Sua
casa sempre foi repleta de flores e todo tipo de folhagem. Havia um
jardim, ao fundo dela, que tomava conta de todo quintal. Havia vasos:
inúmeros deles espalhados pela varanda, pelos quartos, cozinha,
sala, até nos banheiros. O cuidado com tudo isso praticamente tomava
conta de todas as suas manhãs. Gerânios, camélias, orquídeas,
azaleias, rosas, cravos, alecrins, comigo-ninguém-pode,
espada-de–são-Jorge, bromélias, lírios... Podia não saber o
nome científico de nenhuma delas, nem suas origens, nem suas
famílias, nem mesmo como vieram parar ali; mas sua coleção de
flores, folhagens e plantas se esparramavam numa fruição de tirar o
fôlego. Como era possível em uma casa, consideravelmente pequena,
caber tanta exuberância e beleza. Lá nunca houve a mão de nenhum
jardineiro profissional ou decorador. Tudo nascia e crescia
naturalmente, apenas pelo cuidado dele e ele agia como tivesse medo
de mutilá-las; podando-as só para mantê-las íntegras em suas
raízes e belas em suas copas. Seu rústico jardim era mostrado com
orgulho para todos os seus amigos e vizinhos. Repetidas vezes. Não
se importava se mostravam enfado ou desinteresse.
Um dia, cedendo aos rogos de seu
filho, ainda criança, deixou introduzir naquele jardim particular e
para ele, único: um cão. Foi o inicio de sua agonia.
O cão adorava estraçalhar suas
flores. Cavoucava toda a terra e depois se recolhia comiserado em sua
casinha, triste, como se implorasse perdão.
Em sua raiva ele vociferava
àquele animal imbecil, tão alheio a tudo que fosse beleza, mil
palavrões e ameaças. Chegava, às vezes a surrá-lo. Tudo em vão:
noutro dia a cena se repetia. O animal parecia ter ciúmes das
plantas. Era irritante! E seu jardim jamais voltou a ser o mesmo.
Pior: degradava-se... Morria!
*
Apesar de aguentar as afrontas
do cão e relevar, embora irritado, as broncas de sua mulher que não
entendia a sua raiva, nem sua paixão doentia pelo seu desleixado
jardim, Jonathan __esse era o seu nome__ nada fazia de fato contra o
impertinente animal. Muito pelo contrário, era ele quem lhe dava
banho e recolhia tufos de pelo que diariamente se acumulava no
quintal. Mesmo porque, na verdade, embora suas rusgas fossem reais e
sinceras, fazendo-o perder o sono, foi aos poucos se apegando àquela
criatura inconveniente que passou a fazer parte de sua vida. Sabia
entender a fragilidade e a beleza de tudo que o envolvia e lhe
retribuísse afagos; mesmo que o fizesse presenciar tragédias e
infortúnios e até se lhe trouxesse sérios aborrecimentos. Tanto
que quando, devido à velhice e a um câncer maligno, veio a lhe
faltar o cão, chorou compulsivamente durante vários dias e só veio
a se recompor, tempo depois, quando percebeu que o seu jardim voltou
a ter a pujança e a graça de tempos atrás.
Ficou tão fascinado com a
recuperação de seu jardim, que se esqueceu completamente de seus
afazeres profissionais e abandonou-se na faina diária de cuidar de
suas plantas e flores.
As manhãs _ parecia_ jamais o
abandonariam.
*
Se lhe perguntassem como
ocorrera a separação, com certeza ele não saberia dizer; pois,
embora desconhecesse as razões porque sua mulher o abandonara, era
inquestionável que só ele sofrera com o fato e tanto foi esse
sofrimento,__ inclusive porque ela levou-lhe o filho __ que Jonathan
foi se definhando, caindo numa letargia e abandono como se o seu
próprio mundo se comprimisse ao seu redor. Receava até olhar pela
janela de seu quarto, agora resumida a um pequeno orifício na
parede, cujo vidro, há tempos quebrado, não fora mais recolocado e
parecia pender como um porta-retratos negligenciado acima de sua
cabeça.
Um dia foi acordado pela água
da chuva que por aquele orifício invadia seu quarto. Percebeu, no
entanto, que o vento a ranger as folhas da janela o incomodava mais
que a água da chuva, que teve vontade de sair correndo da casa. Por
fim, um frio intenso gelou seus ossos. Meio tonto como se estivesse
prestes a desfalecer, armou-se de um guarda-chuva e saiu. De fato,
não conseguiria suportar aquele ambiente. Pensou, então, em comprar
pães e um jornal. Levantou-se e com esse gesto sentiu-se tomado por
uma vertigem. “Um café quente àquela hora viria mesmo a calhar e
ler preencheria um pouco o seu dia”. Dias esses, inúteis há tanto
tempo.
Foi dessas coisas que se
recordou, algum tempo depois, quando se deu conta de que não sabia
mais onde se encontrava. As ruas, tão conhecidas, não mais o
levavam a lugar nenhum. Seus nomes lhes pareceram completamente
estranhos. Perdera, também, a noção das horas, não mais sabendo
há quanto tempo se encontrava perdido.
A chuva parara e com ela o dia
se foi. Sentiu medo da noite que o envolvera. Tal medo voltou-lhe
depois, como um possível pesadelo que o despertou, em pânico,
debaixo de uma marquise de um edifício em construção. Os ruídos
de uma noite inquieta e festiva fizeram-no pensar em regressar.
Regressar para onde?
A vaga ideia de uma morada
revolveu, por instantes, o seu cérebro. Engoliu os pedaços de pão
que ainda trazia consigo e voltou a dormir como num desmaio.
A chuva, que voltou pesarosa,
não mais o incomodava.
*
O casarão! Achou-o por acaso e,
tomado sabe lá por que temores, recusou-se a entrar. Qualquer
ideia de penetrar em seus aposentos enchia-o de repulsa. No resto da
noite que restava dormiu na varanda. Seus fantasmas nunca mais o
abandonaram.
Numa manhã cheia de sol,
descobriu o jardim!
“Ajude-nos”. Espantado
olhou para todos os lados e percebeu que tudo em volta, morria
ressecado. “Não tinha chovido recentemente?”
_ O verão, este ano, foi
demais!
As meninas que, de repente, ele
viu surgir a sua frente, pareciam aflitas. Com uma mangueira espargiu
todo o jardim e o cheiro adocicado e úmido tomou conta do ambiente.
Com isso percebeu que ele próprio fedia. Teria que tomar um banho.
Como ficara sujo daquele jeito?
As meninas sorriam, pareciam
agradecidas. Jonathan olhou-as maravilhado: nunca lembrava ter visto
crianças tão lindas. Uma delas tinha uma pele extremamente branca e
a outra, ao contrário, era toda vermelha, como se castigada pelo
sol. Encheu-se, porém, de vergonha ao lembrar-se de seu lastimável
estado. Despediu-se e, tomado de súbita coragem, adentrou ao
casarão.
Espantou-se com o que viu! O
interior do casarão deixava claros os sinais de abandono: as paredes
úmidas estavam verdes de musgos; o teto, lavado pelas chuvas, tinha
as marcas da umidade. Todo prédio cheirava a bolor. Porém, notou
que não cheiravam tão mal quanto ele próprio. Nunca em sua vida
tinha sentido tanta imundície; imundície que parecia lhe impregnar
a alma e o fez raciocinar que tal acúmulo de sujeira não poderia
ser de poucos dias. Tal constatação apavorou-o, pois punha em
dúvida sua sanidade. Onde esteve que não se deu conta do passar dos
dias? Por onde teria andado se só conseguia se lembrar da noite fria
que o envolvera e de seus pesadelos tão angustiantes? Seria a sua
casa aquele casarão?
Teve que se contentar com um
banho gelado, pois a energia da casa tinha sido cortada. A água
gelada parecia rasgar a sua pele, mas ao sentir a sujeira sendo
banida do seu corpo, acalmou-se. Vestiu-se com roupas que lhe pareceu
familiares, encontradas em um velho guarda-roupa. Todas essas
sensações de familiaridades e presenças o deixaram aturdido e
resolveu retornar ao jardim.
O dia, já em despedida, o
esperava risonho.
*
Resolveu chamá-las de Renata e
Roberta; embora vexado e com medo de constrangê-las, já que nunca
conseguiu entender os seus nomes. Para seu espanto, quando
descobriram sua artimanha, elas gostaram: “Soam lindos!”.
“Old
Time”. “Femina Spanishi Sun Schneewittchen”. Carandá
é Palmae “Corpenicia Alba Morong”. Esta veio da Malásia:
“Syzyguin aromático”, Cravo da Índia. E a azaléia? “Ericaceae
Rhododendron indicum”. É da China ou Japão? As meninas o
esclareciam e eufórico, quase aos gritos, continuava: Papiro do
Egito? “Marantaceae _ Maranta divaricata roscoe”. Capuchinha?
“Tropacolum majus”. Abacaxi-roxo? Aquela de face verde escuro e
lado violáceo? “Tradescantia spathacea”. Coração magoado?
“Trenise herbstii”.
Muitas vezes, ao fazer sua
caminhada em volta do quarteirão, ele se recordava dessas
verdadeiras aulas de botânica e repetia para si mesmo:
_Cinerária é “senecio
cinerária”... Mil folhas: “Achicleia millefolium”... Como
deixam estranhos os nomes das flores, pensava.
_ Ele não fala mais nada com
nada.
Sem querer, falara alto, mas
sorriu deliciado. Não poderia exigir daquele homem, inculto, outra
reação.
“Coitado”! _era sempre a
chula sentença de uma mulher atrás dele ou de alguém que passava.
Jonathan, contemplativo, apenas ria.
Outras vezes podia sentir, mesmo
com todo o ruído do trânsito e do intermitente barulho das sirenes,
os passos que vinham em sua direção e aquela voz insuportável:
“Caduco”. E de novo ouvia do outro lado da rua, o porteiro que
ria... Zombando dele com certeza.
As meninas, sempre comedidas,
olhavam-no constrangidas e diziam: “É, de novo, aquela senhora
antipática de nome horrendo”. Essa sutileza deixava-o ao mesmo
tempo sem graça e agradecido. Como e por que “caduco”, pensava
chateado. Por que toda essa agressão, se ele mal a conhecia? Pensava
em retrucar: “Caduca é a senhora”. Porém não o fazia, pois
isso nada acrescentaria à expansão cósmica do Universo, nem a sua
rotina, em particular.
Um dia, notou que homens de
branco o seguiam. Agora que os notara, lembrou-se de tê-los visto
rondando o casarão. A mulher ranzinza, ás vezes os acompanhava e
parecia falar sobre ele. Mas não deu importância, pois já se
acostumara a ter medos que depois se revelavam gratuitos. Aliás,
começara a temer mais os seus pesadelos que sempre o acordavam em
calafrios e pareciam cada vez mais reais.
Ao chegar à entrada do casarão,
ouviu as meninas gritarem: “Cuidado, eles vão te levar”. No
entanto, não teve forças para reagir. As imagens bambolearam na sua
frente. Suas pernas já não mais o obedeciam e assim, combalido,
deixou-se levar.
A paisagem, em sua frente,
desvanecia-se.
*
Aos poucos sua memória ia
voltando. Agora, depois de alguns dias na clínica, sentia-se
agradecido. Os dias nas ruas ainda permaneciam ofuscados; mas se
recordava de sua casa e que esta fizera parte de sua vida e de sua
família. Teve uma repentina saudade de seu filho que, em seus
sonhos, sempre aparecia ainda criança. Recordava, também, de sua
infância e de seu jardim. De repente lembrou-se ter ouvido alguma
coisa como: “ele precisa ser demolido”. Assustado, pensou nas
meninas e correu em direção à porta. Ninguém o impediu.
Foi tomado de pavor quando
dobrou a esquina que o levava ao casarão, e viu o que já antecipara
em sua mente... Tratores punham-no abaixo e com ele todo o imenso
jardim. No fundo, mesmo diante de toda aquela destruição, sentiu-se
aliviado, mas, ainda trêmulo, questionou um dos funcionários, justo
aquele que inúmeras vezes lhe pareceu zombar dele: “Você viu as
meninas?”
_ Que meninas? Refere-se às
flores?
_ Bom dia, querido! Arranjei-as
para você.
Jonathan virou-se, ainda
assustado, e viu a Dona Tibúrcia (a mulher ranzinza de nome horrendo)
com dois enormes vasos, lindamente ornamentados, contendo as mais
belas flores que jamais vira: rosas brancas e vermelhas.
Notou-a de repente simpática e,
como que fulminado por um raio que lhe transpassou todo seu corpo,
reconheceu nela sua mulher e atrás dela, rosto assustado, mas
sorridente, seu filho. Sua alegria foi tanta que não conseguia
conter o choro e extasiado percebeu que, entre suas lágrimas e as
nuvens avermelhadas do horizonte, estampava-se um lindo amanhecer.
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