última? –
Perguntaram uníssonas e Sueli prosseguiu: André se entregou. Não
foi Pedro que a matou, afinal!
A notícia me pegava de
surpresa, não pelo fato em si, que agora se mostrava óbvio, mas por
estar esperando por uma árdua batalha. A confissão de André
antecipava, talvez meses, a minha tarefa.
A alegria das meninas era a
exorcização de um pesadelo que caíra sobre nós. Em particular,
aliviava-me também da minha agonia premonitória e ponderei que, na
verdade, não passava de delírios tenebrosos sem fundamento algum. A
vida retomava seu curso e os maus presságios se desfaziam na bela
manhã que se estampava lá fora.
Logo no início da tarde, com o
espírito renovado, procurei me informar de tudo que acontecera
nessas últimas horas e assim tomei conhecimento do depoimento do
rapaz. Mais do que réu André era também vítima de uma situação
sordidamente premeditada por outrem. Fora usado, na inexperiência de
seus vinte anos, na sua paixão e ódio adolescentes, por mentes
maléficas e criminosas. Apesar de nunca vislumbrar em Soraya a mesma
paixão que ele lhe nutria, André, apaixonado, ainda tinha
esperanças de um dia ser correspondido. Relutou em aceitar o
simulacro em que o tinham metido e incapaz de dimensionar os limites
da hipocrisia humana, foi aconselhar-se com aquele em quem mais
confiava: no pastor de sua igreja e pai de sua namorada.
Macedo primeiro confirmou com
nuances
todas as suspeitas do jovem e depois, insuflou-lhe o seu ódio
contando todas as ignomínias do devasso casal, conseguindo
transferir o seu veneno para o coração de André, instigando-o ao
crime. André passou a vigiá-la e com o tempo passou a odiá-la, ao
sentir que a perdera, quando, na verdade, nunca a tivera.
Enquanto o pastor se deliciava
com a sua perfídia, André se remoia em remorsos e desespero, mas
era pelo outro convencido a não se entregar. Até o dia em que foi
avisado por Macedo que ele estava prestes a ser descoberto e
aconselhava-o a fugir.
“Antes se entregar, pensou o
jovem, do que continuar fugindo de minha própria consciência”.
Talvez, agora, outra coisa não quisesse o pastor.
Foi pensando nas sórdidas
vilanias da alma humana, que me dirigi à cela onde se encontrava
Benotti. Queria ser o primeiro a comunicar-lhe que sua liberdade era
apenas uma questão de horas.
- Meu Deus! - Gemeu o carcereiro
que antecipou-se-me, no momento de adentrarmos ao corredor.
O corpo de Pedro,
estertorando-se, pendia das grades da janela.
As sirenes, que agora já
estridulavam o ambiente, cumpriam apenas um ritual inútil.
*Conto Escrito em 2002
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