Capítulo I
Aquela
gigantesca massa branca, dava para perceber, já estava amarelecendo.
Inerte, já há bastante tempo e dura como uma rocha. Aos poucos fui
me acostumando com ela ali estirada e o meu medo deu lugar à
curiosidade. Cheirei-a toda e percebi que não mais oferecia perigo.
Passei sobre ela, mordisquei-a e dei meu veredicto: estava morta.
Fred se aproximou como se, tendo
assistido
todo o ritual,
confiasse no meu diagnóstico. Apesar da rapidez de seus movimentos,
suas patinhas não demonstravam mais nenhum nervosismo e certa
alegria estampou-se em sua fisionomia. Eu também fui tomado por uma
súbita felicidade, mesclada de espanto, sem saber ao certo explicar
o porquê. Na verdade, estava em estado de estupefação.
Como se esquecesse do motivo de
sua curiosidade, Fred começou seu costumeiro farejar: era óbvio que
estava com fome. Pensei comigo: Agora tudo será mais difícil! (O
outro ser, semelhante a este que jazia imóvel, viera há apenas duas
noites e como de costume só retornaria no clarear do quinto dia.
Deixara tudo limpo e reluzente e o que havia de comestível,
devidamente trancado, ou em lugares que dificilmente alcançaríamos).
Comecei a me preocupar com o nosso futuro! É claro que, talvez,
pudéssemos nos utilizar daquele ser volumoso. Mas para mim, pois
tenho certeza que o esfomeado Fred teria outra opinião, aquilo
estava fora de cogitação. Pelo menos, por enquanto. Primeiro, por
ainda considerar uma heresia tocá-lo e segundo, porque até suas
carnes começaram a amolecer, já estaríamos mortos. Fred insinuou
com o focinho que tentaria perfurar com seus afiados dentes a parte
superior da cabeça, que ainda permanecia com um pouco de calor e
pendia com seus olhos sem brilho, quase na altura do ralo da cozinha.
Repeli tal ato com veemência, dando-lhe a entender que acharíamos
alguma coisa. “E rápido” - observou meu aflito companheiro, no
remexer sibilante do seu focinho.
Capítulo II
Ter
encontrado aquela casa foi um verdadeiro achado. O terreno baldio
onde até então
estávamos alojado, fora completamente incendiado e logo, pás e
betoneiras fizeram dele um lugar insuportável para viver e forçaram
a nossa peregrinação.
Depois
de muito caminhar, termos conseguido esse lugar seco e arejado, foi
motivo de festas. Esquadrinhamos toda a construção, seus aposentos
e frestas e a possibilidade de conseguirmos comida e neste aspecto
ela se mostrou pródiga. Fred e Meg conseguiam localizar ração em
lugares inimagináveis e juntos faziam um rebuliço tamanho que, com
certeza, punham em risco nossa segurança. Adverti-os várias vezes,
mas acabei me convencendo que tais preocupações eram infundadas.
Outra coisa me impressionou e serviu também para que eu mais ainda
desleixasse de manter-me alerta: como se a providência não só
velasse por nós como também nos acudisse, ração chovia sobre nós
quando dela já estávamos desesperançados. E muitas vezes,
alimentos eram colocados em lugares mais fáceis de serem alcançados.
Tal situação durou muitos e muitos dias até que percebi a ilusão
em que tinha sido engabelado.
O pressentimento, pela primeira
vez, de que todas aquelas dádivas não eram obras do acaso,
deslumbrou-me a tal ponto que passei dias tentando encontrar o meu
Onipotente protetor. Foi maravilhoso perceber que um ser superior e
magnânimo velava diurnamente por nós. Porém, tal revelação não
era compartilhada pelos meus dois companheiros, que prosseguiam
impassíveis em suas buscas por comida, sem perceberem que ela se
encontrava sempre a mão. Para eles nada mudara e nem eu conseguia
imaginá-los compartilhando de minhas "esquisitices".
Solitário em meus devaneios, fiz para mim mesmo, o juramento de
descortinar as barreiras que havia entre eu e o incompreensível ser
que tomava conta de todo o espaço em minha volta, com prodígios que
só a mim conseguiam deslumbrar.”
Capítulo III
Há
tempos tinha
compreendido que havia no nosso mundo outros seres situados muito
além dos predadores e intuí que os prodígios aqui verificados e
muitas coisas que se materializavam em nossa volta eram, com certeza,
obras deles. As minhas investigações, por muito tempo, se mostraram
inglórias. Não que nosso Protetor se ocultasse; muito pelo
contrário, sentia cada vez mais a sua presença; e sim, por que
desconhecia a chave que abriria a porta desse Universo imenso que me
circundava e na qual eu ocupava apenas um ínfimo canto. Nem meus
olhos, nem minha mente, estavam preparados para absorvê-lo, dar
conta de sua grandiosidade e magnitude. O instinto que me mantinha a
salvo da ação de vários predadores não mais me bastava.
Intuitivamente, percebi que o primeiro artifício há ser usado era a
educação dos meus sentidos; principalmente, o do olfato e do tato.
Tudo precisaria ser minuciosamente observado e comecei a anotar as
mais insignificantes mudanças no ambiente: claridade, sombras,
ruídos, pequenos detalhes na paisagem em nossa volta. Enfim, tudo
que mesmo de maneira imperceptível, por um segundo que fosse se
movia ou se transformava. Concentrava-me nisso obcecadamente todos os
segundos de que dispunha, até minhas forças, esgotadas, cederem ao
sono. Nessas árduas vigílias procurei aguçar o máximo meu olfato,
já por natureza muito potente, e percebi com alegria que conseguia
identificar o cheiro do insofismável ser a léguas de distância e
embora não conseguisse vê-lo, sabia da materialidade de sua
presença. Ele, de fato existia.
Fred
e Meg, sempre alheios a todo o resto que não fosse procurar comida e
dormir quando saciados, dobrando-se sem resistência aos primeiros
clarões que ofuscassem seus pequeninos olhos, começaram a notar a
minha estranha maneira de agir e embora não conseguissem compreender
a razão de tudo aquilo, começaram a se preocupar com a minha saúde.
Eu não comia o suficiente. Não querendo aborrecê-los com minhas
conjecturas,
aconselhei-os que
não se importassem comigo: "Eu estava bem", conclui, e só
isso bastou para que eles voltassem a me ignorar.
Afastei-me,
então, dos meus companheiros concentrando-me, apenas, em tentar
surpreender as aparições de nosso protetor, para mim cada vez mais
palpáveis.
Capitulo IV
Certo
dia, o ruído do motor que, tinha certeza agora, precedia a chegada
do ser bendito, sobressaltou-me quando me preparava para começar
minha vigilância noturna. Por alguma razão ele chegara antes do
habitual. Rápido corri até a entrada do casarão e por pouco não
fui esmagado pela roda de um veículo, ofuscados que meus olhos foram
pela luminosidade que dali se irradiava. Por infelicidade minha,
quando o foco de luz diminuiu só consegui enxergar uma silhueta
grandiosa que se perdia atrás da porta. Tresloucadamente contornei a
construção e esgueirando-me pelo labirinto, estreito e úmido, que
Fred e eu construímos para dar passagem para o interior do prédio e
que desembocava entre dois canos: um fino de metal e outro bem mais
grosso, de cerâmica, e cheguei ao local onde sempre achávamos
restos de comida em profusão e que dava em frente ao quarto dele.
Mas para minha desgraça, meu protetor ali se refugiara e só de lá
sairia, sabia eu, após o amanhecer.
Desiludido, voltei para minha
toca e exasperado, com a cabeça girando adoidada, só conseguia
pensar em uma maneira de conseguir o meu intento. As paredes para
outro pavimento, raciocinei, eram grossas demais e a porta ao ser
fechada não deixava brechas alguma que coubesse o meu corpo. A única
possibilidade era esperá-lo já lá dentro, sabendo de antemão que
a espera não seria pequena. Eu poderia entrar lá, assim que ele se
retirasse, logo de manhã.
Essa alternativa empolgou-me
tanto que imediatamente iniciei uma febril atividade e num ir e vir
constante fui estocando, grão a grão, durante a noite toda, pilhas
de mantimentos que julgava necessárias para uma longa vigília. E
mal a claridade matutina espreitou pelos orifícios da janela e
pressentindo o local deserto, penetrei nos seus aposentos. Logo
descobri rente ao chão, um estreito, mas bem comprido vão onde fui
depositando o que conseguia armazenar. Mesmo com as réstias solares
fustigando meus olhos e a sonolência querendo entorpecer os meus
músculos, labutei horas da tarde até que, exaurido, aconcheguei-me
junto aos suprimentos, que da maneira que estavam localizados, com
certeza não seriam vistos por um ser de tão grande estatura. Assim
protegido aproveitei para dormir do que restava para anoitecer e
adormeci sonhando com o esperado encontro.
Capítulo V
Nunca
tinha medido, na verdade, o espaço de tempo que havia entre a saída
e o retorno do meu protetor, porém, devido, talvez, a ansiedade,
nunca me pareceu tão longo. A noite veio, acordei, esperei horas a
fio, a ponto de várias vezes abandonar o meu esconderijo e ele não
apareceu. Só quando a luz solar espargia-se por entre os móveis
envernizados foi que senti o cheiro característico que chegava e
para espanto meu, minhas narinas identificaram outro odor. Um novo e
desconhecido cheiro, mas, no entanto, similar ao primeiro.
Arrisquei-me, então, e abandonei o meu esconderijo para tentar
encontrar um local mais alto para minhas observações, que desse
para focalizar a totalidade da porta, mesmo correndo o risco de ser
descoberto. Assim instalado, com o coração palpitando
descompassado, fui observando a claridade que invadia o quarto.
Concomitantes às duas sombras que se espetaram no chão, dois vultos
adentraram-se pela porta e se fizeram nítidos à medida que a
penumbra se desfazia. Fazia muito barulho e pareciam felizes.
Minhas narinas detectaram o
forte cheiro de álcool que tomou conta do ambiente. Os dois, então,
despiram-se das primeiras peles e outras, toda branca, foram
aparecendo mostrando-se quase que peladas: só pequenos tufos de pêlo
escapavam escassos, num ou outro lugar dos corpos. Pela primeira vez
eu via por inteiro o meu protetor e essa visão não me agradou, mas
mesmo assim, continuei atento no meu observatório onde, precavido,
voltara a me ocultar.
Os dois seres começaram, então,
um estranho e longo ritual de acasalamento: cheiravam-se e lambiam
reciprocamente até a exaustão e só depois de um bom tempo é que
tentaram a cópula. Algo que para aqueles corpos desproporcionados,
com seus membros inferiores e superiores grandes e disformes, parecia
deveras difícil.
Ouviu-se então, batidas na
porta que se repetiram várias vezes, até que o protetor,
visivelmente contrariado, foi até lá e dirigiu-se ao local de onde
as batidas se originavam. Aproveitei a ocasião, ciente de que o que
vira, fora por ora, suficiente e precipitei-me para fora sem ser
notado.
Dei-me por feliz ao encontrar de
volta as companhias de Fred e Meg que, encolhidinhos num canto da
toca, dormiam inocentes. Em meu cérebro continuavam registradas as
imagens daquelas cenas e me intrigavam certos sentimentos que
começaram a tomar conta de mim e eu não conseguia explicar seus
motivos: sentia-me frustrado e com medo. Se aquele Ser por quem eu,
ávido esperava, quase idolatrado, mostrou-se asqueroso e prosaico
demais para o paradisíaco lugar que eu lhe reservara na minha
imaginação, nada, no entanto, aconteceu que justificasse a
transformação de minha expectante alegria do dia anterior, na
desagradável desconfiança que me assolava agora. Nem o seu aspecto
físico que me enojara e que de fato não me agradara, nem a
constatação de que agora ele não estava mais só, eram motivos
para tão ríspida mudança de avaliação. "Mas os nossos
instintos, pensei comigo, dificilmente falham". Para não mais
ficar remoendo inutilmente essas sensações, acomodei-me o mais
perto possível de meus companheiros e procurei dormi.
Capitulo VI
Vários
dias e noites se passaram sem que se percebesse na casa qualquer tipo
de atividade. Silenciosa, parecia que com o seu marasmo iria sufocar
todos os meus receios, até que um dia que amanheceu chuvoso, eu o
senti chegar e novamente alcoolizado. O cheiro de outro ser ficara do
outro lado da rua, desvanecendo-se logo. Ele entrava sozinho.
Mais confiante, desci
rapidamente as escadas e pude vê-lo cambaleante. Não conseguiu
chegar até o quarto, pois se desequilibrou de repente,
estatelando-se no chão. Nesse momento certa comiseração tocou-me.
Com certeza, pensei, eu tinha sido rígido demais no meu julgamento.
Se esse ser não era o todo onipotente que imaginara nas minhas
primeiras investigações, também não era o ser horrendo que eu o
transformei depois. Ao vê-lo ali, desfalecido, dava-me dó e não
horror.
Resolvi, então, aproximar-me
mais, para sentir melhor as suas narinas e averiguar se ele estava
bem, pois, sua forte respiração saia entrecortada, aos borbotões.
Perplexo, percebi que seus olhos
esmaecidos arregalaram-se de chofre, assustados. Ele tinha me visto!
Readquirindo, num átimo, uma agilidade que julguei impossível,
armou-se de uma vassoura e pôs-se em meu encalço, desferindo golpes
que por pouco não me acertaram. Sai atônito, em desabalada corrida
para o quintal e pude notar que meu perseguidor se dera por vencido e
retornara raivoso, oscilando seu corpanzil para dentro da casa. A
porta foi fechada com estrondo.
A partir desse dia procurei
alertar meus companheiros para os perigos que estavam correndo, mas
eles, da mesma maneira que antes menosprezaram os meus devaneios,
agora faziam ouvidos moucos a minha postura alarmista. Parecia que
sabiam de tudo aquilo e que só eu, desgrudando-me da realidade como
fiz, pudera ter a sensação de uma segurança que nunca tivéramos.
"Vai ver que eles têm mesmo razão, conjecturei, afinal a
vidinha deles não se alterara em nada.”
Tal constatação deixou-me por
muito tempo abalado. Sentia-me o menor dos camundongos! Eu que me
considerava tão superior a eles, dono de uma clarividência que só
eu mesmo enxergava, era obrigado a ceder às evidências e aceitar,
resignado, minha estupidez.
Capítulo VII
Por
pouco tempo, no entanto, perdurou a minha apatia, um novo ser começou
a freqüentar a casa e novos fatos impediram que eu me entregasse à
letargia. Trazia um cheiro peculiar que me fez crer que se tratasse
de uma fêmea e quando saía, todos os detritos da residência haviam
sido removidos. Desta maneira, nossa ração foi também
drasticamente reduzida ou ficava bem mais difícil localizá-la. Essa
situação colocou Fred e Meg em tal estado de aflição, que me
deixou muito apreensivo. Eu tinha, mais do que nunca, de ajudá-los.
Devia isso a eles e estava em jogo a nossa sobrevivência!
A experiência que adquiri com
as minhas frustrantes investigações e longas vigílias__ como a
resistência ao sono e a claridade diurna__ tudo isso, argüi,
poderia ser-me útil agora. Poderia realizar as minhas jornadas em
busca de comida durante o dia, coisa que os meus companheiros não
assimilariam com facilidade, já que com a chegada dessa nova
personagem, a escassez de comida tornara-se maior à noite. É claro
que seria perigoso, pois o risco de ser percebido durante os meus
deslocamentos de um lugar para o outro, seria maior. No entanto, na
minha cabeça, tal risco passara a ser inevitável.
Pus-me, então, a calcular o
tempo entre a saída de um e outro ser, como também horários mais
favoráveis para encontrar comida e para armazená-la. Tinha que me
esforçar para conseguir estocar uma quantidade suficiente para
várias noites, pois nem todo dia o alimento seria encontrado.
Assim decidido comecei a minha
tarefa e, com passar do tempo, muitas vezes a noite me surpreendia
ainda acordado. Mas confortava-me ver a feliz agitação de meus
amigos quando acordavam e viam quantos alimentos eu conseguira
recolher. Só então, cansado, é que eu procurava abrigo na minha
toca e com o frio cortante da noite, tentava dormir. Nisso levava
mais uma desvantagem, Fred e Meg dormiam de dia e sempre juntinhos.
Capitulo VIII
Fui
acordado pela correria frenética de Fred sobre meu corpo. Até
dar-me conta de que realmente acordara, senti que ele passou sobre
mim como um bólido, no mínimo, três vezes. Era sua maneira de
chamar atenção. E pela sua agitação, estava nervosíssimo.
No dia anterior eu já havia
levado um susto tremendo: a faxineira me viu por uma fresta na parede
da sala, justamente na hora em que eu concluía o trabalho de
armazenagem, e quase me apanhou. A minha sorte é que seu escarnecido
grito me alertara e tive tempo e agilidade para escapulir de sua
investida, escorregando-me pela tábua solta do assoalho. Depois
disso um barulho ensurdecedor de martelo e tábuas tomou conta do
ambiente e acabou acordando os meus companheiros que, assustados,
correram para o quintal.
Fui atrás dele e lá ficamos
até que as coisas se normalizassem e sentíssemos seguros para
retornar. Nossa volta, porém, só foi possível após o pôr do sol,
com a saída da faxineira que naquele dia acabou se demorando mais do
que o habitual.
Ao regressarmos tivemos outra
surpresa desagradável: todo mantimento que eu tinha conseguido
recolher havia desaparecido. O assoalho tinha sido remendado e
encontrava-se úmido, sinal de que fora lavado há bem pouco tempo. O
que restava de suprimento era o que estava estocado há dias. E não
era lá grande coisa. Abstive-me então de comer e induzi meus
companheiros a iniciarem a busca noturna, enquanto eu tentaria dormir
um pouco, pois o dia seguinte prenunciava-se sombrio.
Agora Fred me acordava e no
pisca-piscar de seus olhinhos, compreendi que algo muito sério
estava acontecendo. Acompanhei-o até a cozinha, aonde encontramos
Meg, endoidecida, correndo em círculos. Seu pequeno abdomem
apresentava-se flácido e notava-se em sua pele ondas de calafrio.
Estava desesperadamente esfomeada. Olhando a derredor notei que nada
havia mais para comer; a ração que tínhamos acabara e pelo visto
as buscas de meus companheiros foram infrutíferas. Mal tomei pé da
situação, ouvi os ruídos característicos da chegada do protetor.
Fred e eu imobilizamos, então, a pequena Meg e a fizemos retroceder
até o banheiro, onde, tentando superar o pânico que a todos nós
assolara, ficamos escondidos, vigiando atentos todos os movimentos do
revoltante ser.
Para nossa surpresa, ele tirou
do armário punhados e punhados de comida e começou a distribuí-la
pela cozinha (como eu, em meus devaneios passados, imaginava que ele
altruisticamente, assim o fizesse). Porém, o esmero era tanto e a
quantidade tamanha que uma leve suspeita instigou-me o espírito. Vi
que meus amigos salivavam enquanto se reprimiam vorazmente para não
se atirarem de vez ao banquete que em nossa frente se materializava.
Foram os minutos mais agoniados da minha vida.
Como uma clarividência o pânico
tomou conta mim, adivinhando uma tragédia iminente. Nem bem
constatou que o recinto estava vazio, Meg projetou-se sobre o farto
banquete. Não tive tempo de contê-la. Essa sua precipitação fez a
minha suspeita concretizar-se em trágica certeza. Ao meu grunhido
desesperado Fred estancou-se perplexo ao meio do caminho, mesmo sem
entender o meu inusitado alarme e olhou-me apreensivo implorando uma
explicação. Entendeu-a nos meus olhos horrorizados e ao voltar-se
em direção a Meg, já a viu completamente inerte, estirada no chão.
Capitulo IX
O
corpinho de Meg foi atirado com grande estardalhaço para um terreno
baldio. Pela claridade matinal expandida da janela pude notar o
jubiloso brilho nos olhos do hediondo ser, que sorria maléfico.
Dessa cena não mais me esqueci e ela alimentou a minha revolta
dando-me forças para arquitetar um plano de vingança que, por ora,
tinha que ser adiado devido às precárias condições físicas de
Fred. Era inquestionável que a prioridade agora era conseguir
alimentos, com urgência e o mais longe possível daquela casa e de
seus perigos. Eu não tinha condições de avaliar o quanto estávamos
ameaçados e o melhor a fazer era nos afastarmos dali. Sufoquei assim
a minha ira no meu inconsciente pranto. “O meu ódio será mais bem
saciado se saboreado devagarzinho”_ pensei, enquanto literalmente
arrastávamo-nos para fora dos limites da casa.
Demorei-me mais alguns dias em
companhia de Fred, enquanto ele se restabelecia. O lixão que
encontramos não era o melhor dos mundos, mas não tínhamos muito
que escolher. Era enorme e bastante habitado. Urubus, ratazanas,
seres imundos, faziam parte de sua fauna esfomeada e agressiva; mas,
adaptarmo-nos a esse lugar inóspito, não chegou a ser difícil. Só
me restava levar adiante o juramento de vingança e para conseguir
esse intento não mediria esforço algum.
Capítulo X
Não
foi difícil localizar o cadáver de Meg, pois dele emanava um mau
cheiro que podia ser sentido a léguas de distancia. Esse adiantado
estado de putrefação dificultava a identificação do veneno, mas
mesmo arriscando soçobrar-me na tarefa, prossegui no meu trabalho e
passei horas nessa faina até conseguir, finalmente, separar do
nauseabundo cheiro putrefato, o cheiro sutil e adocicado da
substância letal. A pele de Meg encontrava-se pincelada de manchas
verdes do que se deduzia que sua pigmentação fora alterada pela
absorção de produto. Recolhi, então com os dentes, pedaços desse
material, o suficiente para assimilar a composição da droga e poder
identificá-la futuramente. Só, então, adentrei-me à antiga casa.
Tive sorte de encontrá-la vazia e meu olfato levou-me, depois de
muito farejar e enganos, até um pequeno embrulho debaixo da pia da
cozinha. O conteúdo dava para se notar, era suficiente para provocar
a morte de centenas de roedores e avaliei que, com certeza, de alguém
com igual tamanho. Eufórico de alegria, escavei uma entrada para
nossa antiga toca, ciente de que primeira parte da minha missão
estava cumprida. Bem antes do amanhecer eu já tinha ocultado o
funesto embrulho, cavando freneticamente parede acima, até o lugar
mais alto que consegui alcançar, depositando-o rente à torneira da
pia. Apenas uma fina película de terra impedia que o produto
entornasse e facilitaria sua desobstrução no momento em que eu
precisasse dele. Esbaforido pelo esforço, recolhi-me ao meu ninho e
logo adormeci.
Capitulo XI
A
luz artificial que fluía no final de minha toca acabou por
acordar-me. Sobressaltado, por instantes, pasmei confuso, sem
conseguir atinar onde me encontrava. O odor do veneno e o prolongado
manuseio dele entorpeceram o meu cérebro. Achava-me confuso. Depois
percebi que dormira por um longo tempo e a noite já era bem velha.
Lépido, ganhei os poucos metros que me separavam da pia da cozinha,
temeroso que o meu esconderijo pudesse ter sido descoberto, pois se
por alguma razão a fina parede cedera, não só o embrulho teria
sido encontrado, como a minha presença estaria revelada, o que poria
fim nos meus planos de vingança.
Felizmente meus temores eram
infundados. Tudo estava em ordem e apesar do adiantado da hora, meu
inimigo ainda lá estava. Dava para ouvir o rumor da água que vinha
do quartinho adjacente à cozinha e o cheiro de sabonete que dali
advinha.
Corri saltitante ao ver que bem
embaixo do ponto onde eu depositara o veneno encontravam-se agora,
sobre a pia, frutas expostas e algumas delas cortadas ao meio. Pensei
comigo: "Se conseguir alcançar o túnel que eu tinha cavado,
rente à parede, fácil seria espalhar sobre as frutas o veneno que
lá se encontrava". Subi rápido, então, pelo pequeno orifício
e me posicionei na borda ainda fechada. Porém, na minha sofreguidão,
acabei caindo, ao escavar a terra que faltava, entre a toca e o
embrulho. Ao retornar, agoniado notei que o conteúdo do embrulho
havia vazado todo para fora. Quando tentava descobrir nas frutas os
sinais de veneno, notei que o asqueroso ser voltava e tive que
escapulir-me para o esconderijo, enquanto ele, não dando sinais que
notara minha presença, caminhou em direção a pia.
Já tinha me dado por vencido
quando descobri que grande parte de veneno fora cair dentro de uma
espécie de triturador de frutas, dissolvendo-se no líquido que lá
estava. Da minha toca pude ver que ele reiniciava a tarefa, que por
alguma razão havia interrompido e, uma a uma, as frutas foram sendo
espremidas no recipiente. Respirei aliviado: Meg, com certeza, seria
vingada.
Capitulo XII
As
chamas das velas tremeluzem em seus castiçais, apaticamente inúteis,
na sala fartamente iluminada.
_ Foi terrível, quando abri a
porta encontrei-o caído no chão. Pelo jeito acabara de sair do
banho e juro... Vi ratos correndo pelo seu corpo. Meu Deus! Nunca vi
coisa igual
_ ( ...............)
_ Veja ali, aquela senhora
conversando com o senhor idoso, o pai dele... É a faxineira de quem
lhe falei. Foi ela que me telefonou contando o ocorrido. Meu Deus, eu
ainda não consigo acreditar! Estou chocado!
_Você não notou nele, nos seus
últimos encontros, algum sinal de depressão?
_ Não. Uma vez até ele chegou
a comentar que, morando sozinho, ele se sentia mais leve. Que se
sentia mais aliviado depois da separação.
_ Mas, vocês não tinham
brigado?
_ Não... Já falei sobre isso
com o delegado. Há um mês tivemos um pequeno desentendimento,...
Mas, coisa à toa. Eu tinha entrado de férias e resolvemos viajar
para o litoral. Lá, na ultima sexta feira que saímos juntos, ele
bebeu um pouco demais. Ficou inconveniente... Falava demais. Chamei
um táxi e levei-o até sua casa e desta vez me recusei a entrar. Ele
estava chatíssimo! Dois dias depois ele me telefonou pedindo
desculpas e me contou que encontrara ratos na cozinha e que
contratara uma faxineira. Depois disso não mais o vi. Só hoje,...
Aí!
_ (...............)
_ Veja, a Cinthia não apareceu.
Só o companheiro dele veio. E ela, onde se encontra?
_ Dizem que está no exterior.
Depois que ela soube que ele a traia e com quem, a coitadinha entrou
em parafuso e o pai e o irmão, para evitar os possíveis
desdobramentos do escândalo, aconselharam-na que viajasse.
_ Talvez, então, ela nem saiba
do ocorrido. De qualquer maneira a polícia entrou em contato com os
familiares e comunicou-lhes que precisava falar com ela. Você sabe,
checar os fatos, descobrir os motivos de sua morte... Essas coisas.
_ Parece que o irmão já viajou
para encontrá-la. Que coisa! No fundo ele acabou, mesmo
involuntariamente, por inverter os papéis, tornando-se vítima. Seus
amigos são capazes de dizer que a culpa foi dela.
_ É... eu li os jornais de
hoje. Até que foram discretos. Deram a entender que foi a separação
a causa mais provável da tragédia. Você sabe né? Gente rica em
cidade pequena... Jornais não vão a fundo, não. Veja a manchete...
Aqui! No canto direito da página três:
"SUICÍDIO:
EMPRESÁRIO TOMA SUCO DE LARANJA COM RATICIDA”.*
*Conto Escrito em
1998
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