(Subtraída de Meu Tempo)
Fazemos pequenos retratos de nosso passado e um dos
quais eu até hoje guardo comigo é dos telhados que avistava de
minha rua. Incrustada em morros envoltos por serras, deixava o centro
da cidade com seus casarões antigos de taipas ou de enormes _ e mais antigos ainda _ tijolos de barro a se estender aos seus pés, deixando sobressair
majestosos telhados que sublimavam, ao sol reluzente, as estreitas
ruas de paralelepípedos. Eu adorava caminhar sozinho, percorrendo-as
vazias de fim-de-semana, em caminhadas difíceis de terminar. Sempre
descobria alguma coisa ainda não notada, alguma beleza a minha
espera. Ou evocava, dos cheiros ainda recentes, reminiscências de
meus poucos anos. Sabemos que tudo é naturalmente novidade para uma
criança em crescimento e pouco nos recordamos de como foi se
processando em nós esse aprendizado febril e ininterrupto.
Espanta-me hoje, o quando esse aprendizado se processa na velocidade
absurda dos computadores. Com certeza comendo ruas e tornando cada
vez mais fugazes as frágeis recordações. (Não terão os futuros
adultos, na mente, apenas a memória dos “facebooks” ?) De
qualquer maneira, em algum momento, para todo jovem tudo é a
primeira vez, tudo deslumbramento e espanto, tudo vontade de se
descobrir e de repente, damo-nos espantados com o inusitado. Com a descoberta de
nosso corpo, redescobrimos o mundo em nossa volta: novos amigos,
gostos, novas paisagens, novos costumes e com eles emoções antes
estranhas como o sexo e a cumplicidade com o trágico na vida, o
sentimento da morte e da fatalidade. Coisas que não faziam parte
ainda de nossos temores.
Ao tomarmos consciência da finitude da vida a
morte fica cada vez mais difícil de ser assimilada. Até certa idade
a morte é incompreensível e, portanto, um sentimento estranho, mas
irrelevante. De repente ela é real e presente. Por exemplo, da morte
de meu avô paterno só me recordo de sua lenta agonia que me
incomodou tanto... e eu tinha apenas três anos de idade. Anos
depois, quando tudo aquilo só fazia parte de meus sonhos, foi a
fedentina do ambiente _formal e álcool misturado ao cheiro das
flores_ o que ainda trago na memória do primeiro velório que
participei e certa repugnância, devida talvez as circunstâncias da
morte de meu tio. Repugnância que não me furtou, mesmo na
juventude, de ir a outros velórios ( mesmo porque nem todo cadáver
está, ainda quando velado, em estado tão próximo da decomposição _ pelo menos eu o julguei assim) _ ainda por acreditar na vida após
a morte, mas mais por respeito ao morto e aos seus familiares. A
família ainda é para mim, mesmo sem a opressão de antigamente, uma
referência marcante e o ritual da última despedida, sei lá por
quais sentimentalismos, ainda me atraí. Porém é ainda esse
cheiro que trago na lembrança associado a um ambiente escuro
emoldurado por fotografias de falecidos e imagens de santos, numa
sala sombria e lúgubre, palco de outros inúmeros funerais. Pois era esse
o limiar entre esse mundo sombrio e o outro, manifestando-se assim
ainda mais fantasmagórico e aterrador. Nesse quadro a passagem desta
vida parecia pesarosa e triste, nada que lembrasse algo empíreo ou
celestial _ promessa da Santa Igreja_ para aonde nossas almas seriam
transladadas depois de nosso martírio terreno. Minha avó morreu não
muito tempo depois e a compreensão do fato, deixou-me estupefato.
Mas só, oito anos depois, descobri o outro lado da morte num funeral
de uma menina que estudou comigo a quinta ou sexta série do ginásio
e por quem tinha me apegado tanto que foi, com certeza, minha
primeira e única paixão juvenil.
Vítima de um acidente automobilístico por qual
tanto se culpou sua mãe, que dirigia o veículo, Olguinha morreu às
vésperas de seu aniversário de 14 anos. Recordo-me de ter corrido a
sua casa assim que soube da notícia, sem mesmo avisar meus pais para aonde e por que ia tão aflito e já tarde da noite. Na verdade era para
certificar-me daquele absurdo que me desesperava e que eu não
conseguia acreditar; tinha que refutá-lo, pois relutava... E quanto
tempo eu relutei, depois, em aceitar. A morte é inevitável, mas
nem por isso fácil de ser aceita e no meu caso, essa sensação de
finitude e aniquilamento, antes jamais sentida, foi-me terrivelmente
cruel, pondo-me de frente a uma perda irreversível. Tanto assim que
em lembrança a ela, pela primeira vez na minha vida, conseguiria
escrever mais de três páginas de uma prosa manuscrita cheia de dor
e saudade e da qual até hoje me arrependo por tê-la rasgado, com
inúmeros poemas dessa mesma época, quando me julgando adulto,
achei-os infantis.
Desta vez, para alívio e deslumbramento meu, o
ambiente não tinha aquele ar nauseabundo e sim, um cheiro suave de
incenso que nem de longe me lembrava àqueles das procissões e ao
invés de cruzes e imagens de santos católicos, ícones budistas.
Hoje não acho mais nenhum velório aterrador, mas o contraste foi
sensível e revelador. Primeiro por notar que o budismo não era a
opção única naquela família: ela e sua mãe eram católicas e
aceitavam conviver com os cultos orientais paternos; segundo por
presenciar algo tão exótico e singular, onde a procura da paz do
espírito e da transcendência se contrapunha à salvação da alma
no cristianismo. E, por fim, por enxergar uma verdade possível em
outros credos. A infalibilidade de minha religião quebrava-se no meu
espírito de uma maneira irreparável e definitiva. Continuava
cristão, mas meu horizonte se abria para salutares dúvidas e
brindava-me com a leveza do mundo. A morte a
partir de então teceria outras marcas em minha vida.
*
O ritmo de minha caneta torna-se febril, mas minha
mente acha-se cada vez mais confusa; a única coisa que me impede de
avançar é a covardia de me desnudar aos olhos censores de mim
mesmo. Não consigo mais conter o fluxo que emerge voraz e
incontinenti e ao mesmo tempo fugidio, daquilo que um dia eu fui.
Rasgo mais vorazmente os registros inacabados de minhas memórias;
seus pequenos pedaços se avolumam ao meu redor como se fossem
escamas que abandonaram meu corpo deixando nele feridas que se
recusam a cicatrizar. “Conhece-te a ti mesmo”, disse Sócrates
por saber que não existe para o homem algo mais difícil. No
caleidoscópio de nossa infância fica impossível macular com a
verdade a nós mesmos e assim nos escondemos ou tentamos nos esquivar
de tudo aquilo que nos incomoda e das lembranças que nos ferem a
alma. As franjas que tecemos com o tempo sobre nós mesmos são
apenas pálidas molduras, pouco sensíveis àquilo que realmente foi
e deixa-nos ainda muito tempo depois, desarmado. E da meninice à
adolescência o que consigo perscrutar, fora as pinceladas dadas, é
um mundo que em mim, parecia sempre a se esboroar, abarrotando-me de
tédio, vacilações e medo. É evidente que nem tudo na minha
infância foi nauseabundo, havia também alegrias, através das
amizades e das brincadeiras comuns da idade. Mas, paradoxalmente,
como foram fugidias por terem sido, naqueles tempos, tão necessárias!
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