Alfa & Ômega
I
E
o tempo parou...
A brisa, que cada vez mais mexia
menos a ramagem, estancou-se de supetão. Extinguiu-se.
Poucos, os mais suscetíveis às
pequenas mudanças, sentiram, sem poderem confirmar com certeza, tais
fatos _ às vezes a noite, outras vezes o dia, caprichosamente se
esticavam como se tivessem medo de não mais retornarem _ por
imperceptíveis que eram.
Muitos deram importância a
episódios mais relevantes, sem, no entanto, questionarem “por
quê”, _ como aquele ovo que não chegou a chocar e nem a
apodrecer, ou aquela mulher grávida que nunca paria _ por
acreditarem talvez, que seriam passageiros; coisa, quem sabe, de
mudança de estação. Mas, por via das dúvidas começou-se
cronometrar o tempo. Aquele tempo preguiçoso de acabar.
Com o passar do tempo,
(poderíamos ainda dizer assim), os relógios foram perdendo a
precisão, _ cada um marcava mais demoradamente os minutos e
dificilmente se achavam dois que marcassem milimétricamente o mesmo
segundo; até se tornarem inúteis, pois ninguém mais neles botava
fé _ muitos acharam estranho e de início nem ligaram, mas poucos
começaram a perceber que algo terrificante estava se processando.
Silenciosamente o tempo estava
sendo tragado e paradoxalmente prolongava-se, enfadonho e mudo, dando
sinais inexoráveis que em algum momento iria parar. E parou,
esvaindo-se cadenciamente.
Antes, porém, o padre percebeu
que no campanário tudo estava estatificando-se. Primeiro foi o sino
que teve a última badalada das seis horas interrompida. Seu som
sumiu no ar como se todos os ouvidos da terra tivessem sido tapados.
Ninguém ouviu o sinal da última nota que se estertorou abafada. Ou
pelo menos o padre teve a certeza (não disse como) que ninguém a
ouvira, pois ela _ a nota, seu som _ interrompeu-se seca, inaudível.
As andorinhas (perceberia depois) não revoavam mais ao redor do
campanário, nem chilravam barulhentas como antes. As que lá estavam
quedaram-se estáticas, absortas, pesarosas.
Podia-se sentir o silêncio em
volta da torre da igreja, que se alastrava pesado. Embora nada
houvesse na verdade, se interrompido. Da fábrica, ao longe, via-se
que os funcionários marchavam de volta aos seus lares, mas sentia-se
que esse retorno se fazia arrastado, sem sorrisos ou pressa de
chegar.
Constatou-se mais tarde que,
esse esticar-se dos minutos, das horas, dos dias, não afetava a vida
dos homens, pois_ por ser tão vagarosamente sentido_ somente dormiam
cada vez mais tarde e mais tarde, também cada vez mais, acordavam.
Falavam menos e meditavam mais.
Com o tempo, (quando podíamos
ainda reportar assim) as noites cada vez mais longas sucediam-se dias
cada vez mais longos, que precediam noites mais longas ainda.
Interminavelmente prolongavam-se um pouco cada vez, mas sempre um
pouco mais.
A que compararíamos esse lento
prolongar das coisas senão a uma irreversível imobilidade final? Se
é que haveria um fim.
II
O
padre, a quem não daremos nome, já que esse se perdera nas
engrenagens do tempo que se imobilizava, resolveu procurar o camponês
_ que vagamente recordava chamar-se Inácio _ para conversar sobre
suas inquietações. O lógico seria, talvez, o contrário: ele, o
sacerdote, ser procurado pelo camponês, que deveria estar confuso
com os acontecimentos, ou pela falta deles; se é que os tinha
percebido. E se percebido tivesse, por metafísicos que eram, será
que Inácio os compreenderia? O fato de toda comunicação
radiofônica ser, abruptamente, interrompida ou achar-se há um bom
tempo, (quanto não se sabia ao certo) surdos, todos os telefones do
lugarejo, podia não ter sido notado pelo matuto, que estaria mais
preocupado, com certeza, com a demora do sol em se pôr.
Essa vagabundagem da noite em
não querer chegar, ou o esquecimento momentâneo do sol em ir-se,
talvez atinasse mais a curiosidade e o espanto do homem, do que o
mutismo do rádio ou a surdez telefônica, quem sabe, só
ocasionalmente em pane; como o relógio que parecia com preguiça de
trabalhar.
Se o padre em sua visível
confusão não conseguira elaborar nenhuma explicação plausível,
era porque temia que a crendice enraizada na sua formação cristã,
aludisse ao bíblico fim dos tempos, coisa para qual se sabia não
preparado. Sua crença criacionista por formação e fé, não era
suficiente para aceitar a aventura terrena tão perto de um fim.
Deveria haver outra explicação para esse fenômeno_ pensou _ ou por
diabos, estaria enlouquecendo? E ponderou que, se alguma falha em seu
comportamento houvesse, outra pessoa haveria de detectar.
_ Percebeste como o dia demora a
acabar? _ perguntou peremptoriamente Inácio ao padre, antes mesmo
deste ter avançado o suficiente para abordá-lo.
_ Como reparaste nisso? _
devolveu o padre estupefacto com a pergunta imprevista, que cortava
gélida, a sua espinha.
_ O sol não quer se pôr e da
noite nem há sinal. O tempo está parando. Sabes o que isso
significa padre?
A remudança de papéis
desconcertou o sacerdote, que não teve o que responder. Seria dele
essa fala e a reinversão truncou-lhe o pensamento. Sua mudez fez
vacilar o matuto.
_ Há dias que medito sobre isso
_ retornou depois de algum tempo, Inácio _ estava a ponto de ir a
tua procura. Parece que adivinhaste.
_ Não, _ retorquiu o padre_
nossas idéias é que se cominaram. Eu vim também em busca de
algumas respostas. É bom saber que partilhas das mesmas preocupações
e sentes, como eu, que alguma coisa fora do normal se abre sobre nós.
Mas te adianto: não sei o que pensar. Achei que estava ficando
doido.
_ Estou cismado com certos fatos
que vem me ocorrendo há alguns anos. Isolados podem nada dizer, mas,
agora, ligando-os, compondo-os num quadro só, parece que faz
sentido. Ou, pelo menos, soaram-me como explicação _ interrompeu-se
Inácio, refletindo.
_ Continue, _ incentivou-o o
padre, enquanto que pela sua mente perpassava outra imagem do, até
instante atrás, simplório matuto _estou curioso com o que tens a
dizer.
III
Inácio, disse-se-lhe então, ser agrônomo de formação e vivera com Augusta, sua
mulher, por mais de vinte anos. Com ela teve uma filha, Alice, que se
viva estivesse, hoje completaria dezoito anos.
Era linda e além de bela,
inteligente e meiga. Tinha os olhos negros e seu corpo, brotando-se
já mulher, chamava para si todos os olhares masculinos da escola.
Muitas vezes, ao vê-la caminhar ao longe, comprazia-se pensar o
quanto que fora agraciado na vida.
No entanto, de seu corpo
gracioso e perfeito, na pele morena e transbordante de vida,
brotou-se uma intumescência pequena e única a princípio, que
rápida cresceu e se espalhou. Levaram-na, então, a todos os médicos
que muitos indicaram; a todas as clínicas recomendadas e nada
conseguiu regredir os tumores malignos que de seu pescoço tomaram
conta e penetraram vorazes, em sua garganta.
Nenhum dinheiro, nenhuma prece,
nenhuma medicação, nenhum tratamento, nada conseguiu evitar sua
prematura morte ao quatorze anos de idade. Seu sofrimento e seu
trágico fim tiraram dele toda esperança na vida e qualquer
credulidade, quer humana, quer divina.
Como se tal tragédia fosse
pequena, vítima de um aneurisma cerebral, dois anos depois, morreu
Augusta que, já combalida pela morte da filha, não opôs
resistência à doença, que em menos de duas semanas a levaria. Sua
vida se fez caos.
Esvaiu-se, a partir daí, por
completo, toda resistência que ainda tinha. Soçobro-se, então, ao
peso da morte: à sua presença nefasta; ao seu destroçar de
sentidos. As sensações de todo vazio e abandono, de todo ruir da
alma, de todo desesperar sem limites, dele tomaram conta, como se
gigantesca pedra lhe esmigalhasse seu cérebro devagarzinho. O
álcool, então, passou a ser o seu lenitivo, o seu derradeiro
refúgio. Mas com o tempo, embriagar-se não era mais o suficiente,
pois, se nunca até então cultivara grandes amizades e sempre teve
na família somente, seu deleite e fim, a bebida não mais lhe trazia
reconforto, nem fuga para a sua solidão. Muitas vezes pensou em
suicídio, mas para consumar tal ato, faltava-lhe a coragem
necessária no momento final. Assim, definhando-se, consumia seus
dias.
O padre, curioso com o que
ouvia, esqueceu-se por completo de qual era sua motivação quando
viera procurar o matuto que desaparecera de seus olhos para se
transformar no homem agoniado e culto que agora ouvia. Aquelas
revelações, pelo menos até aquele momento, nada tinha a haver com
a imobilidade do tempo. Sentou-se, presentindo que o relato não
seria breve, e incentivou-o a prosseguir. Esse, não se fazendo de
rogado, continuou:
_ Sentia-me ignóbil e
desprezível e por ter consciência disso, ansiava por mudar, por
superar essa condição abjeta. O passo seguinte foi, então, como
uma ressurreição.
“Não me recordo ao certo como
me envolvi com alucinógenos, nem como traguei minha primeira
“canabis”, eu, que até então, jamais tinha fumado cigarro
algum”. Não me lembro de quem me trouxe o primeiro grama de
cocaína, nem como entrei em contato com o mundo do ópio e do
haxixe. Só sei que de tudo experimentei e vivi momentos de êxtase e
horror. Porém, confesso de nada disso me arrepender depois, pois os
momentos de prazer eram tão reconfortadores que me aliviavam dos
pesos dos dias e da depressão, que me assolava a seguir, livrava-me
dela com doses maiores e o ciclo assim prosseguia, fazendo-me viajar
nas delícias de um estágio sem comprometimentos, nem sobressaltos.
Sentia-me maravilhado num novo mundo, para o qual era transportado em
delicioso fulgor.
Lembro-me uma vez que tendo
saído de um desses estados de torpor encontrei-me num campo
esplendidamente florido. Recordo-me da sensação de que as montanhas
ao longe nunca estiveram tão perto e como distinguira suas árvores
uma por uma, a nitidez de seus galhos e até, como se as tivesse
olhado milimetricamente de perto, as ramificações das suas folhas e
o esvoaçar dos insetos que nelas procuravam abrigo e deles, todos os
seus sons.
Tudo evocava majestade naquela
paisagem multicolorida: ipês roxos, amarelos e brancos, cravos
vermelhos, tulipas azuis, orquídeas translucidindo em milhares de
tons, diáfanas ramagens esverdeadas em todas as tonalidades.
Era tudo tão estupefaciente que
ao sair de meu deslumbramento não cheguei a perceber que me
encontrava próximo a um formigueiro e as formigas, como se
transitassem sobre uma pedra imóvel, passeavam irreverentes por todo
o meu corpo. Sem me apavorar, caminhei até um riacho de águas
cristalinas que completava a paradisíaca paisagem e nele mergulhei,
livrando-me assim dos inconvenientes insetos, sem ter levado uma
única picada.
Nem sempre, todavia, as
sensações eram as mesmas, nem as experiências se repetiam, mas até
as mais terríveis alucinações me eram benfazejas: vi sangue cair
sobre o meu corpo ao abrir o chuveiro; senti as paredes do meu quarto
tentando esmigalhar-me; vi enguias na piscina; senti-me tragado pela
terra; pesadelos horripilantes me faziam acordar de noite gritando e,
no entanto, continuava dormindo; vi demônios que há tempos não
acreditava mais e tomado pela LSD vislumbrei trilhões de estrelas ao
alcance das mãos; senti a presença divina; chorei a morte de
querubins; vi Deus e senti-me Ele.
Convencia-me, ou fazia-me
convencer, que o mundo real era este e não aquele do qual saíra com
a alma ferida, os laços partidos, a família engolida por sei lá
quais malditos deuses. Se eu sempre fora bom, honesto, decente, por
que me foi impingido tão cruel anátema, tão devastador destino? E
por que temos que suportar tudo isso?
As drogas me mostraram outro
caminho, outro lado da vida, de sensações impossíveis longe dela e
quem poderá julgar as opções de cada um e a correta escolha sobre
elas, sem de fato vivê-las e nelas tentar se compreender? Quem
atiraria a primeira pedra estando mesquinhamente confortável do
outro lado?
Porém, com o tempo, minhas
economias minguaram. Por causa das drogas vendi meu carro e minha
casa. Para ambos os negócios, arranjei justificativas: o carro já
era velho, de bastante uso, compraria um melhor futuramente; a casa
já não me servia, era grande demais e as recordações dos meus
entes queridos, solapavam-me o espírito. Adquiri então uma
quitinete e de fato, aquilo me bastava. A situação, no entanto, não
era nada tranqüila, já que tinha abandonado meu emprego público há
mais de seis meses e teria que arranjar com urgência outra ocupação.
Esse sentimento de certa responsabilidade só me acudia nos momentos
de lucidez, momentos estes cada vez mais raros. Relevava o tempo como
se minha vida fosse se encaixar um dia, naturalmente, sem grandes
transtornos. O que sempre era adiado, porém, não poderia sê-lo
indefinidamente. A premência de recursos para cobrir os altos custos
de meu vício fez com que um dia, desesperado, penhorasse as jóias,
poucas, aliás, de minha mulher e também as de minha filha. Quando
constatei o tão pouco de mercadoria conseguira com aquele pequeno
empréstimo, uma agonia profunda tomou conta de mim e triturando-me a
alma. Num relance percebi que estava próximo do fim.
É difícil traduzir em palavras
o que senti, mas lembro-me que tentando me transportar do
arrependimento tardio para o êxtase do esquecimento, tantas vezes
conseguido, atirei-me afoito ao produto e deparei-me com a mais
acaçapante frustração, pois não tive desta vez, satisfação
alguma. Prostrei-me numa depressão tão grande e nunca tal
avassalador desespero tomara conta de mim.
Não sei dizer a sucessão certa
dos fatos que agora passo a narrar, pois a amnésia que já fazia
parte de meus delírios apossou-se do meu cérebro de tal maneira e
por tanto tempo, que dificilmente conseguirei descrever com exatidão
o que me ocorreu na penumbra desses dias, onde surtos de loucuras se
sucederam e se confundiram nos corredores de minha mente e a lucidez
dali alijada, só em curtos momentos, conseguiu sobressair-se. O
pânico, então, instalou-se em mim.
Num desses momentos
contemplei-me no espelho e minha aparência, magérrima e degradante,
insuflou-me de ódio. Não sabia ao certo onde me encontrava e ante
tal visão me precipitei contra o espelho, quebrando-o com murros.
Vieram em meu socorro, ou para me conter, médicos e enfermeiras e
antes deles, seguranças com os quais lutei por alguns minutos, até
ser subjugado e restringido a um leito. Na minha confusa mente ficou
registrada depois apenas a imagem do meu corpo horripilante e do meu
olhar desvairado. Nem o sangue que escorria de minhas mãos chegou a
impressionar-me.
Noutro momento arranquei a
agulha do soro que me ministravam, pois para mim, eram sanguessugas
que me devoravam. Pavor e medo tornaram-se parte de mim e quando
voltei para minha residência, a sensação de aniquilamento ainda
persistia; no entanto, imbui-me do desejo de me livrar do vício.
Nunca imaginei, no entanto, o
quanto seria tão penoso.
IV
“Largar
o vício” é uma expressão que pouco reflete o conflito interior
que assola tua alma. Na verdade, é uma verdadeira “despossessão”.
És o outro que tentas arrancar de ti. É uma árdua batalha com um
estranho que te possui. É um recomeçar tão próximo de um final
aonde não te quer chegar. A luta é desigual, pois tu lutas consigo
mesmo, sabendo que é o outro que mandas em ti.
Tranquei-me, então, um dia
_é-me difícil saber com precisão quando _ com meus medos e
delírios, na minha pequena moradia e prometi para mim mesmo, se bem
que no íntimo cheguei a duvidar que cumprisse tal promessa, que só
sairia de lá curado ou morto. Para tanto, as chaves, joguei-as fora
e livrei-me de tudo que pudesse facilitar-me uma possível fuga. Por
tal ato, todo tempo, amaldiçoei-me depois. Preparei-me, assim, para
enfrentar meus pesadelos.
Foram dias intermináveis e
noites que se negavam a terminar. Não havia pausa para meus
fantasmas e se de noite me infernizavam fazendo que eu me
desesperasse para ver o sol nascer, de dia me faziam lutar tão
incessantemente que ansiava pelo sono da noite; sono este que nunca
me acudia.
Quantos dias eu estive naquele
inferno? Quantas noites briguei por minha lucidez? Não sei. Tudo se
fundia num mesmo labirinto onde eu era o minotauro que me caçava sem
tréguas e nessa luta que parecia não ter fim, sangrei as mãos
dando murros nas paredes, tive feridas e equimoses de tanto me
autoflagelar, gritei contra os espectros de mim mesmo até me
sucumbir, sem forças de permanecer em pé, sem condições de manter
o equilíbrio nem de meu corpo, nem de minha mente. Tudo parecia ruir
dentro de mim.
Recordo-me, enfim, de combalido
ao extremo, deixar-me cair e prostrado, senti meu sangue esvaindo-se
de minhas veias e junto com ele, compreendi que minha vida esvaia-se
também.
Os vizinhos, que dificilmente os
via e com os quais nunca tive a menor simpatia ou amizade, devem ter
ouvido os meus lancinantes gritos e o ensurdecedor barulho que vinha
de meu apartamento, pois cheguei a quebrar _ alucinado_ tudo que lá
havia: pratos, vasos, micro-ondas, televisor; tudo enfim, arremessei
contra as janelas e portas _ e acabaram vindos em meu socorro. Depois
de arrombarem a porta de entrada retiraram-me dali. Possivelmente,
quando entraram, já se depararam comigo quase em estado de inanição.
_ Padre com certeza notou _
interrompendo a narrativa, como a se justificar _ que até aqui,
minha história nada apresenta em relação ao mundo que se
imobiliza. No entanto, faz-se necessária, pois foi assim que me
embrenhei pelos estranhos acontecimentos que tumultuaram a minha
vida. Peço teu obséquio para prosseguir
_ Tu o tens, _ respondeu o
padre, enquanto meditava sobre, até aqui, as incríveis aventuras ou
desventuras do narrador_ prossiga. O que te aconteceu depois?
O tempo estático parecia que
acomodava meio a contragosto, os personagens que insistiam em
conversar. Só a seqüência da narrativa de Inácio confirmava que a
temporalidade ainda existia. O crepúsculo, no horizonte, debatia-se
para não se findar.
V
“Foi
assim que encontrei Marisa, psicóloga da clínica, a mulher mais
fria e calculista que já conheci”. Características essas que só
depois vim a perceber.
Fiquei internado alguns dias num
hospital, sob efeito de sedativos e depois de alguns dias obtive
internação em uma clínica. Como não tinha parentes próximos e
Marisa lá fazia estágio, como psicóloga, foi ela quem providenciou
tal internação, mostrando-se, para surpresa minha, prestativa,
eficiente e muito simpática.
Minha recuperação foi rápida,
pois estava convencido que tinha superado o vício. Apenas a parte
física carecia de maiores cuidados, pois me encontrava muito
debilitado depois de tanto tempo sem alimentação alguma.
Marisa me privilegiava com sua
atenção. Sua corte era-me bem vinda, pois além de minha família,
nunca me senti, por alguém, tão paparicado. Estava enfim de volta a
vida e nesse sentido ela me encorajava quando abatido, acolhia-me na
depressão, incentivava-me nos meus menores progressos. Fazia-me
sentir que recomeçar valeria a pena.
E assim, com meiguice, um dia me
fez o seguinte convite:
_Terás alta, possivelmente,
hoje, ou o mais tardar, amanhã cedo _ e fazendo uma pausa como se
hesitasse, prosseguiu: _ Sei que resides sozinho e estás
desempregado, poderia ajudar-te a... Diria assim, a ocupar-se
novamente.
_ Estas me propondo um emprego?
_Direi que estou te oferecendo
um trabalho que não interromperá a tua recuperação e ao mesmo
tempo, te mostrará um novo rumo para ti. Topas?
_Com certeza!_ respondi, não
procurando esconder meu entusiasmo _ diga-me como!
_Estou te convidando para
trabalhares comigo num projeto pioneiro, num Instituto de pesquisas
científicas. Tudo lá é experimental, embora já tenha dado bons
resultados em muitos campos_ e concluiu: se topares pára aqui as
explicações, pois mais detalhes, tê-lo-ás quando lá se
integrares.
Não me passou pela cabeça
perguntar-lhe por que ela tinha me escolhido, nem qual a razão do
convite assim de supetão e que exigia uma resposta tão imediata.
Seu interesse por mim pareceu-me natural e quanto à novidade de tal
projeto, não me fazia tecer outras expectativas. Eu sentia-me
renascer e tudo para mim era novidade, até o simples fato de acordar
e conviver com outras pessoas. Sentia-me vivo entre os vivos! Tudo em
minha volta recomeçava e as surpresas faziam parte desse constante
recomeçar.
Na manhã seguinte, como
previsto, recebi alta da clínica e à tarde, logo após o almoço,
dirigi-me ao endereço deixado por Marisa, no horário por ela
pré-determinado. Era o último ônibus do dia para aquele destino.
O céu já declinava quando lá
cheguei. Seu vermelho ardente espalhava-se pela planície e aos
poucos, entre sombras avermelhadas, ia se formando um pequeno
edifício.
O Instituto lembrava uma
clínica, não que sua estrutura se assemelhasse a um hospital, mas
devido à limpeza e a higiene do lugar. Tudo era asséptico e
asseado. Não se via musgos nas paredes, nem mosquitos nos ambientes
e entre folhagens, pomares e árvores, animais pastavam sem que se
sentisse o cheiro de estrume, nem os odores corriqueiros em áreas
rurais. Todos os empregados usavam uniformes nos quais não se via
mancha alguma.
Os animais e vi-os em
quantidade: cavalos, bois, porcos, todos pareciam que rebrilhavam ao
sol, dando a impressão que eram limpos e escovados várias vezes por
dia. Tudo o mais parecia recém-pintado. As paredes, janelas,
porteiras e cercas, cheiravam a tinta.
Fui acolhido com indiferença e
polidez. De antemão os empregados já sabiam quem eu era e sem
maiores apresentações indicaram-me o meu quarto e deram-me um
folheto onde se detalhavam os horários das refeições, os cardápios
de cada dia e todas as demais informações pertinentes a um hóspede
de primeira viagem. Nada indicava sobre minhas possíveis tarefas,
nem o que esperavam de mim. Quando indaguei sobre Marisa, a resposta
foi lacônica: “A doutora te procurará em breve”. E foi só por
mais de dois dias. Fazia minhas refeições com os funcionários que
pouco me dirigiam a palavra. Na verdade respondiam às minhas
perguntas com monossílabos. Recurso esse que, por enfado ou
constrangimento, deixei de lado, pois as rápidas respostas não
supriam as minhas curiosidades.
No final do terceiro dia, quando
já me preparava para dormir, convicto que nada de diferente iria
acontecer e quando já começava a me arrepender de ter vindo e a
questionar o porquê de minha vinda a esse lugar tão asséptico,
quanto estranho, batem na porta e ao abri-la meio a contragosto,
devido ao adiantado da hora, vejo surgir Marisa. Abraçou-me com
sofreguidão aparentando que sentia muitas saudades, desculpando-se
assim pela longa demora.
Se alguma raiva eu ainda tinha,
diluiu-se com toda essa demonstração de carinho. Senti como bálsamo
o calor de seus braços e nada me pareceu mais natural que nos
amássemos por toda à noite, como se amantes fôssemos de longa data
e com certo assombro, pus-me a meditar depois, enquanto ela, angélica
dormia, que jamais havia antes, por um segundo que fosse, tocado em
uma mecha de seus cabelos. Todas as minhas apreensões tinham sido
por hora, esquecidas. Dormi depois copiosamente por mais de quinze
horas.
VI
O
“Instituto”, não era como pensei a primeira vista, nenhuma
colônia agropecuária. Fazia-se lá, na verdade, experiências com
culturas transgênicas; tratava-se de uma clínica pioneira em
pesquisas genéticas. Possuía amplos laboratórios em locais
distantes e poucos visíveis da rodovia. Marisa me falaria com
orgulho que era uma das encarregadas da clonagem de animais e dos
resultados de seus trabalhos com várias espécies de criaturas.
Diante de minha estupefação e assombro, passou a descrever com
detalhes, todo o processo de gestação nos mamíferos, grupo esse
que segundo ela, tinha maiores possibilidades de sucesso. Com mais
detalhes ainda, falou-me da fertilização “in vitro” e de suas
experiências, poucas, mas com êxito, da fecundação e geração,
naquele laboratório, de bebês de proveta. Ela, além de psicóloga,
se intitulava “doutora em genética” e prometeu me apresentar
aos outros membros de sua equipe, assim que fosse possível.
Tal possibilidade veio há
ocorrer três dias depois, tempo, aliás, que fiquei sem vê-la.
“Como geneticista, justificou-se ela sem que eu lha pedisse, faço
muitas viagens para cursos e conferências, coisas com que terá de
se acostumar.” _ concluiu categoricamente, como se alguma objeção
de minha parte houvesse. Tal veemência eu achei despropositada.
Além dela, faziam parte da
equipe, que dirigia o Instituto, outras três pessoas: Felipe, um
jovem calvo, de voz possante e autoritária, também geneticista; um
senhor aparentando mais de cinqüenta anos de idade, voz rouca e pele
rosada que se apresentou como químico vindo da Áustria: Paul
D.;
e um biólogo de forte sotaque alemão, que usava óculos garrafais e
que era por todos, tratado como subalterno:
Otto k. Felipe tinha
uma ascendência indiscutível sobre os demais, seu olhar frio
denotava não aceitar nenhum tipo de contestação. Soube mais tarde,
embora não me lembre por quem, que Felipe era um dos tais bebês de
proveta, pelo que concluí que o Instituto não era tão recente como
pensara.
Foi a partir daí, se não me
trai a memória, confusa por todas essas sucessões de experiências
inusitadas, que comecei a sentir a paralisação lenta do tempo. A
princípio relacionei tal sensação ao ambiente exótico que
frequentava, mas no íntimo, certo alarme nunca me deixou convicto
disso. Nos intervalos de minhas tarefas, que não eram muitas,
meditava muito sobre isso e em minhas divagações pus-me a recordar
que, quando ainda drogado, eu também não tinha muito nítida a
percepção correta do tempo. Estaria ainda sobre os efeitos de
alucinógenos?
Para meu maior desespero Marisa
ausentou-se por vários dias, ausência essa que coincidiu com um
período de fortes chuvas que inundaram os arredores do Instituto, as
estradas e boa parte dos campos circunvizinhos. O tédio tomou conta
de todos nós, como se a borrasca trouxesse para o Instituto a
solidariedade que não havia nos dias de bom tempo. Quando o sol
retornou estupidamente abrasador, sugando lépido todo vestígio de
umidade, vários animais foram encontrados sem vida pelos campos.
Participei depois, da cremação de inúmeros cadáveres já
putrefactos, num grau de deterioração assustador, sem que nenhum
motivo aparente explicasse esse fenômeno Nesta tarefa passamos
grande parte da tarde e já anoitecia quando retornamos aos nossos
alojamentos. Como não conseguia conciliar o sono, após o jantar
resolvi, para espairecer, caminhar um pouco, aproveitando a noite
calma e tépida que clara, apesar da ausência da lua, se mostrava lá
fora. As estrelas espocavam tão brilhantes e densas que passei horas
olhando absorto o firmamento. A claridade prateava os contornos das
árvores e parecia fazê-las cintilar, como cintilantes se mostravam
as gotas de orvalho esparramadas pelo chão.
_
Noite deveras bonita – ecoou atrás de mim a voz barítono de
Felipe.
_ De fato – respondi, assim
que me recuperei do susto; absorto como estava, não tinha percebido
sua chegada.
_ Marisa, antes de partir, -
retomou, como se de repente a beleza da noite não o sensibilizasse
mais – entregou-me esta carta endereçada a ti, - disse passando-me
um envelope sem remetente.
– Ela se encontra na Alemanha
e parece-me que demora a voltar – concluiu sorrindo e devo anotar
que foi a primeira e última vez que o vi sorrir.
Vi quando ele se afastou e
continuei imóvel em meu lugar como se esperasse alguma outra
explicação.
Se a noite com sua majestade me
fez esquecer Marisa, um calafrio a trouxe de volta e alertou-me para
que não abrisse a carta. Perpassou-me a ideia de que alguma coisa
se romperia se eu assim o fizesse. Quedei-me abatido como se o
Empíreo fosse, a qualquer momento, desabar sobre mim.
VII
-
O
que dirias se eu te dissesse que a clonagem humana está bem mais
próxima do que imaginas? – disse-me, Felipe, zombeteiro.
_ Diria que ainda acho que é
uma possibilidade teoricamente viável, praticamente improvável e
eticamente inaceitável – respondi com certo desdém, insinuando
dar por encerrado, um assunto que já me aborrecia.
Felipe
segurou-me pelos ombros, tentando me manter sentado. Exasperado,
fulminou:
_
O que é ética? O que é a moral frente aos benefícios
inimagináveis para a humanidade? Será e já é o fim das rejeições
nos transplantes, a possibilidade de prolongar a vida humana e
acredites: O início de sua eternidade. Bradou quase raivoso.
_ Dizes incongruências, _
ponderei_ o que sei é sobre o possível envelhecimento precoce, como
já está acontecendo com animais clonados. E mais: Quem garantirá
que o clone perfeito será possível?
_ Ninguém garante nada até
hoje, Inácio. Podemos imaginar que um dia, a opção por doadores
recairá sobre aqueles geneticamente mais saudáveis e num futuro
próximo só este tipo de reprodução humana será viável. A
ciência nesse sentido dá passos gigantescos e a possibilidade de um
clone humano ser normal é infinitamente maior do que de uma criatura
inferior.
_ Tu falas como se a reprodução
humana já esteja sendo tentada...
_ O que dirias, repito, se eu te
disser que hoje dezenas, ou melhor, centenas de clones humanos estão
sendo engendrados?
_
Dissestes a palavra certa: engendrados, artificialmente humanizados.
Mas eu continuo achando uma aberração absurda e desnecessária. E
só gostaria de conhecer quem seriam as tais cobaias.
Ele pareceu engasgar-se. Depois
de uma pequena pausa retrucou: Não usaria este termo. Aliás, o
intercambio de material genético, de células embrionárias, não
chega a ser nada aterrador...
_
Não falo desse tipo de cobaia, – disse interrompendo-o – mesmo
porque, acredito que hoje em dia o dinheiro compra tudo, até a
consciência humana. Não, de fato, não seria constrangedor...
Refiro-me ao ser clonado. Ele que nada ganhou: Nem dinheiro, nem
fama, nem sucesso. Aquele que nada barganhou; que não viveu nenhuma
expectativa, terá que assumir a sua excrescência evolutiva sem
saber de fato quem realmente é. Se forem centenas como dizes, a
monstruosidade... Sim, assim a reputo, mesmo se todos forem
perfeitos, a monstruosidade à que chegamos é apavorante.
Felipe não mais me respondeu.
Acredito que tivesse uma porção de argumentos para isso, mas
desistiu diante de minha teimosia ou guardava seus trunfos para outra
ocasião. Suspirou fundo e como quisesse dar a entender que lastimava
minha ignorância, retirou-se sem se despedir.
Antes de virar-se em direção à
porta, perfurou-me com seus olhos gelados. Percebi, atrás daquela
máscara vítrea, um rosto sombrio de profunda agonia.
Esse diálogo aconteceu dias
antes do nosso encontro no jardim, quando, sorridente, me entregara a
carta de Marisa.
Na carta _que só depois desse
incidente a li_ Marisa, laconicamente confirmava que estava na
Alemanha e me comunicava, em linhas que não revelavam nenhuma
emoção, que se encontrava grávida de um filho meu. Terminava
dizendo que retornaria em breve.
Ao lê-la fui tomado de uma
estranheza quase imoral. Li como lesse uma página de ficção. Tudo,
na carta, soava falso, transmitia, às léguas de distância, uma
artificialidade que nada tinha de banal. Era, como todo o Instituto,
toda asséptica e fria. E Marisa, se algum dia me interessou, passou,
naquele momento, a não mais fazer parte de minha vida. Nem ela, nem
seus projetos e por extensão, os do Instituto. Resolvi, então, que
abandonaria aquele lugar o mais rápido que fosse possível.
“Comunicarei Felipe sobre a minha decisão, amanhã cedo, tão logo
termine meus preparativos para a viagem”, pensei de mim para comigo
e dirigi-me ao quarto para tentar dormir.
VIII
Naquela
noite que me pareceu interminável, revirei-me na cama até altas
horas da madrugada. Minha decisão; a carta de Marisa; o diálogo com
Felipe; tudo moía e remoia em meu cérebro sem que eu chegasse à
conclusão alguma.
Procurei achar uma lógica para
tudo aquilo. Parecia que me escapava, como uma flutuante bolha,
alguma coisa que era óbvia e cuja obviedade só eu não atingia. As
frases se sucediam repetitivas, tumultuadas, atemporais e quando me
parecia que o sono se aproximava, elas o faziam recuar, fazendo-se em
rápidos pesadelos, que me arrancavam da sonolência para de novo
despertar. Despertava suando frio. Minha cabeça latejava parecendo
que iria explodir.
Levantei-me, tão logo percebi
que clareava e tive a impressão que tinha permanecido, ali, estirado
na cama, por vários dias. Pensei em procurar de imediato Felipe, mas
foi ele que veio ao meu encontro, assim que abri a porta. Conclui que
já me aguardava do lado de fora.
- Inácio! – chamou-me
sibilamente, com voz de pesar – vim comunicar-te uma grande
tragédia: Recebi pelo rádio, agora a pouco, a notícia de que
Marisa se envolveu num grande acidente, quando se dirigia para o
aeroporto de Frankfurt.
- E ela, como está?
- Infelizmente, tudo indica que
não sobreviveu. O carro em que estava incendiou-se após o impacto
com um coletivo. As cenas que vi pela TV deixaram-me poucas
esperanças!
Deixei o Instituto na certeza de
que jamais retornaria. A notícia da morte de Marisa confirmou, sem
sombras de dúvida, minha indiferença por ela; diria até, a minha
aversão a uma pessoa indigna de qualquer pesar. Porém esse
sentimento, ou a ausência da qualquer afeição a uma pessoa que nos
era íntima, não revelaria, também em mim, uma falha de caráter?
Seria exequível
separar a pessoa
difamada da difamadora? Como poderia a minha pseudo simpatia
diluir-se na antipatia dela? Na verdade com sua frieza, eu me tornei
mais frio e no seu egoísmo refletiu-se o meu. Sem máscara, sem
eufemismos.
Não sei se enquanto ruminava
esses pensamentos, procurando no espelho da ausência de Marisa, os
reflexos de mim mesmo, se eu já vislumbrava as pegadas do pesadelo
final que já me batia à porta. Depois tudo ficou tão evidente, que
seria até constrangedor confessar que eu nada suspeitasse. Na
verdade todas as pistas tinham sido dadas e tenho que admitir que eu
apenas não as queria enxergar. Não me foi arrancado o olho à
revelia; deixei-me cegar.
Eu
não conseguia mais precisar com certeza o desenrolar dos fatos.
Tentando, porém, fugir do mundo que se tornara estranho e
assustador, refugiei-me neste vilarejo, antes inóspito, mas que com
o tempo foi criando em sua volta outras casas, outras vidas, outros
pesadelos.
IX
O
crepúsculo aurorrubro, moroso, não se fazia esvanecer, como se o
sol pressentisse que aquele diálogo se aproximava do fim. Inácio
foi tomado de uma súbita ansiedade que lhe embargou a voz, parecendo
lutar com as emoções de suas reminiscências ao evocar o desfecho
de seu pesadelo; pesadelo cuja materialidade se daria com a
reaparição de Marisa.
Ele nunca acreditara em sua
morte. Não porque não fora vê-la em seu ataúde; nem com certeza,
porque não queria acreditar nela. Mas, em seu íntimo, tinha a
convicção de que ela, Marisa, nunca morrera. E, por não querer
mais nenhum laço com aquele passado, para ele, já tão distante,
pensou simplesmente em tentar esquecê-lo.
Ele tornou a vê-la numa manhã
em que já tinha decidido se afastar do ar asfixiante da cidade,
convicto de que toda essa loucura que introspectaria como sua, se
ligava à loucura dos habitantes dos grandes centros. Intuía que só
o isolamento o redimiria; mas entre a vontade e o gesto, instalou-se
o inusitado e como tudo que é inusitado, o acontecimento lhe causou
mais espanto que incredulidade. Quando a viu, ela não o notou.
Caminhava apressada como sempre e Inácio movido por uma curiosidade
que chegava a morbidez, decidiu segui-la à distância, embora tal
precaução fosse desnecessária, pois com a pressa que ia, ela
jamais o perceberia.
Chegando ao edifício de
destino, Inácio hesitou em entrar. Faltou-lhe coragem, talvez.
Vagou, então, durante horas pelas calçadas, visitou bares, folheou
jornais. O pesadelo anunciado, que já penetrava suas entranhas,
agora lhe cortava o ar dos pulmões. Um início de vertigem fê-lo
decidir a tomar o elevador e enfrentar seus temores. Quando entrou na
antessala de um dos escritórios, notou uma porta entreaberta. Lá
dentro, Marisa examinava minuciosamente um garoto com idade
indefinível, em cujo semblante, Inácio constatou um ar de
imbecilidade. Quando a criatura dirigiu-lhe o olhar, ele sentiu-se
tomado de pavor. Recordou-se de sua odiada imagem no espelho do
hospital, quando ainda debatia-se com os fantasmas de suas
alucinações.
O menino era ele quando jovem,
mais num corpo que se desenvolvera muito além da sua cronológica
idade. Os anos passaram para aquela criatura numa velocidade bem
maior que a normal e o cérebro não acompanhara, com certeza, esse
desenvolvimento tão precoce.
Marisa sobressaltou-se ao sentir
a sua presença e atemorizou-se com ela, como alguém que é flagrado
em indisfarçável delito. Quando conseguiu se recompor, suas palavras
não encontraram eco nos ouvidos de Inácio. Ele já compreendera
tudo antes mesmo que ela tentasse lhe explicar... Se é que ela
tentara de fato isso.
Já no ônibus, de volta para
casa, Inácio não mais se recordava de como se retirou dali e nem as
reações de Marisa ou as do menino bestializado. Só veio-lhe a
mente o diálogo tido com Felipe e a palavra cobaia trespassaram-no
como um raio. Ele fora usado como cobaia e como cobaia Marisa tratava
a criatura que dele fora clonada.
O Instituto não existe mais;
foi abandonado por Felipe e seus funcionários, logo após o retorno
de Marisa. Suas estruturas, sempre tão asseadas e limpas, foram
tomadas pelo mato e pela podridão. Inácio jura que não mais se
recorda da sua localização, nem do paradeiro de nenhum de seus
antigos habitantes.
X
-
Ao
exorbitar-se em seu livre-arbítrio, a criatura estarreceu seu
próprio criador. Deus – quase gemeu Inácio, ao pronunciar essa
palavra – se existe, e de repente voltei a acreditar nisso,
abandonou sua criação. Em outras palavras: Deus pendurou as
chuteiras e a Terra está à deriva. O Ser Único, Imóvel,
Indivisível e Eterno, num ato de desprendimento, desgosto ou enfado,
deixou para a sua criatura a imobilidade que precede o caos.
O padre riu, sem transparecer
ironia, do paradoxo do mais tardio discípulo de Zenão. Poderia,
pensou, para contrapor-se e lhe demover de idéias tão estapafúrdias
citar Platão, seu demiurgo e seu caos inicial. Ou até apelar para a
teologia cristã, mas achava-se, aquela altura, cansado demais para
filosofar. E mais: o que diria a Inácio se suas próprias e mais
caras convicções diluíam-se como num passe de mágica?
Na verdade, deduzia, o que
Inácio não chegou a compreender era que a busca do homem eterno,
que destoava da asséptica sordidez do Instituto e da frieza de seus
gestores, podia vir a ser o trágico fim da humanidade; o que
destoava do que preconizara fanaticamente Felipe.
- Sua história é fantástica –
comentou já caminhando de volta a guisa
de despedida e de
longe completou: - Mas ainda prefiro acreditar que estou
enlouquecendo.
Não procuraria mais
explicações, e sim dormir e quando acordasse esse pesadelo teria
acabado.
Inácio sorriu aliviado. Seus
olhos perscrutaram o horizonte, onde os últimos raios solares
teimavam em não se apagar e ardiam como que congelados. Na paisagem
em volta, porém, tudo se consumia em trevas, sem um único som.
A Terra, estática, se
emudecia.*
*Conto Escrito em 2001
*Conto Escrito em 2001
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