sábado, 8 de outubro de 2016

Alfa e Ômega

Alfa & Ômega


I

E o tempo parou...
A brisa, que cada vez mais mexia menos a ramagem, estancou-se de supetão. Extinguiu-se.
Poucos, os mais suscetíveis às pequenas mudanças, sentiram, sem poderem confirmar com certeza, tais fatos _ às vezes a noite, outras vezes o dia, caprichosamente se esticavam como se tivessem medo de não mais retornarem _ por imperceptíveis que eram.
Muitos deram importância a episódios mais relevantes, sem, no entanto, questionarem “por quê”, _ como aquele ovo que não chegou a chocar e nem a apodrecer, ou aquela mulher grávida que nunca paria _ por acreditarem talvez, que seriam passageiros; coisa, quem sabe, de mudança de estação. Mas, por via das dúvidas começou-se cronometrar o tempo. Aquele tempo preguiçoso de acabar.
Com o passar do tempo, (poderíamos ainda dizer assim), os relógios foram perdendo a precisão, _ cada um marcava mais demoradamente os minutos e dificilmente se achavam dois que marcassem milimétricamente o mesmo segundo; até se tornarem inúteis, pois ninguém mais neles botava fé _ muitos acharam estranho e de início nem ligaram, mas poucos começaram a perceber que algo terrificante estava se processando.
Silenciosamente o tempo estava sendo tragado e paradoxalmente prolongava-se, enfadonho e mudo, dando sinais inexoráveis que em algum momento iria parar. E parou, esvaindo-se cadenciamente.
Antes, porém, o padre percebeu que no campanário tudo estava estatificando-se. Primeiro foi o sino que teve a última badalada das seis horas interrompida. Seu som sumiu no ar como se todos os ouvidos da terra tivessem sido tapados. Ninguém ouviu o sinal da última nota que se estertorou abafada. Ou pelo menos o padre teve a certeza (não disse como) que ninguém a ouvira, pois ela _ a nota, seu som _ interrompeu-se seca, inaudível. As andorinhas (perceberia depois) não revoavam mais ao redor do campanário, nem chilravam barulhentas como antes. As que lá estavam quedaram-se estáticas, absortas, pesarosas.
Podia-se sentir o silêncio em volta da torre da igreja, que se alastrava pesado. Embora nada houvesse na verdade, se interrompido. Da fábrica, ao longe, via-se que os funcionários marchavam de volta aos seus lares, mas sentia-se que esse retorno se fazia arrastado, sem sorrisos ou pressa de chegar.
Constatou-se mais tarde que, esse esticar-se dos minutos, das horas, dos dias, não afetava a vida dos homens, pois_ por ser tão vagarosamente sentido_ somente dormiam cada vez mais tarde e mais tarde, também cada vez mais, acordavam. Falavam menos e meditavam mais.
Com o tempo, (quando podíamos ainda reportar assim) as noites cada vez mais longas sucediam-se dias cada vez mais longos, que precediam noites mais longas ainda. Interminavelmente prolongavam-se um pouco cada vez, mas sempre um pouco mais.
A que compararíamos esse lento prolongar das coisas senão a uma irreversível imobilidade final? Se é que haveria um fim.


II


O padre, a quem não daremos nome, já que esse se perdera nas engrenagens do tempo que se imobilizava, resolveu procurar o camponês _ que vagamente recordava chamar-se Inácio _ para conversar sobre suas inquietações. O lógico seria, talvez, o contrário: ele, o sacerdote, ser procurado pelo camponês, que deveria estar confuso com os acontecimentos, ou pela falta deles; se é que os tinha percebido. E se percebido tivesse, por metafísicos que eram, será que Inácio os compreenderia? O fato de toda comunicação radiofônica ser, abruptamente, interrompida ou achar-se há um bom tempo, (quanto não se sabia ao certo) surdos, todos os telefones do lugarejo, podia não ter sido notado pelo matuto, que estaria mais preocupado, com certeza, com a demora do sol em se pôr.
Essa vagabundagem da noite em não querer chegar, ou o esquecimento momentâneo do sol em ir-se, talvez atinasse mais a curiosidade e o espanto do homem, do que o mutismo do rádio ou a surdez telefônica, quem sabe, só ocasionalmente em pane; como o relógio que parecia com preguiça de trabalhar.
Se o padre em sua visível confusão não conseguira elaborar nenhuma explicação plausível, era porque temia que a crendice enraizada na sua formação cristã, aludisse ao bíblico fim dos tempos, coisa para qual se sabia não preparado. Sua crença criacionista por formação e fé, não era suficiente para aceitar a aventura terrena tão perto de um fim. Deveria haver outra explicação para esse fenômeno_ pensou _ ou por diabos, estaria enlouquecendo? E ponderou que, se alguma falha em seu comportamento houvesse, outra pessoa haveria de detectar.
_ Percebeste como o dia demora a acabar? _ perguntou peremptoriamente Inácio ao padre, antes mesmo deste ter avançado o suficiente para abordá-lo.
_ Como reparaste nisso? _ devolveu o padre estupefacto com a pergunta imprevista, que cortava gélida, a sua espinha.
_ O sol não quer se pôr e da noite nem há sinal. O tempo está parando. Sabes o que isso significa padre?
A remudança de papéis desconcertou o sacerdote, que não teve o que responder. Seria dele essa fala e a reinversão truncou-lhe o pensamento. Sua mudez fez vacilar o matuto.
_ Há dias que medito sobre isso _ retornou depois de algum tempo, Inácio _ estava a ponto de ir a tua procura. Parece que adivinhaste.
_ Não, _ retorquiu o padre_ nossas idéias é que se cominaram. Eu vim também em busca de algumas respostas. É bom saber que partilhas das mesmas preocupações e sentes, como eu, que alguma coisa fora do normal se abre sobre nós. Mas te adianto: não sei o que pensar. Achei que estava ficando doido.
_ Estou cismado com certos fatos que vem me ocorrendo há alguns anos. Isolados podem nada dizer, mas, agora, ligando-os, compondo-os num quadro só, parece que faz sentido. Ou, pelo menos, soaram-me como explicação _ interrompeu-se Inácio, refletindo.
_ Continue, _ incentivou-o o padre, enquanto que pela sua mente perpassava outra imagem do, até instante atrás, simplório matuto _estou curioso com o que tens a dizer.


III



Inácio, disse-se-lhe então, ser agrônomo de formação e vivera com Augusta, sua mulher, por mais de vinte anos. Com ela teve uma filha, Alice, que se viva estivesse, hoje completaria dezoito anos.
Era linda e além de bela, inteligente e meiga. Tinha os olhos negros e seu corpo, brotando-se já mulher, chamava para si todos os olhares masculinos da escola. Muitas vezes, ao vê-la caminhar ao longe, comprazia-se pensar o quanto que fora agraciado na vida.
No entanto, de seu corpo gracioso e perfeito, na pele morena e transbordante de vida, brotou-se uma intumescência pequena e única a princípio, que rápida cresceu e se espalhou. Levaram-na, então, a todos os médicos que muitos indicaram; a todas as clínicas recomendadas e nada conseguiu regredir os tumores malignos que de seu pescoço tomaram conta e penetraram vorazes, em sua garganta.
Nenhum dinheiro, nenhuma prece, nenhuma medicação, nenhum tratamento, nada conseguiu evitar sua prematura morte ao quatorze anos de idade. Seu sofrimento e seu trágico fim tiraram dele toda esperança na vida e qualquer credulidade, quer humana, quer divina.
Como se tal tragédia fosse pequena, vítima de um aneurisma cerebral, dois anos depois, morreu Augusta que, já combalida pela morte da filha, não opôs resistência à doença, que em menos de duas semanas a levaria. Sua vida se fez caos.
Esvaiu-se, a partir daí, por completo, toda resistência que ainda tinha. Soçobro-se, então, ao peso da morte: à sua presença nefasta; ao seu destroçar de sentidos. As sensações de todo vazio e abandono, de todo ruir da alma, de todo desesperar sem limites, dele tomaram conta, como se gigantesca pedra lhe esmigalhasse seu cérebro devagarzinho. O álcool, então, passou a ser o seu lenitivo, o seu derradeiro refúgio. Mas com o tempo, embriagar-se não era mais o suficiente, pois, se nunca até então cultivara grandes amizades e sempre teve na família somente, seu deleite e fim, a bebida não mais lhe trazia reconforto, nem fuga para a sua solidão. Muitas vezes pensou em suicídio, mas para consumar tal ato, faltava-lhe a coragem necessária no momento final. Assim, definhando-se, consumia seus dias.
O padre, curioso com o que ouvia, esqueceu-se por completo de qual era sua motivação quando viera procurar o matuto que desaparecera de seus olhos para se transformar no homem agoniado e culto que agora ouvia. Aquelas revelações, pelo menos até aquele momento, nada tinha a haver com a imobilidade do tempo. Sentou-se, presentindo que o relato não seria breve, e incentivou-o a prosseguir. Esse, não se fazendo de rogado, continuou:
_ Sentia-me ignóbil e desprezível e por ter consciência disso, ansiava por mudar, por superar essa condição abjeta. O passo seguinte foi, então, como uma ressurreição.
Não me recordo ao certo como me envolvi com alucinógenos, nem como traguei minha primeira “canabis”, eu, que até então, jamais tinha fumado cigarro algum”. Não me lembro de quem me trouxe o primeiro grama de cocaína, nem como entrei em contato com o mundo do ópio e do haxixe. Só sei que de tudo experimentei e vivi momentos de êxtase e horror. Porém, confesso de nada disso me arrepender depois, pois os momentos de prazer eram tão reconfortadores que me aliviavam dos pesos dos dias e da depressão, que me assolava a seguir, livrava-me dela com doses maiores e o ciclo assim prosseguia, fazendo-me viajar nas delícias de um estágio sem comprometimentos, nem sobressaltos. Sentia-me maravilhado num novo mundo, para o qual era transportado em delicioso fulgor.
Lembro-me uma vez que tendo saído de um desses estados de torpor encontrei-me num campo esplendidamente florido. Recordo-me da sensação de que as montanhas ao longe nunca estiveram tão perto e como distinguira suas árvores uma por uma, a nitidez de seus galhos e até, como se as tivesse olhado milimetricamente de perto, as ramificações das suas folhas e o esvoaçar dos insetos que nelas procuravam abrigo e deles, todos os seus sons.
Tudo evocava majestade naquela paisagem multicolorida: ipês roxos, amarelos e brancos, cravos vermelhos, tulipas azuis, orquídeas translucidindo em milhares de tons, diáfanas ramagens esverdeadas em todas as tonalidades.
Era tudo tão estupefaciente que ao sair de meu deslumbramento não cheguei a perceber que me encontrava próximo a um formigueiro e as formigas, como se transitassem sobre uma pedra imóvel, passeavam irreverentes por todo o meu corpo. Sem me apavorar, caminhei até um riacho de águas cristalinas que completava a paradisíaca paisagem e nele mergulhei, livrando-me assim dos inconvenientes insetos, sem ter levado uma única picada.
Nem sempre, todavia, as sensações eram as mesmas, nem as experiências se repetiam, mas até as mais terríveis alucinações me eram benfazejas: vi sangue cair sobre o meu corpo ao abrir o chuveiro; senti as paredes do meu quarto tentando esmigalhar-me; vi enguias na piscina; senti-me tragado pela terra; pesadelos horripilantes me faziam acordar de noite gritando e, no entanto, continuava dormindo; vi demônios que há tempos não acreditava mais e tomado pela LSD vislumbrei trilhões de estrelas ao alcance das mãos; senti a presença divina; chorei a morte de querubins; vi Deus e senti-me Ele.
Convencia-me, ou fazia-me convencer, que o mundo real era este e não aquele do qual saíra com a alma ferida, os laços partidos, a família engolida por sei lá quais malditos deuses. Se eu sempre fora bom, honesto, decente, por que me foi impingido tão cruel anátema, tão devastador destino? E por que temos que suportar tudo isso?
As drogas me mostraram outro caminho, outro lado da vida, de sensações impossíveis longe dela e quem poderá julgar as opções de cada um e a correta escolha sobre elas, sem de fato vivê-las e nelas tentar se compreender? Quem atiraria a primeira pedra estando mesquinhamente confortável do outro lado?
Porém, com o tempo, minhas economias minguaram. Por causa das drogas vendi meu carro e minha casa. Para ambos os negócios, arranjei justificativas: o carro já era velho, de bastante uso, compraria um melhor futuramente; a casa já não me servia, era grande demais e as recordações dos meus entes queridos, solapavam-me o espírito. Adquiri então uma quitinete e de fato, aquilo me bastava. A situação, no entanto, não era nada tranqüila, já que tinha abandonado meu emprego público há mais de seis meses e teria que arranjar com urgência outra ocupação. Esse sentimento de certa responsabilidade só me acudia nos momentos de lucidez, momentos estes cada vez mais raros. Relevava o tempo como se minha vida fosse se encaixar um dia, naturalmente, sem grandes transtornos. O que sempre era adiado, porém, não poderia sê-lo indefinidamente. A premência de recursos para cobrir os altos custos de meu vício fez com que um dia, desesperado, penhorasse as jóias, poucas, aliás, de minha mulher e também as de minha filha. Quando constatei o tão pouco de mercadoria conseguira com aquele pequeno empréstimo, uma agonia profunda tomou conta de mim e triturando-me a alma. Num relance percebi que estava próximo do fim.
É difícil traduzir em palavras o que senti, mas lembro-me que tentando me transportar do arrependimento tardio para o êxtase do esquecimento, tantas vezes conseguido, atirei-me afoito ao produto e deparei-me com a mais acaçapante frustração, pois não tive desta vez, satisfação alguma. Prostrei-me numa depressão tão grande e nunca tal avassalador desespero tomara conta de mim.
Não sei dizer a sucessão certa dos fatos que agora passo a narrar, pois a amnésia que já fazia parte de meus delírios apossou-se do meu cérebro de tal maneira e por tanto tempo, que dificilmente conseguirei descrever com exatidão o que me ocorreu na penumbra desses dias, onde surtos de loucuras se sucederam e se confundiram nos corredores de minha mente e a lucidez dali alijada, só em curtos momentos, conseguiu sobressair-se. O pânico, então, instalou-se em mim.
Num desses momentos contemplei-me no espelho e minha aparência, magérrima e degradante, insuflou-me de ódio. Não sabia ao certo onde me encontrava e ante tal visão me precipitei contra o espelho, quebrando-o com murros. Vieram em meu socorro, ou para me conter, médicos e enfermeiras e antes deles, seguranças com os quais lutei por alguns minutos, até ser subjugado e restringido a um leito. Na minha confusa mente ficou registrada depois apenas a imagem do meu corpo horripilante e do meu olhar desvairado. Nem o sangue que escorria de minhas mãos chegou a impressionar-me.
Noutro momento arranquei a agulha do soro que me ministravam, pois para mim, eram sanguessugas que me devoravam. Pavor e medo tornaram-se parte de mim e quando voltei para minha residência, a sensação de aniquilamento ainda persistia; no entanto, imbui-me do desejo de me livrar do vício.
Nunca imaginei, no entanto, o quanto seria tão penoso.

IV


Largar o vício” é uma expressão que pouco reflete o conflito interior que assola tua alma. Na verdade, é uma verdadeira “despossessão”. És o outro que tentas arrancar de ti. É uma árdua batalha com um estranho que te possui. É um recomeçar tão próximo de um final aonde não te quer chegar. A luta é desigual, pois tu lutas consigo mesmo, sabendo que é o outro que mandas em ti.
Tranquei-me, então, um dia _é-me difícil saber com precisão quando _ com meus medos e delírios, na minha pequena moradia e prometi para mim mesmo, se bem que no íntimo cheguei a duvidar que cumprisse tal promessa, que só sairia de lá curado ou morto. Para tanto, as chaves, joguei-as fora e livrei-me de tudo que pudesse facilitar-me uma possível fuga. Por tal ato, todo tempo, amaldiçoei-me depois. Preparei-me, assim, para enfrentar meus pesadelos.
Foram dias intermináveis e noites que se negavam a terminar. Não havia pausa para meus fantasmas e se de noite me infernizavam fazendo que eu me desesperasse para ver o sol nascer, de dia me faziam lutar tão incessantemente que ansiava pelo sono da noite; sono este que nunca me acudia.
Quantos dias eu estive naquele inferno? Quantas noites briguei por minha lucidez? Não sei. Tudo se fundia num mesmo labirinto onde eu era o minotauro que me caçava sem tréguas e nessa luta que parecia não ter fim, sangrei as mãos dando murros nas paredes, tive feridas e equimoses de tanto me autoflagelar, gritei contra os espectros de mim mesmo até me sucumbir, sem forças de permanecer em pé, sem condições de manter o equilíbrio nem de meu corpo, nem de minha mente. Tudo parecia ruir dentro de mim.
Recordo-me, enfim, de combalido ao extremo, deixar-me cair e prostrado, senti meu sangue esvaindo-se de minhas veias e junto com ele, compreendi que minha vida esvaia-se também.
Os vizinhos, que dificilmente os via e com os quais nunca tive a menor simpatia ou amizade, devem ter ouvido os meus lancinantes gritos e o ensurdecedor barulho que vinha de meu apartamento, pois cheguei a quebrar _ alucinado_ tudo que lá havia: pratos, vasos, micro-ondas, televisor; tudo enfim, arremessei contra as janelas e portas _ e acabaram vindos em meu socorro. Depois de arrombarem a porta de entrada retiraram-me dali. Possivelmente, quando entraram, já se depararam comigo quase em estado de inanição.
_ Padre com certeza notou _ interrompendo a narrativa, como a se justificar _ que até aqui, minha história nada apresenta em relação ao mundo que se imobiliza. No entanto, faz-se necessária, pois foi assim que me embrenhei pelos estranhos acontecimentos que tumultuaram a minha vida. Peço teu obséquio para prosseguir
_ Tu o tens, _ respondeu o padre, enquanto meditava sobre, até aqui, as incríveis aventuras ou desventuras do narrador_ prossiga. O que te aconteceu depois?
O tempo estático parecia que acomodava meio a contragosto, os personagens que insistiam em conversar. Só a seqüência da narrativa de Inácio confirmava que a temporalidade ainda existia. O crepúsculo, no horizonte, debatia-se para não se findar.

V


Foi assim que encontrei Marisa, psicóloga da clínica, a mulher mais fria e calculista que já conheci”. Características essas que só depois vim a perceber.
Fiquei internado alguns dias num hospital, sob efeito de sedativos e depois de alguns dias obtive internação em uma clínica. Como não tinha parentes próximos e Marisa lá fazia estágio, como psicóloga, foi ela quem providenciou tal internação, mostrando-se, para surpresa minha, prestativa, eficiente e muito simpática.
Minha recuperação foi rápida, pois estava convencido que tinha superado o vício. Apenas a parte física carecia de maiores cuidados, pois me encontrava muito debilitado depois de tanto tempo sem alimentação alguma.
Marisa me privilegiava com sua atenção. Sua corte era-me bem vinda, pois além de minha família, nunca me senti, por alguém, tão paparicado. Estava enfim de volta a vida e nesse sentido ela me encorajava quando abatido, acolhia-me na depressão, incentivava-me nos meus menores progressos. Fazia-me sentir que recomeçar valeria a pena.
E assim, com meiguice, um dia me fez o seguinte convite:
_Terás alta, possivelmente, hoje, ou o mais tardar, amanhã cedo _ e fazendo uma pausa como se hesitasse, prosseguiu: _ Sei que resides sozinho e estás desempregado, poderia ajudar-te a... Diria assim, a ocupar-se novamente.
_ Estas me propondo um emprego?
_Direi que estou te oferecendo um trabalho que não interromperá a tua recuperação e ao mesmo tempo, te mostrará um novo rumo para ti. Topas?
_Com certeza!_ respondi, não procurando esconder meu entusiasmo _ diga-me como!
_Estou te convidando para trabalhares comigo num projeto pioneiro, num Instituto de pesquisas científicas. Tudo lá é experimental, embora já tenha dado bons resultados em muitos campos_ e concluiu: se topares pára aqui as explicações, pois mais detalhes, tê-lo-ás quando lá se integrares.
Não me passou pela cabeça perguntar-lhe por que ela tinha me escolhido, nem qual a razão do convite assim de supetão e que exigia uma resposta tão imediata. Seu interesse por mim pareceu-me natural e quanto à novidade de tal projeto, não me fazia tecer outras expectativas. Eu sentia-me renascer e tudo para mim era novidade, até o simples fato de acordar e conviver com outras pessoas. Sentia-me vivo entre os vivos! Tudo em minha volta recomeçava e as surpresas faziam parte desse constante recomeçar.
Na manhã seguinte, como previsto, recebi alta da clínica e à tarde, logo após o almoço, dirigi-me ao endereço deixado por Marisa, no horário por ela pré-determinado. Era o último ônibus do dia para aquele destino.
O céu já declinava quando lá cheguei. Seu vermelho ardente espalhava-se pela planície e aos poucos, entre sombras avermelhadas, ia se formando um pequeno edifício.
O Instituto lembrava uma clínica, não que sua estrutura se assemelhasse a um hospital, mas devido à limpeza e a higiene do lugar. Tudo era asséptico e asseado. Não se via musgos nas paredes, nem mosquitos nos ambientes e entre folhagens, pomares e árvores, animais pastavam sem que se sentisse o cheiro de estrume, nem os odores corriqueiros em áreas rurais. Todos os empregados usavam uniformes nos quais não se via mancha alguma.
Os animais e vi-os em quantidade: cavalos, bois, porcos, todos pareciam que rebrilhavam ao sol, dando a impressão que eram limpos e escovados várias vezes por dia. Tudo o mais parecia recém-pintado. As paredes, janelas, porteiras e cercas, cheiravam a tinta.
Fui acolhido com indiferença e polidez. De antemão os empregados já sabiam quem eu era e sem maiores apresentações indicaram-me o meu quarto e deram-me um folheto onde se detalhavam os horários das refeições, os cardápios de cada dia e todas as demais informações pertinentes a um hóspede de primeira viagem. Nada indicava sobre minhas possíveis tarefas, nem o que esperavam de mim. Quando indaguei sobre Marisa, a resposta foi lacônica: “A doutora te procurará em breve”. E foi só por mais de dois dias. Fazia minhas refeições com os funcionários que pouco me dirigiam a palavra. Na verdade respondiam às minhas perguntas com monossílabos. Recurso esse que, por enfado ou constrangimento, deixei de lado, pois as rápidas respostas não supriam as minhas curiosidades.
No final do terceiro dia, quando já me preparava para dormir, convicto que nada de diferente iria acontecer e quando já começava a me arrepender de ter vindo e a questionar o porquê de minha vinda a esse lugar tão asséptico, quanto estranho, batem na porta e ao abri-la meio a contragosto, devido ao adiantado da hora, vejo surgir Marisa. Abraçou-me com sofreguidão aparentando que sentia muitas saudades, desculpando-se assim pela longa demora.
Se alguma raiva eu ainda tinha, diluiu-se com toda essa demonstração de carinho. Senti como bálsamo o calor de seus braços e nada me pareceu mais natural que nos amássemos por toda à noite, como se amantes fôssemos de longa data e com certo assombro, pus-me a meditar depois, enquanto ela, angélica dormia, que jamais havia antes, por um segundo que fosse, tocado em uma mecha de seus cabelos. Todas as minhas apreensões tinham sido por hora, esquecidas. Dormi depois copiosamente por mais de quinze horas.

VI

O “Instituto”, não era como pensei a primeira vista, nenhuma colônia agropecuária. Fazia-se lá, na verdade, experiências com culturas transgênicas; tratava-se de uma clínica pioneira em pesquisas genéticas. Possuía amplos laboratórios em locais distantes e poucos visíveis da rodovia. Marisa me falaria com orgulho que era uma das encarregadas da clonagem de animais e dos resultados de seus trabalhos com várias espécies de criaturas. Diante de minha estupefação e assombro, passou a descrever com detalhes, todo o processo de gestação nos mamíferos, grupo esse que segundo ela, tinha maiores possibilidades de sucesso. Com mais detalhes ainda, falou-me da fertilização “in vitro” e de suas experiências, poucas, mas com êxito, da fecundação e geração, naquele laboratório, de bebês de proveta. Ela, além de psicóloga, se intitulava “doutora em genética” e prometeu me apresentar aos outros membros de sua equipe, assim que fosse possível.
Tal possibilidade veio há ocorrer três dias depois, tempo, aliás, que fiquei sem vê-la. “Como geneticista, justificou-se ela sem que eu lha pedisse, faço muitas viagens para cursos e conferências, coisas com que terá de se acostumar.” _ concluiu categoricamente, como se alguma objeção de minha parte houvesse. Tal veemência eu achei despropositada.
Além dela, faziam parte da equipe, que dirigia o Instituto, outras três pessoas: Felipe, um jovem calvo, de voz possante e autoritária, também geneticista; um senhor aparentando mais de cinqüenta anos de idade, voz rouca e pele rosada que se apresentou como químico vindo da Áustria: Paul D.; e um biólogo de forte sotaque alemão, que usava óculos garrafais e que era por todos, tratado como subalterno: Otto k. Felipe tinha uma ascendência indiscutível sobre os demais, seu olhar frio denotava não aceitar nenhum tipo de contestação. Soube mais tarde, embora não me lembre por quem, que Felipe era um dos tais bebês de proveta, pelo que concluí que o Instituto não era tão recente como pensara.
Foi a partir daí, se não me trai a memória, confusa por todas essas sucessões de experiências inusitadas, que comecei a sentir a paralisação lenta do tempo. A princípio relacionei tal sensação ao ambiente exótico que frequentava, mas no íntimo, certo alarme nunca me deixou convicto disso. Nos intervalos de minhas tarefas, que não eram muitas, meditava muito sobre isso e em minhas divagações pus-me a recordar que, quando ainda drogado, eu também não tinha muito nítida a percepção correta do tempo. Estaria ainda sobre os efeitos de alucinógenos?
Para meu maior desespero Marisa ausentou-se por vários dias, ausência essa que coincidiu com um período de fortes chuvas que inundaram os arredores do Instituto, as estradas e boa parte dos campos circunvizinhos. O tédio tomou conta de todos nós, como se a borrasca trouxesse para o Instituto a solidariedade que não havia nos dias de bom tempo. Quando o sol retornou estupidamente abrasador, sugando lépido todo vestígio de umidade, vários animais foram encontrados sem vida pelos campos. Participei depois, da cremação de inúmeros cadáveres já putrefactos, num grau de deterioração assustador, sem que nenhum motivo aparente explicasse esse fenômeno Nesta tarefa passamos grande parte da tarde e já anoitecia quando retornamos aos nossos alojamentos. Como não conseguia conciliar o sono, após o jantar resolvi, para espairecer, caminhar um pouco, aproveitando a noite calma e tépida que clara, apesar da ausência da lua, se mostrava lá fora. As estrelas espocavam tão brilhantes e densas que passei horas olhando absorto o firmamento. A claridade prateava os contornos das árvores e parecia fazê-las cintilar, como cintilantes se mostravam as gotas de orvalho esparramadas pelo chão.
_ Noite deveras bonita – ecoou atrás de mim a voz barítono de Felipe.
_ De fato – respondi, assim que me recuperei do susto; absorto como estava, não tinha percebido sua chegada.
_ Marisa, antes de partir, - retomou, como se de repente a beleza da noite não o sensibilizasse mais – entregou-me esta carta endereçada a ti, - disse passando-me um envelope sem remetente.
Ela se encontra na Alemanha e parece-me que demora a voltar – concluiu sorrindo e devo anotar que foi a primeira e última vez que o vi sorrir.
Vi quando ele se afastou e continuei imóvel em meu lugar como se esperasse alguma outra explicação.
Se a noite com sua majestade me fez esquecer Marisa, um calafrio a trouxe de volta e alertou-me para que não abrisse a carta. Perpassou-me a ideia de que alguma coisa se romperia se eu assim o fizesse. Quedei-me abatido como se o Empíreo fosse, a qualquer momento, desabar sobre mim.

VII

- O que dirias se eu te dissesse que a clonagem humana está bem mais próxima do que imaginas? – disse-me, Felipe, zombeteiro.
_ Diria que ainda acho que é uma possibilidade teoricamente viável, praticamente improvável e eticamente inaceitável – respondi com certo desdém, insinuando dar por encerrado, um assunto que já me aborrecia.
Felipe segurou-me pelos ombros, tentando me manter sentado. Exasperado, fulminou:
_ O que é ética? O que é a moral frente aos benefícios inimagináveis para a humanidade? Será e já é o fim das rejeições nos transplantes, a possibilidade de prolongar a vida humana e acredites: O início de sua eternidade. Bradou quase raivoso.
_ Dizes incongruências, _ ponderei_ o que sei é sobre o possível envelhecimento precoce, como já está acontecendo com animais clonados. E mais: Quem garantirá que o clone perfeito será possível?
_ Ninguém garante nada até hoje, Inácio. Podemos imaginar que um dia, a opção por doadores recairá sobre aqueles geneticamente mais saudáveis e num futuro próximo só este tipo de reprodução humana será viável. A ciência nesse sentido dá passos gigantescos e a possibilidade de um clone humano ser normal é infinitamente maior do que de uma criatura inferior.
_ Tu falas como se a reprodução humana já esteja sendo tentada...
_ O que dirias, repito, se eu te disser que hoje dezenas, ou melhor, centenas de clones humanos estão sendo engendrados?
_ Dissestes a palavra certa: engendrados, artificialmente humanizados. Mas eu continuo achando uma aberração absurda e desnecessária. E só gostaria de conhecer quem seriam as tais cobaias.
Ele pareceu engasgar-se. Depois de uma pequena pausa retrucou: Não usaria este termo. Aliás, o intercambio de material genético, de células embrionárias, não chega a ser nada aterrador...
_ Não falo desse tipo de cobaia, – disse interrompendo-o – mesmo porque, acredito que hoje em dia o dinheiro compra tudo, até a consciência humana. Não, de fato, não seria constrangedor... Refiro-me ao ser clonado. Ele que nada ganhou: Nem dinheiro, nem fama, nem sucesso. Aquele que nada barganhou; que não viveu nenhuma expectativa, terá que assumir a sua excrescência evolutiva sem saber de fato quem realmente é. Se forem centenas como dizes, a monstruosidade... Sim, assim a reputo, mesmo se todos forem perfeitos, a monstruosidade à que chegamos é apavorante.
Felipe não mais me respondeu. Acredito que tivesse uma porção de argumentos para isso, mas desistiu diante de minha teimosia ou guardava seus trunfos para outra ocasião. Suspirou fundo e como quisesse dar a entender que lastimava minha ignorância, retirou-se sem se despedir.
Antes de virar-se em direção à porta, perfurou-me com seus olhos gelados. Percebi, atrás daquela máscara vítrea, um rosto sombrio de profunda agonia.
Esse diálogo aconteceu dias antes do nosso encontro no jardim, quando, sorridente, me entregara a carta de Marisa.
Na carta _que só depois desse incidente a li_ Marisa, laconicamente confirmava que estava na Alemanha e me comunicava, em linhas que não revelavam nenhuma emoção, que se encontrava grávida de um filho meu. Terminava dizendo que retornaria em breve.
Ao lê-la fui tomado de uma estranheza quase imoral. Li como lesse uma página de ficção. Tudo, na carta, soava falso, transmitia, às léguas de distância, uma artificialidade que nada tinha de banal. Era, como todo o Instituto, toda asséptica e fria. E Marisa, se algum dia me interessou, passou, naquele momento, a não mais fazer parte de minha vida. Nem ela, nem seus projetos e por extensão, os do Instituto. Resolvi, então, que abandonaria aquele lugar o mais rápido que fosse possível. “Comunicarei Felipe sobre a minha decisão, amanhã cedo, tão logo termine meus preparativos para a viagem”, pensei de mim para comigo e dirigi-me ao quarto para tentar dormir.


VIII

Naquela noite que me pareceu interminável, revirei-me na cama até altas horas da madrugada. Minha decisão; a carta de Marisa; o diálogo com Felipe; tudo moía e remoia em meu cérebro sem que eu chegasse à conclusão alguma.
Procurei achar uma lógica para tudo aquilo. Parecia que me escapava, como uma flutuante bolha, alguma coisa que era óbvia e cuja obviedade só eu não atingia. As frases se sucediam repetitivas, tumultuadas, atemporais e quando me parecia que o sono se aproximava, elas o faziam recuar, fazendo-se em rápidos pesadelos, que me arrancavam da sonolência para de novo despertar. Despertava suando frio. Minha cabeça latejava parecendo que iria explodir.
Levantei-me, tão logo percebi que clareava e tive a impressão que tinha permanecido, ali, estirado na cama, por vários dias. Pensei em procurar de imediato Felipe, mas foi ele que veio ao meu encontro, assim que abri a porta. Conclui que já me aguardava do lado de fora.
- Inácio! – chamou-me sibilamente, com voz de pesar – vim comunicar-te uma grande tragédia: Recebi pelo rádio, agora a pouco, a notícia de que Marisa se envolveu num grande acidente, quando se dirigia para o aeroporto de Frankfurt.
- E ela, como está?
- Infelizmente, tudo indica que não sobreviveu. O carro em que estava incendiou-se após o impacto com um coletivo. As cenas que vi pela TV deixaram-me poucas esperanças!
Deixei o Instituto na certeza de que jamais retornaria. A notícia da morte de Marisa confirmou, sem sombras de dúvida, minha indiferença por ela; diria até, a minha aversão a uma pessoa indigna de qualquer pesar. Porém esse sentimento, ou a ausência da qualquer afeição a uma pessoa que nos era íntima, não revelaria, também em mim, uma falha de caráter? Seria exequível separar a pessoa difamada da difamadora? Como poderia a minha pseudo simpatia diluir-se na antipatia dela? Na verdade com sua frieza, eu me tornei mais frio e no seu egoísmo refletiu-se o meu. Sem máscara, sem eufemismos.
Não sei se enquanto ruminava esses pensamentos, procurando no espelho da ausência de Marisa, os reflexos de mim mesmo, se eu já vislumbrava as pegadas do pesadelo final que já me batia à porta. Depois tudo ficou tão evidente, que seria até constrangedor confessar que eu nada suspeitasse. Na verdade todas as pistas tinham sido dadas e tenho que admitir que eu apenas não as queria enxergar. Não me foi arrancado o olho à revelia; deixei-me cegar.
Eu não conseguia mais precisar com certeza o desenrolar dos fatos. Tentando, porém, fugir do mundo que se tornara estranho e assustador, refugiei-me neste vilarejo, antes inóspito, mas que com o tempo foi criando em sua volta outras casas, outras vidas, outros pesadelos.

IX

O crepúsculo aurorrubro, moroso, não se fazia esvanecer, como se o sol pressentisse que aquele diálogo se aproximava do fim. Inácio foi tomado de uma súbita ansiedade que lhe embargou a voz, parecendo lutar com as emoções de suas reminiscências ao evocar o desfecho de seu pesadelo; pesadelo cuja materialidade se daria com a reaparição de Marisa.
Ele nunca acreditara em sua morte. Não porque não fora vê-la em seu ataúde; nem com certeza, porque não queria acreditar nela. Mas, em seu íntimo, tinha a convicção de que ela, Marisa, nunca morrera. E, por não querer mais nenhum laço com aquele passado, para ele, já tão distante, pensou simplesmente em tentar esquecê-lo.
Ele tornou a vê-la numa manhã em que já tinha decidido se afastar do ar asfixiante da cidade, convicto de que toda essa loucura que introspectaria como sua, se ligava à loucura dos habitantes dos grandes centros. Intuía que só o isolamento o redimiria; mas entre a vontade e o gesto, instalou-se o inusitado e como tudo que é inusitado, o acontecimento lhe causou mais espanto que incredulidade. Quando a viu, ela não o notou. Caminhava apressada como sempre e Inácio movido por uma curiosidade que chegava a morbidez, decidiu segui-la à distância, embora tal precaução fosse desnecessária, pois com a pressa que ia, ela jamais o perceberia.
Chegando ao edifício de destino, Inácio hesitou em entrar. Faltou-lhe coragem, talvez. Vagou, então, durante horas pelas calçadas, visitou bares, folheou jornais. O pesadelo anunciado, que já penetrava suas entranhas, agora lhe cortava o ar dos pulmões. Um início de vertigem fê-lo decidir a tomar o elevador e enfrentar seus temores. Quando entrou na antessala de um dos escritórios, notou uma porta entreaberta. Lá dentro, Marisa examinava minuciosamente um garoto com idade indefinível, em cujo semblante, Inácio constatou um ar de imbecilidade. Quando a criatura dirigiu-lhe o olhar, ele sentiu-se tomado de pavor. Recordou-se de sua odiada imagem no espelho do hospital, quando ainda debatia-se com os fantasmas de suas alucinações.
O menino era ele quando jovem, mais num corpo que se desenvolvera muito além da sua cronológica idade. Os anos passaram para aquela criatura numa velocidade bem maior que a normal e o cérebro não acompanhara, com certeza, esse desenvolvimento tão precoce.
Marisa sobressaltou-se ao sentir a sua presença e atemorizou-se com ela, como alguém que é flagrado em indisfarçável delito. Quando conseguiu se recompor, suas palavras não encontraram eco nos ouvidos de Inácio. Ele já compreendera tudo antes mesmo que ela tentasse lhe explicar... Se é que ela tentara de fato isso.
Já no ônibus, de volta para casa, Inácio não mais se recordava de como se retirou dali e nem as reações de Marisa ou as do menino bestializado. Só veio-lhe a mente o diálogo tido com Felipe e a palavra cobaia trespassaram-no como um raio. Ele fora usado como cobaia e como cobaia Marisa tratava a criatura que dele fora clonada.
O Instituto não existe mais; foi abandonado por Felipe e seus funcionários, logo após o retorno de Marisa. Suas estruturas, sempre tão asseadas e limpas, foram tomadas pelo mato e pela podridão. Inácio jura que não mais se recorda da sua localização, nem do paradeiro de nenhum de seus antigos habitantes.

X


- Ao exorbitar-se em seu livre-arbítrio, a criatura estarreceu seu próprio criador. Deus – quase gemeu Inácio, ao pronunciar essa palavra – se existe, e de repente voltei a acreditar nisso, abandonou sua criação. Em outras palavras: Deus pendurou as chuteiras e a Terra está à deriva. O Ser Único, Imóvel, Indivisível e Eterno, num ato de desprendimento, desgosto ou enfado, deixou para a sua criatura a imobilidade que precede o caos.
O padre riu, sem transparecer ironia, do paradoxo do mais tardio discípulo de Zenão. Poderia, pensou, para contrapor-se e lhe demover de idéias tão estapafúrdias citar Platão, seu demiurgo e seu caos inicial. Ou até apelar para a teologia cristã, mas achava-se, aquela altura, cansado demais para filosofar. E mais: o que diria a Inácio se suas próprias e mais caras convicções diluíam-se como num passe de mágica?
Na verdade, deduzia, o que Inácio não chegou a compreender era que a busca do homem eterno, que destoava da asséptica sordidez do Instituto e da frieza de seus gestores, podia vir a ser o trágico fim da humanidade; o que destoava do que preconizara fanaticamente Felipe.
- Sua história é fantástica – comentou já caminhando de volta a guisa de despedida e de longe completou: - Mas ainda prefiro acreditar que estou enlouquecendo.
Não procuraria mais explicações, e sim dormir e quando acordasse esse pesadelo teria acabado.
Inácio sorriu aliviado. Seus olhos perscrutaram o horizonte, onde os últimos raios solares teimavam em não se apagar e ardiam como que congelados. Na paisagem em volta, porém, tudo se consumia em trevas, sem um único som.
A Terra, estática, se emudecia.*

*Conto Escrito em 2001

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