terça-feira, 1 de novembro de 2016

O Jardim



Sua casa sempre foi repleta de flores e todo tipo de folhagem. Havia um jardim, ao fundo dela, que tomava conta de todo quintal. Havia vasos: inúmeros deles espalhados pela varanda, pelos quartos, cozinha, sala, até nos banheiros. O cuidado com tudo isso praticamente tomava conta de todas as suas manhãs. Gerânios, camélias, orquídeas, azaleias, rosas, cravos, alecrins, comigo-ninguém-pode, espada-de–são-Jorge, bromélias, lírios... Podia não saber o nome científico de nenhuma delas, nem suas origens, nem suas famílias, nem mesmo como vieram parar ali; mas sua coleção de flores, folhagens e plantas se esparramavam numa fruição de tirar o fôlego. Como era possível em uma casa, consideravelmente pequena, caber tanta exuberância e beleza. Lá nunca houve a mão de nenhum jardineiro profissional ou decorador. Tudo nascia e crescia naturalmente, apenas pelo cuidado dele e ele agia como tivesse medo de mutilá-las; podando-as só para mantê-las íntegras em suas raízes e belas em suas copas. Seu rústico jardim era mostrado com orgulho para todos os seus amigos e vizinhos. Repetidas vezes. Não se importava se mostravam enfado ou desinteresse.
Um dia, cedendo aos rogos de seu filho, ainda criança, deixou introduzir naquele jardim particular e para ele, único: um cão. Foi o inicio de sua agonia.
O cão adorava estraçalhar suas flores. Cavoucava toda a terra e depois se recolhia comiserado em sua casinha, triste, como se implorasse perdão.
Em sua raiva ele vociferava àquele animal imbecil, tão alheio a tudo que fosse beleza, mil palavrões e ameaças. Chegava, às vezes a surrá-lo. Tudo em vão: noutro dia a cena se repetia. O animal parecia ter ciúmes das plantas. Era irritante! E seu jardim jamais voltou a ser o mesmo. Pior: degradava-se... Morria!

*
Apesar de aguentar as afrontas do cão e relevar, embora irritado, as broncas de sua mulher que não entendia a sua raiva, nem sua paixão doentia pelo seu desleixado jardim, Jonathan __esse era o seu nome__ nada fazia de fato contra o impertinente animal. Muito pelo contrário, era ele quem lhe dava banho e recolhia tufos de pelo que diariamente se acumulava no quintal. Mesmo porque, na verdade, embora suas rusgas fossem reais e sinceras, fazendo-o perder o sono, foi aos poucos se apegando àquela criatura inconveniente que passou a fazer parte de sua vida. Sabia entender a fragilidade e a beleza de tudo que o envolvia e lhe retribuísse afagos; mesmo que o fizesse presenciar tragédias e infortúnios e até se lhe trouxesse sérios aborrecimentos. Tanto que quando, devido à velhice e a um câncer maligno, veio a lhe faltar o cão, chorou compulsivamente durante vários dias e só veio a se recompor, tempo depois, quando percebeu que o seu jardim voltou a ter a pujança e a graça de tempos atrás.
Ficou tão fascinado com a recuperação de seu jardim, que se esqueceu completamente de seus afazeres profissionais e abandonou-se na faina diária de cuidar de suas plantas e flores.
As manhãs _ parecia_ jamais o abandonariam.


*

Se lhe perguntassem como ocorrera a separação, com certeza ele não saberia dizer; pois, embora desconhecesse as razões porque sua mulher o abandonara, era inquestionável que só ele sofrera com o fato e tanto foi esse sofrimento,__ inclusive porque ela levou-lhe o filho __ que Jonathan foi se definhando, caindo numa letargia e abandono como se o seu próprio mundo se comprimisse ao seu redor. Receava até olhar pela janela de seu quarto, agora resumida a um pequeno orifício na parede, cujo vidro, há tempos quebrado, não fora mais recolocado e parecia pender como um porta-retratos negligenciado acima de sua cabeça.
Um dia foi acordado pela água da chuva que por aquele orifício invadia seu quarto. Percebeu, no entanto, que o vento a ranger as folhas da janela o incomodava mais que a água da chuva, que teve vontade de sair correndo da casa. Por fim, um frio intenso gelou seus ossos. Meio tonto como se estivesse prestes a desfalecer, armou-se de um guarda-chuva e saiu. De fato, não conseguiria suportar aquele ambiente. Pensou, então, em comprar pães e um jornal. Levantou-se e com esse gesto sentiu-se tomado por uma vertigem. “Um café quente àquela hora viria mesmo a calhar e ler preencheria um pouco o seu dia”. Dias esses, inúteis há tanto tempo.
Foi dessas coisas que se recordou, algum tempo depois, quando se deu conta de que não sabia mais onde se encontrava. As ruas, tão conhecidas, não mais o levavam a lugar nenhum. Seus nomes lhes pareceram completamente estranhos. Perdera, também, a noção das horas, não mais sabendo há quanto tempo se encontrava perdido.
A chuva parara e com ela o dia se foi. Sentiu medo da noite que o envolvera. Tal medo voltou-lhe depois, como um possível pesadelo que o despertou, em pânico, debaixo de uma marquise de um edifício em construção. Os ruídos de uma noite inquieta e festiva fizeram-no pensar em regressar. Regressar para onde?
A vaga ideia de uma morada revolveu, por instantes, o seu cérebro. Engoliu os pedaços de pão que ainda trazia consigo e voltou a dormir como num desmaio.
A chuva, que voltou pesarosa, não mais o incomodava.


*
O casarão! Achou-o por acaso e, tomado sabe lá por que temores, recusou-se a entrar. Qualquer ideia de penetrar em seus aposentos enchia-o de repulsa. No resto da noite que restava dormiu na varanda. Seus fantasmas nunca mais o abandonaram.
Numa manhã cheia de sol, descobriu o jardim!
Ajude-nos”. Espantado olhou para todos os lados e percebeu que tudo em volta, morria ressecado. “Não tinha chovido recentemente?”
_ O verão, este ano, foi demais!
As meninas que, de repente, ele viu surgir a sua frente, pareciam aflitas. Com uma mangueira espargiu todo o jardim e o cheiro adocicado e úmido tomou conta do ambiente. Com isso percebeu que ele próprio fedia. Teria que tomar um banho. Como ficara sujo daquele jeito?
As meninas sorriam, pareciam agradecidas. Jonathan olhou-as maravilhado: nunca lembrava ter visto crianças tão lindas. Uma delas tinha uma pele extremamente branca e a outra, ao contrário, era toda vermelha, como se castigada pelo sol. Encheu-se, porém, de vergonha ao lembrar-se de seu lastimável estado. Despediu-se e, tomado de súbita coragem, adentrou ao casarão.
Espantou-se com o que viu! O interior do casarão deixava claros os sinais de abandono: as paredes úmidas estavam verdes de musgos; o teto, lavado pelas chuvas, tinha as marcas da umidade. Todo prédio cheirava a bolor. Porém, notou que não cheiravam tão mal quanto ele próprio. Nunca em sua vida tinha sentido tanta imundície; imundície que parecia lhe impregnar a alma e o fez raciocinar que tal acúmulo de sujeira não poderia ser de poucos dias. Tal constatação apavorou-o, pois punha em dúvida sua sanidade. Onde esteve que não se deu conta do passar dos dias? Por onde teria andado se só conseguia se lembrar da noite fria que o envolvera e de seus pesadelos tão angustiantes? Seria a sua casa aquele casarão?
Teve que se contentar com um banho gelado, pois a energia da casa tinha sido cortada. A água gelada parecia rasgar a sua pele, mas ao sentir a sujeira sendo banida do seu corpo, acalmou-se. Vestiu-se com roupas que lhe pareceu familiares, encontradas em um velho guarda-roupa. Todas essas sensações de familiaridades e presenças o deixaram aturdido e resolveu retornar ao jardim.
O dia, já em despedida, o esperava risonho.

*
Resolveu chamá-las de Renata e Roberta; embora vexado e com medo de constrangê-las, já que nunca conseguiu entender os seus nomes. Para seu espanto, quando descobriram sua artimanha, elas gostaram: “Soam lindos!”.
Old Time”. “Femina Spanishi Sun Schneewittchen”. Carandá é Palmae “Corpenicia Alba Morong”. Esta veio da Malásia: “Syzyguin aromático”, Cravo da Índia. E a azaléia? “Ericaceae Rhododendron indicum”. É da China ou Japão? As meninas o esclareciam e eufórico, quase aos gritos, continuava: Papiro do Egito? “Marantaceae _ Maranta divaricata roscoe”. Capuchinha? “Tropacolum majus”. Abacaxi-roxo? Aquela de face verde escuro e lado violáceo? “Tradescantia spathacea”. Coração magoado? “Trenise herbstii”.
Muitas vezes, ao fazer sua caminhada em volta do quarteirão, ele se recordava dessas verdadeiras aulas de botânica e repetia para si mesmo:
_Cinerária é “senecio cinerária”... Mil folhas: “Achicleia millefolium”... Como deixam estranhos os nomes das flores, pensava.
_ Ele não fala mais nada com nada.
Sem querer, falara alto, mas sorriu deliciado. Não poderia exigir daquele homem, inculto, outra reação.
Coitado”! _era sempre a chula sentença de uma mulher atrás dele ou de alguém que passava. Jonathan, contemplativo, apenas ria.
Outras vezes podia sentir, mesmo com todo o ruído do trânsito e do intermitente barulho das sirenes, os passos que vinham em sua direção e aquela voz insuportável: “Caduco”. E de novo ouvia do outro lado da rua, o porteiro que ria... Zombando dele com certeza.
As meninas, sempre comedidas, olhavam-no constrangidas e diziam: “É, de novo, aquela senhora antipática de nome horrendo”. Essa sutileza deixava-o ao mesmo tempo sem graça e agradecido. Como e por que “caduco”, pensava chateado. Por que toda essa agressão, se ele mal a conhecia? Pensava em retrucar: “Caduca é a senhora”. Porém não o fazia, pois isso nada acrescentaria à expansão cósmica do Universo, nem a sua rotina, em particular.
Um dia, notou que homens de branco o seguiam. Agora que os notara, lembrou-se de tê-los visto rondando o casarão. A mulher ranzinza, ás vezes os acompanhava e parecia falar sobre ele. Mas não deu importância, pois já se acostumara a ter medos que depois se revelavam gratuitos. Aliás, começara a temer mais os seus pesadelos que sempre o acordavam em calafrios e pareciam cada vez mais reais.
Ao chegar à entrada do casarão, ouviu as meninas gritarem: “Cuidado, eles vão te levar”. No entanto, não teve forças para reagir. As imagens bambolearam na sua frente. Suas pernas já não mais o obedeciam e assim, combalido, deixou-se levar.
A paisagem, em sua frente, desvanecia-se.
*
Aos poucos sua memória ia voltando. Agora, depois de alguns dias na clínica, sentia-se agradecido. Os dias nas ruas ainda permaneciam ofuscados; mas se recordava de sua casa e que esta fizera parte de sua vida e de sua família. Teve uma repentina saudade de seu filho que, em seus sonhos, sempre aparecia ainda criança. Recordava, também, de sua infância e de seu jardim. De repente lembrou-se ter ouvido alguma coisa como: “ele precisa ser demolido”. Assustado, pensou nas meninas e correu em direção à porta. Ninguém o impediu.
Foi tomado de pavor quando dobrou a esquina que o levava ao casarão, e viu o que já antecipara em sua mente... Tratores punham-no abaixo e com ele todo o imenso jardim. No fundo, mesmo diante de toda aquela destruição, sentiu-se aliviado, mas, ainda trêmulo, questionou um dos funcionários, justo aquele que inúmeras vezes lhe pareceu zombar dele: “Você viu as meninas?”
_ Que meninas? Refere-se às flores?
_ Bom dia, querido! Arranjei-as para você.
Jonathan virou-se, ainda assustado, e viu a Dona Tibúrcia (a mulher ranzinza de nome horrendo) com dois enormes vasos, lindamente ornamentados, contendo as mais belas flores que jamais vira: rosas brancas e vermelhas.
Notou-a de repente simpática e, como que fulminado por um raio que lhe transpassou todo seu corpo, reconheceu nela sua mulher e atrás dela, rosto assustado, mas sorridente, seu filho. Sua alegria foi tanta que não conseguia conter o choro e extasiado percebeu que, entre suas lágrimas e as nuvens avermelhadas do horizonte, estampava-se um lindo amanhecer.


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