terça-feira, 10 de janeiro de 2017

MELK

Capítulo I

Aquela gigantesca massa branca, dava para perceber, já estava amarelecendo. Inerte, já há bastante tempo e dura como uma rocha. Aos poucos fui me acostumando com ela ali estirada e o meu medo deu lugar à curiosidade. Cheirei-a toda e percebi que não mais oferecia perigo. Passei sobre ela, mordisquei-a e dei meu veredicto: estava morta. Fred se aproximou como se, tendo assistido todo o ritual, confiasse no meu diagnóstico. Apesar da rapidez de seus movimentos, suas patinhas não demonstravam mais nenhum nervosismo e certa alegria estampou-se em sua fisionomia. Eu também fui tomado por uma súbita felicidade, mesclada de espanto, sem saber ao certo explicar o porquê. Na verdade, estava em estado de estupefação.
Como se esquecesse do motivo de sua curiosidade, Fred começou seu costumeiro farejar: era óbvio que estava com fome. Pensei comigo: Agora tudo será mais difícil! (O outro ser, semelhante a este que jazia imóvel, viera há apenas duas noites e como de costume só retornaria no clarear do quinto dia. Deixara tudo limpo e reluzente e o que havia de comestível, devidamente trancado, ou em lugares que dificilmente alcançaríamos). Comecei a me preocupar com o nosso futuro! É claro que, talvez, pudéssemos nos utilizar daquele ser volumoso. Mas para mim, pois tenho certeza que o esfomeado Fred teria outra opinião, aquilo estava fora de cogitação. Pelo menos, por enquanto. Primeiro, por ainda considerar uma heresia tocá-lo e segundo, porque até suas carnes começaram a amolecer, já estaríamos mortos. Fred insinuou com o focinho que tentaria perfurar com seus afiados dentes a parte superior da cabeça, que ainda permanecia com um pouco de calor e pendia com seus olhos sem brilho, quase na altura do ralo da cozinha. Repeli tal ato com veemência, dando-lhe a entender que acharíamos alguma coisa. “E rápido” - observou meu aflito companheiro, no remexer sibilante do seu focinho.



Capítulo II

Ter encontrado aquela casa foi um verdadeiro achado. O terreno baldio onde até então estávamos alojado, fora completamente incendiado e logo, pás e betoneiras fizeram dele um lugar insuportável para viver e forçaram a nossa peregrinação.
Depois de muito caminhar, termos conseguido esse lugar seco e arejado, foi motivo de festas. Esquadrinhamos toda a construção, seus aposentos e frestas e a possibilidade de conseguirmos comida e neste aspecto ela se mostrou pródiga. Fred e Meg conseguiam localizar ração em lugares inimagináveis e juntos faziam um rebuliço tamanho que, com certeza, punham em risco nossa segurança. Adverti-os várias vezes, mas acabei me convencendo que tais preocupações eram infundadas. Outra coisa me impressionou e serviu também para que eu mais ainda desleixasse de manter-me alerta: como se a providência não só velasse por nós como também nos acudisse, ração chovia sobre nós quando dela já estávamos desesperançados. E muitas vezes, alimentos eram colocados em lugares mais fáceis de serem alcançados. Tal situação durou muitos e muitos dias até que percebi a ilusão em que tinha sido engabelado.
O pressentimento, pela primeira vez, de que todas aquelas dádivas não eram obras do acaso, deslumbrou-me a tal ponto que passei dias tentando encontrar o meu Onipotente protetor. Foi maravilhoso perceber que um ser superior e magnânimo velava diurnamente por nós. Porém, tal revelação não era compartilhada pelos meus dois companheiros, que prosseguiam impassíveis em suas buscas por comida, sem perceberem que ela se encontrava sempre a mão. Para eles nada mudara e nem eu conseguia imaginá-los compartilhando de minhas "esquisitices". Solitário em meus devaneios, fiz para mim mesmo, o juramento de descortinar as barreiras que havia entre eu e o incompreensível ser que tomava conta de todo o espaço em minha volta, com prodígios que só a mim conseguiam deslumbrar.”


Capítulo III

Há tempos tinha compreendido que havia no nosso mundo outros seres situados muito além dos predadores e intuí que os prodígios aqui verificados e muitas coisas que se materializavam em nossa volta eram, com certeza, obras deles. As minhas investigações, por muito tempo, se mostraram inglórias. Não que nosso Protetor se ocultasse; muito pelo contrário, sentia cada vez mais a sua presença; e sim, por que desconhecia a chave que abriria a porta desse Universo imenso que me circundava e na qual eu ocupava apenas um ínfimo canto. Nem meus olhos, nem minha mente, estavam preparados para absorvê-lo, dar conta de sua grandiosidade e magnitude. O instinto que me mantinha a salvo da ação de vários predadores não mais me bastava. Intuitivamente, percebi que o primeiro artifício há ser usado era a educação dos meus sentidos; principalmente, o do olfato e do tato. Tudo precisaria ser minuciosamente observado e comecei a anotar as mais insignificantes mudanças no ambiente: claridade, sombras, ruídos, pequenos detalhes na paisagem em nossa volta. Enfim, tudo que mesmo de maneira imperceptível, por um segundo que fosse se movia ou se transformava. Concentrava-me nisso obcecadamente todos os segundos de que dispunha, até minhas forças, esgotadas, cederem ao sono. Nessas árduas vigílias procurei aguçar o máximo meu olfato, já por natureza muito potente, e percebi com alegria que conseguia identificar o cheiro do insofismável ser a léguas de distância e embora não conseguisse vê-lo, sabia da materialidade de sua presença. Ele, de fato existia.
Fred e Meg, sempre alheios a todo o resto que não fosse procurar comida e dormir quando saciados, dobrando-se sem resistência aos primeiros clarões que ofuscassem seus pequeninos olhos, começaram a notar a minha estranha maneira de agir e embora não conseguissem compreender a razão de tudo aquilo, começaram a se preocupar com a minha saúde. Eu não comia o suficiente. Não querendo aborrecê-los com minhas conjecturas, aconselhei-os que não se importassem comigo: "Eu estava bem", conclui, e só isso bastou para que eles voltassem a me ignorar.
Afastei-me, então, dos meus companheiros concentrando-me, apenas, em tentar surpreender as aparições de nosso protetor, para mim cada vez mais palpáveis.


Capitulo IV

Certo dia, o ruído do motor que, tinha certeza agora, precedia a chegada do ser bendito, sobressaltou-me quando me preparava para começar minha vigilância noturna. Por alguma razão ele chegara antes do habitual. Rápido corri até a entrada do casarão e por pouco não fui esmagado pela roda de um veículo, ofuscados que meus olhos foram pela luminosidade que dali se irradiava. Por infelicidade minha, quando o foco de luz diminuiu só consegui enxergar uma silhueta grandiosa que se perdia atrás da porta. Tresloucadamente contornei a construção e esgueirando-me pelo labirinto, estreito e úmido, que Fred e eu construímos para dar passagem para o interior do prédio e que desembocava entre dois canos: um fino de metal e outro bem mais grosso, de cerâmica, e cheguei ao local onde sempre achávamos restos de comida em profusão e que dava em frente ao quarto dele. Mas para minha desgraça, meu protetor ali se refugiara e só de lá sairia, sabia eu, após o amanhecer.
Desiludido, voltei para minha toca e exasperado, com a cabeça girando adoidada, só conseguia pensar em uma maneira de conseguir o meu intento. As paredes para outro pavimento, raciocinei, eram grossas demais e a porta ao ser fechada não deixava brechas alguma que coubesse o meu corpo. A única possibilidade era esperá-lo já lá dentro, sabendo de antemão que a espera não seria pequena. Eu poderia entrar lá, assim que ele se retirasse, logo de manhã.
Essa alternativa empolgou-me tanto que imediatamente iniciei uma febril atividade e num ir e vir constante fui estocando, grão a grão, durante a noite toda, pilhas de mantimentos que julgava necessárias para uma longa vigília. E mal a claridade matutina espreitou pelos orifícios da janela e pressentindo o local deserto, penetrei nos seus aposentos. Logo descobri rente ao chão, um estreito, mas bem comprido vão onde fui depositando o que conseguia armazenar. Mesmo com as réstias solares fustigando meus olhos e a sonolência querendo entorpecer os meus músculos, labutei horas da tarde até que, exaurido, aconcheguei-me junto aos suprimentos, que da maneira que estavam localizados, com certeza não seriam vistos por um ser de tão grande estatura. Assim protegido aproveitei para dormir do que restava para anoitecer e adormeci sonhando com o esperado encontro.


Capítulo V

Nunca tinha medido, na verdade, o espaço de tempo que havia entre a saída e o retorno do meu protetor, porém, devido, talvez, a ansiedade, nunca me pareceu tão longo. A noite veio, acordei, esperei horas a fio, a ponto de várias vezes abandonar o meu esconderijo e ele não apareceu. Só quando a luz solar espargia-se por entre os móveis envernizados foi que senti o cheiro característico que chegava e para espanto meu, minhas narinas identificaram outro odor. Um novo e desconhecido cheiro, mas, no entanto, similar ao primeiro. Arrisquei-me, então, e abandonei o meu esconderijo para tentar encontrar um local mais alto para minhas observações, que desse para focalizar a totalidade da porta, mesmo correndo o risco de ser descoberto. Assim instalado, com o coração palpitando descompassado, fui observando a claridade que invadia o quarto. Concomitantes às duas sombras que se espetaram no chão, dois vultos adentraram-se pela porta e se fizeram nítidos à medida que a penumbra se desfazia. Fazia muito barulho e pareciam felizes.
Minhas narinas detectaram o forte cheiro de álcool que tomou conta do ambiente. Os dois, então, despiram-se das primeiras peles e outras, toda branca, foram aparecendo mostrando-se quase que peladas: só pequenos tufos de pêlo escapavam escassos, num ou outro lugar dos corpos. Pela primeira vez eu via por inteiro o meu protetor e essa visão não me agradou, mas mesmo assim, continuei atento no meu observatório onde, precavido, voltara a me ocultar.
Os dois seres começaram, então, um estranho e longo ritual de acasalamento: cheiravam-se e lambiam reciprocamente até a exaustão e só depois de um bom tempo é que tentaram a cópula. Algo que para aqueles corpos desproporcionados, com seus membros inferiores e superiores grandes e disformes, parecia deveras difícil.
Ouviu-se então, batidas na porta que se repetiram várias vezes, até que o protetor, visivelmente contrariado, foi até lá e dirigiu-se ao local de onde as batidas se originavam. Aproveitei a ocasião, ciente de que o que vira, fora por ora, suficiente e precipitei-me para fora sem ser notado.
Dei-me por feliz ao encontrar de volta as companhias de Fred e Meg que, encolhidinhos num canto da toca, dormiam inocentes. Em meu cérebro continuavam registradas as imagens daquelas cenas e me intrigavam certos sentimentos que começaram a tomar conta de mim e eu não conseguia explicar seus motivos: sentia-me frustrado e com medo. Se aquele Ser por quem eu, ávido esperava, quase idolatrado, mostrou-se asqueroso e prosaico demais para o paradisíaco lugar que eu lhe reservara na minha imaginação, nada, no entanto, aconteceu que justificasse a transformação de minha expectante alegria do dia anterior, na desagradável desconfiança que me assolava agora. Nem o seu aspecto físico que me enojara e que de fato não me agradara, nem a constatação de que agora ele não estava mais só, eram motivos para tão ríspida mudança de avaliação. "Mas os nossos instintos, pensei comigo, dificilmente falham". Para não mais ficar remoendo inutilmente essas sensações, acomodei-me o mais perto possível de meus companheiros e procurei dormi.


Capitulo VI

Vários dias e noites se passaram sem que se percebesse na casa qualquer tipo de atividade. Silenciosa, parecia que com o seu marasmo iria sufocar todos os meus receios, até que um dia que amanheceu chuvoso, eu o senti chegar e novamente alcoolizado. O cheiro de outro ser ficara do outro lado da rua, desvanecendo-se logo. Ele entrava sozinho.
Mais confiante, desci rapidamente as escadas e pude vê-lo cambaleante. Não conseguiu chegar até o quarto, pois se desequilibrou de repente, estatelando-se no chão. Nesse momento certa comiseração tocou-me. Com certeza, pensei, eu tinha sido rígido demais no meu julgamento. Se esse ser não era o todo onipotente que imaginara nas minhas primeiras investigações, também não era o ser horrendo que eu o transformei depois. Ao vê-lo ali, desfalecido, dava-me dó e não horror.
Resolvi, então, aproximar-me mais, para sentir melhor as suas narinas e averiguar se ele estava bem, pois, sua forte respiração saia entrecortada, aos borbotões.
Perplexo, percebi que seus olhos esmaecidos arregalaram-se de chofre, assustados. Ele tinha me visto! Readquirindo, num átimo, uma agilidade que julguei impossível, armou-se de uma vassoura e pôs-se em meu encalço, desferindo golpes que por pouco não me acertaram. Sai atônito, em desabalada corrida para o quintal e pude notar que meu perseguidor se dera por vencido e retornara raivoso, oscilando seu corpanzil para dentro da casa. A porta foi fechada com estrondo.
A partir desse dia procurei alertar meus companheiros para os perigos que estavam correndo, mas eles, da mesma maneira que antes menosprezaram os meus devaneios, agora faziam ouvidos moucos a minha postura alarmista. Parecia que sabiam de tudo aquilo e que só eu, desgrudando-me da realidade como fiz, pudera ter a sensação de uma segurança que nunca tivéramos. "Vai ver que eles têm mesmo razão, conjecturei, afinal a vidinha deles não se alterara em nada.”
Tal constatação deixou-me por muito tempo abalado. Sentia-me o menor dos camundongos! Eu que me considerava tão superior a eles, dono de uma clarividência que só eu mesmo enxergava, era obrigado a ceder às evidências e aceitar, resignado, minha estupidez.



Capítulo VII

Por pouco tempo, no entanto, perdurou a minha apatia, um novo ser começou a freqüentar a casa e novos fatos impediram que eu me entregasse à letargia. Trazia um cheiro peculiar que me fez crer que se tratasse de uma fêmea e quando saía, todos os detritos da residência haviam sido removidos. Desta maneira, nossa ração foi também drasticamente reduzida ou ficava bem mais difícil localizá-la. Essa situação colocou Fred e Meg em tal estado de aflição, que me deixou muito apreensivo. Eu tinha, mais do que nunca, de ajudá-los. Devia isso a eles e estava em jogo a nossa sobrevivência!
A experiência que adquiri com as minhas frustrantes investigações e longas vigílias__ como a resistência ao sono e a claridade diurna__ tudo isso, argüi, poderia ser-me útil agora. Poderia realizar as minhas jornadas em busca de comida durante o dia, coisa que os meus companheiros não assimilariam com facilidade, já que com a chegada dessa nova personagem, a escassez de comida tornara-se maior à noite. É claro que seria perigoso, pois o risco de ser percebido durante os meus deslocamentos de um lugar para o outro, seria maior. No entanto, na minha cabeça, tal risco passara a ser inevitável.
Pus-me, então, a calcular o tempo entre a saída de um e outro ser, como também horários mais favoráveis para encontrar comida e para armazená-la. Tinha que me esforçar para conseguir estocar uma quantidade suficiente para várias noites, pois nem todo dia o alimento seria encontrado.
Assim decidido comecei a minha tarefa e, com passar do tempo, muitas vezes a noite me surpreendia ainda acordado. Mas confortava-me ver a feliz agitação de meus amigos quando acordavam e viam quantos alimentos eu conseguira recolher. Só então, cansado, é que eu procurava abrigo na minha toca e com o frio cortante da noite, tentava dormir. Nisso levava mais uma desvantagem, Fred e Meg dormiam de dia e sempre juntinhos.


Capitulo VIII

Fui acordado pela correria frenética de Fred sobre meu corpo. Até dar-me conta de que realmente acordara, senti que ele passou sobre mim como um bólido, no mínimo, três vezes. Era sua maneira de chamar atenção. E pela sua agitação, estava nervosíssimo.
No dia anterior eu já havia levado um susto tremendo: a faxineira me viu por uma fresta na parede da sala, justamente na hora em que eu concluía o trabalho de armazenagem, e quase me apanhou. A minha sorte é que seu escarnecido grito me alertara e tive tempo e agilidade para escapulir de sua investida, escorregando-me pela tábua solta do assoalho. Depois disso um barulho ensurdecedor de martelo e tábuas tomou conta do ambiente e acabou acordando os meus companheiros que, assustados, correram para o quintal.
Fui atrás dele e lá ficamos até que as coisas se normalizassem e sentíssemos seguros para retornar. Nossa volta, porém, só foi possível após o pôr do sol, com a saída da faxineira que naquele dia acabou se demorando mais do que o habitual.
Ao regressarmos tivemos outra surpresa desagradável: todo mantimento que eu tinha conseguido recolher havia desaparecido. O assoalho tinha sido remendado e encontrava-se úmido, sinal de que fora lavado há bem pouco tempo. O que restava de suprimento era o que estava estocado há dias. E não era lá grande coisa. Abstive-me então de comer e induzi meus companheiros a iniciarem a busca noturna, enquanto eu tentaria dormir um pouco, pois o dia seguinte prenunciava-se sombrio.
Agora Fred me acordava e no pisca-piscar de seus olhinhos, compreendi que algo muito sério estava acontecendo. Acompanhei-o até a cozinha, aonde encontramos Meg, endoidecida, correndo em círculos. Seu pequeno abdomem apresentava-se flácido e notava-se em sua pele ondas de calafrio. Estava desesperadamente esfomeada. Olhando a derredor notei que nada havia mais para comer; a ração que tínhamos acabara e pelo visto as buscas de meus companheiros foram infrutíferas. Mal tomei pé da situação, ouvi os ruídos característicos da chegada do protetor. Fred e eu imobilizamos, então, a pequena Meg e a fizemos retroceder até o banheiro, onde, tentando superar o pânico que a todos nós assolara, ficamos escondidos, vigiando atentos todos os movimentos do revoltante ser.
Para nossa surpresa, ele tirou do armário punhados e punhados de comida e começou a distribuí-la pela cozinha (como eu, em meus devaneios passados, imaginava que ele altruisticamente, assim o fizesse). Porém, o esmero era tanto e a quantidade tamanha que uma leve suspeita instigou-me o espírito. Vi que meus amigos salivavam enquanto se reprimiam vorazmente para não se atirarem de vez ao banquete que em nossa frente se materializava. Foram os minutos mais agoniados da minha vida.
Como uma clarividência o pânico tomou conta mim, adivinhando uma tragédia iminente. Nem bem constatou que o recinto estava vazio, Meg projetou-se sobre o farto banquete. Não tive tempo de contê-la. Essa sua precipitação fez a minha suspeita concretizar-se em trágica certeza. Ao meu grunhido desesperado Fred estancou-se perplexo ao meio do caminho, mesmo sem entender o meu inusitado alarme e olhou-me apreensivo implorando uma explicação. Entendeu-a nos meus olhos horrorizados e ao voltar-se em direção a Meg, já a viu completamente inerte, estirada no chão.


Capitulo IX

O corpinho de Meg foi atirado com grande estardalhaço para um terreno baldio. Pela claridade matinal expandida da janela pude notar o jubiloso brilho nos olhos do hediondo ser, que sorria maléfico. Dessa cena não mais me esqueci e ela alimentou a minha revolta dando-me forças para arquitetar um plano de vingança que, por ora, tinha que ser adiado devido às precárias condições físicas de Fred. Era inquestionável que a prioridade agora era conseguir alimentos, com urgência e o mais longe possível daquela casa e de seus perigos. Eu não tinha condições de avaliar o quanto estávamos ameaçados e o melhor a fazer era nos afastarmos dali. Sufoquei assim a minha ira no meu inconsciente pranto. “O meu ódio será mais bem saciado se saboreado devagarzinho”_ pensei, enquanto literalmente arrastávamo-nos para fora dos limites da casa.
Demorei-me mais alguns dias em companhia de Fred, enquanto ele se restabelecia. O lixão que encontramos não era o melhor dos mundos, mas não tínhamos muito que escolher. Era enorme e bastante habitado. Urubus, ratazanas, seres imundos, faziam parte de sua fauna esfomeada e agressiva; mas, adaptarmo-nos a esse lugar inóspito, não chegou a ser difícil. Só me restava levar adiante o juramento de vingança e para conseguir esse intento não mediria esforço algum.

Capítulo X

Não foi difícil localizar o cadáver de Meg, pois dele emanava um mau cheiro que podia ser sentido a léguas de distancia. Esse adiantado estado de putrefação dificultava a identificação do veneno, mas mesmo arriscando soçobrar-me na tarefa, prossegui no meu trabalho e passei horas nessa faina até conseguir, finalmente, separar do nauseabundo cheiro putrefato, o cheiro sutil e adocicado da substância letal. A pele de Meg encontrava-se pincelada de manchas verdes do que se deduzia que sua pigmentação fora alterada pela absorção de produto. Recolhi, então com os dentes, pedaços desse material, o suficiente para assimilar a composição da droga e poder identificá-la futuramente. Só, então, adentrei-me à antiga casa. Tive sorte de encontrá-la vazia e meu olfato levou-me, depois de muito farejar e enganos, até um pequeno embrulho debaixo da pia da cozinha. O conteúdo dava para se notar, era suficiente para provocar a morte de centenas de roedores e avaliei que, com certeza, de alguém com igual tamanho. Eufórico de alegria, escavei uma entrada para nossa antiga toca, ciente de que primeira parte da minha missão estava cumprida. Bem antes do amanhecer eu já tinha ocultado o funesto embrulho, cavando freneticamente parede acima, até o lugar mais alto que consegui alcançar, depositando-o rente à torneira da pia. Apenas uma fina película de terra impedia que o produto entornasse e facilitaria sua desobstrução no momento em que eu precisasse dele. Esbaforido pelo esforço, recolhi-me ao meu ninho e logo adormeci.


Capitulo XI

A luz artificial que fluía no final de minha toca acabou por acordar-me. Sobressaltado, por instantes, pasmei confuso, sem conseguir atinar onde me encontrava. O odor do veneno e o prolongado manuseio dele entorpeceram o meu cérebro. Achava-me confuso. Depois percebi que dormira por um longo tempo e a noite já era bem velha. Lépido, ganhei os poucos metros que me separavam da pia da cozinha, temeroso que o meu esconderijo pudesse ter sido descoberto, pois se por alguma razão a fina parede cedera, não só o embrulho teria sido encontrado, como a minha presença estaria revelada, o que poria fim nos meus planos de vingança.
Felizmente meus temores eram infundados. Tudo estava em ordem e apesar do adiantado da hora, meu inimigo ainda lá estava. Dava para ouvir o rumor da água que vinha do quartinho adjacente à cozinha e o cheiro de sabonete que dali advinha.
Corri saltitante ao ver que bem embaixo do ponto onde eu depositara o veneno encontravam-se agora, sobre a pia, frutas expostas e algumas delas cortadas ao meio. Pensei comigo: "Se conseguir alcançar o túnel que eu tinha cavado, rente à parede, fácil seria espalhar sobre as frutas o veneno que lá se encontrava". Subi rápido, então, pelo pequeno orifício e me posicionei na borda ainda fechada. Porém, na minha sofreguidão, acabei caindo, ao escavar a terra que faltava, entre a toca e o embrulho. Ao retornar, agoniado notei que o conteúdo do embrulho havia vazado todo para fora. Quando tentava descobrir nas frutas os sinais de veneno, notei que o asqueroso ser voltava e tive que escapulir-me para o esconderijo, enquanto ele, não dando sinais que notara minha presença, caminhou em direção a pia.
Já tinha me dado por vencido quando descobri que grande parte de veneno fora cair dentro de uma espécie de triturador de frutas, dissolvendo-se no líquido que lá estava. Da minha toca pude ver que ele reiniciava a tarefa, que por alguma razão havia interrompido e, uma a uma, as frutas foram sendo espremidas no recipiente. Respirei aliviado: Meg, com certeza, seria vingada.


Capitulo XII

As chamas das velas tremeluzem em seus castiçais, apaticamente inúteis, na sala fartamente iluminada.
_ Foi terrível, quando abri a porta encontrei-o caído no chão. Pelo jeito acabara de sair do banho e juro... Vi ratos correndo pelo seu corpo. Meu Deus! Nunca vi coisa igual
_ ( ...............)
_ Veja ali, aquela senhora conversando com o senhor idoso, o pai dele... É a faxineira de quem lhe falei. Foi ela que me telefonou contando o ocorrido. Meu Deus, eu ainda não consigo acreditar! Estou chocado!
_Você não notou nele, nos seus últimos encontros, algum sinal de depressão?
_ Não. Uma vez até ele chegou a comentar que, morando sozinho, ele se sentia mais leve. Que se sentia mais aliviado depois da separação.
_ Mas, vocês não tinham brigado?
_ Não... Já falei sobre isso com o delegado. Há um mês tivemos um pequeno desentendimento,... Mas, coisa à toa. Eu tinha entrado de férias e resolvemos viajar para o litoral. Lá, na ultima sexta feira que saímos juntos, ele bebeu um pouco demais. Ficou inconveniente... Falava demais. Chamei um táxi e levei-o até sua casa e desta vez me recusei a entrar. Ele estava chatíssimo! Dois dias depois ele me telefonou pedindo desculpas e me contou que encontrara ratos na cozinha e que contratara uma faxineira. Depois disso não mais o vi. Só hoje,... Aí!
_ (...............)
_ Veja, a Cinthia não apareceu. Só o companheiro dele veio. E ela, onde se encontra?
_ Dizem que está no exterior. Depois que ela soube que ele a traia e com quem, a coitadinha entrou em parafuso e o pai e o irmão, para evitar os possíveis desdobramentos do escândalo, aconselharam-na que viajasse.
_ Talvez, então, ela nem saiba do ocorrido. De qualquer maneira a polícia entrou em contato com os familiares e comunicou-lhes que precisava falar com ela. Você sabe, checar os fatos, descobrir os motivos de sua morte... Essas coisas.
_ Parece que o irmão já viajou para encontrá-la. Que coisa! No fundo ele acabou, mesmo involuntariamente, por inverter os papéis, tornando-se vítima. Seus amigos são capazes de dizer que a culpa foi dela.
_ É... eu li os jornais de hoje. Até que foram discretos. Deram a entender que foi a separação a causa mais provável da tragédia. Você sabe né? Gente rica em cidade pequena... Jornais não vão a fundo, não. Veja a manchete... Aqui! No canto direito da página três: "SUICÍDIO: EMPRESÁRIO TOMA SUCO DE LARANJA COM RATICIDA”.*

*Conto Escrito em 1998

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