segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Meu Tempo VII - Velho Lima

A luta do Velho Lima  e a Mogi provinciana de Paulo Francis


              As ruas molhadas, onde úmidos escorregam pés descalços, são as ruas que nutriam essa cidade litorânea de vida, comércio e contrabando. Andarilhos e pescadores não tinham ideia que outros as regavam também de sangue que tingiriam as águas de seu mar, a partir do ano de 1969.
                   As muretas que margeiam os cais de Santos e dão a impressão que cercavam a cidade contam histórias de um tempo de infâmia e horror. Em direção aos navios que abasteciam o burburinho de passos e vozes, camburões imundos, com bancos empapados de sangue, iam abastecer de cadáveres as lanchas e os navios que desovariam os corpos mutilados no mar aberto à centenas de milhas dali. Das vítimas dessa carnificina _sacramentado pelo AI – 5, em 13 de dezembro de 68_ fez parte um lusitano , codinome Leal, até hoje não identificado, que anos atrás em 1950, desembarcara no Brasil e três anos depois estaria em Mogi das Cruzes para organizar o Partidão e recrutar militantes nos sindicatos da região. Leal foi com certeza um dos primeiros a tornar-se mártir da Redentora . Depois dele as estatísticas desse horror teria seu número elevado à centenas, todos taxados como desaparecidos, por todos os cantos do Brasil. Segundo o livro "Brasil, nunca mais", foram 125, muitos enterrados em covas clandestinas. Dos desovados no mar não existem estimativas.

"Corações sujos":
                 Uma reportagem publicada no Diário de Mogi (agosto de 2003)_ e revela o quanto foi negligenciada (ou ocultado) o ativismo dos sindicalistas mogianos _ diz que de acordo com os arquivos do DOPS, havia sistemática interferência do Estado no cotidiano da cidade entre 1924 a 1983, quando delegados de polícia informavam, entre outras coisas, sobre as pessoas mais influentes e quem eram os comunistas de cada município. Nos livros publicados pelo historiador Walter Cruz Swessonn Júnior, citado na reportagem, não consta um único registro de prisão de militantes mogianos ou da região. E o mais interessante é que diz que "um dos poucos moradores de Mogi das Cruzes citados nominalmente nas pastas do arquivo do DOPS é o japonês Shozo Myasaki, preso em 24 de novembro de 1944" no episódio que ficou conhecido como "Corações Sujos", quando japoneses, que não concebiam a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial, assassinavam seus compatriotas que aceitavam o fato.
                  Para explicar melhor esse episódio transcrevo uma pequena parte da apresentação de capa do livro de Fernando de Morais "Corações Sujos", escrita por Hélio de Almeida: "Com a rendição do Japão às forças aliadas, em agosto de 1945, a Segunda Guerra Mundial chegara ao fim. Do outro lado do planeta, em São Paulo, nascia uma organização secreta japonesa, a Sindo Renmei_ ou Liga dos Caminho dos Súditos . Para seus seguidores , a notícia da rendição era uma fraude, um golpe de propaganda aliada para quebrar o orgulho dos japoneses em todo mundo ...de um lado "os vitoristas" apoiados por 80% da comunidade japonesa no Brasil (na época calculada em 200 mil), de outro "derrotistas" apelidados de "corações sujos" e que deviam ser eliminados." 
                    Para a Sindo Renmei o Japão e seu Imperador, venerado como um deus, jamais poderiam ser derrotados ou todos eles estariam mortos. Pelo que se pode constatar a prisão de Shozo Myasaki, só poderia ter ocorrido em 1947_ e não em 44 como consta na reportagem_ quando foram presos pelo DOPS 30 mil suspeitos de crimes e desses 381 foram condenados a penas de um a trinta anos. Em 1944, portanto, a tal organização ainda não existia. O imperador Hiroíto proclamou a sua não divindade em 1 de agosto de 1946, segundo Fernando de Morais.
                  A história de Lima e os mogianos presos nos anos 60/70, revelam a outra face da história, onde muitos mogianos foram detidos e presos por serem comunistas. Embora não haja, de fato, desaparecidos na região, a não ser Leal, um ofício do delegado Claudio T F de Oliveira, datado de 11/03/1970, revela os nomes dos condenados: Manoel Cândido do Nascimento; Josué Ribas de Morais; Realino Rodrigues de Oliveira; Antonio Peres e Manoel Benedito de Lima, "devidamente escoltados para o Presídio Tiradentes". Presos ficariam detidos sob ameaças por 45 dias. Esses fatos e muitos outros foram simplesmente ignorados pela reportagem local ou não foram devidamente investigados. 

A Mogi provinciana de Paulo Francis:
             Acho, então, necessário, aproveitando a oportunidade de resgatar e corrigir um pouco da história de minha cidade, avançar rapidamente pelo texto, fruto de minhas pesquisas, que retrata como era a vida da cidade, tirando o véu sombrio de suas elites, as mesmas que levaram Lima a prisão e ao exílio forçado. É quase um resumo, bem sucinto, lógico, de tudo aquilo que consegui colher no DOPS e na imprensa da época.
               Paulo Francis, jornalista e cronista da “Folha de São Paulo”, falecido em 1988, escreveu um artigo em 1984 que versava sobre o conservadorismo americano e citava Mogi das Cruzes como exemplo de uma cidade brasileira provinciana. Trotskista convertido ao capitalismo, odiado pela esquerda e também crítico da direita, rotulou assim que nós, naturais da terra, conviveríamos ainda com tal provincianismo por mais dezoito anos. Não consegui descobrir sua métrica para essa previsão. Em todo caso acredito que provincianismo por si só não explique o atraso político-cultural da cidade _que em certos aspectos ainda hoje persiste_  e nem era esse o teor do artigo de Francis. Mas era fato, nos anos 60, a ligação entre as autoridades policiais e a elite industrial da cidade; ligação essa recheada do mais chulo “vassalismo” que extrapolava inclusive o coronelismo regional.
              O certo é que a mando dos donos das indústrias mogianas, delegados de polícia prendiam todos aqueles que eles entendiam como comunistas, muito antes que tal arbítrio fosse institucionalizado pelos militares da Redentora; e desde 1957, época do primeiro registro que encontrei no DOPS que citavam nominalmente os sindicalistas da região e suas atividades, eles foram cadastrados e vigiados como elementos perigosos. Na greve geral de 1962, por exemplo, não houve repressão praticamente em nenhum estado da federação; na região, contudo, o movimento foi sufocado na véspera e seus líderes detidos por quarenta e oito horas, entre eles Lima, que na época , era membro do Conselho de Representantes da Federação de Trabalhadores nas Industrias Metalúrgicas. O noticiário local do único diário da cidade, O Diário de Mogi, viria no dia seguinte com a seguinte manchete: "Apesar da Greve, nossa cidade amanheceu calma", sem nenhuma referência aos sindicalistas presos. O que comprovaria a avaliação de Paulo Francis, feita vinte anos depois. 
                As ligações da elite mogiana com as autoridades não se restringiam apenas a policia, também estendia suas teias ao Legislativo local, recrutando agentes junto aos vereadores que se infiltravam nos sindicatos para solapar suas mobilizações antes mesmo que essas viessem a eclodir. Tal "dedo-durismo" foi responsável pela demissão de dezenas de trabalhadores ligados aos sindicatos locais, principalmente àqueles que tentassem montar chapa de oposição no próprio sindicato. É verdade que tal prática não era exclusividade de Mogi das Cruzes, nem tampouco da região, mas aqui o requinte dessa ligação era tanta que empresários mogianos chegaram a comparecer espontaneamente ao DOPS para inocentar pelo menos um desses agentes, Ivan Siqueira*, preso como agitador e filo-comunista (expressão usada nos fichários do DOPS, quando se referia aos sindicalistas). Na ocasião, segundo boletim do DOPS, acompanhado por Waldemar Costa Filho.**
                 Pelo menos 25 trabalhadores, entre eles 14 mogianos, foram indiciados por crimes previstos na Lei de Segurança Nacional em 29 de março de 1965, denunciados como comunistas, entre eles, Manoel Benedito de Lima. Após a efervescência do sindicalismo pré-64, que agitou Mogi e região, Lima é cassado como dirigente sindical nas primeiras horas de dezembro de 64 e acabaria preso por oito meses, anos mais tarde, em 1968. Em 1970 foi novamente detido no Presídio Tiradentes em razão de um assalto a banco ocorrido na cidade executado pela guerrilha, embora ele não fosse partícipe desse ato. Depois de quarenta e cinco dias foi solto. Sem conseguir arrumar um novo emprego, pois sua condição o impedia de qualquer emprego formal,  acabou tornando-se sorveteiro em portas de escolas. Seu filho relatou que ele fazia, palitos premiados para incentivar a venda. Deve ter sido um inovador neste tipo de comércio. Só foi anistiado em 1979. 

  • Ivan Nunes Siqueira: Um dos vereadores que mais ocupou uma cadeira na Câmara Municipal de Mogi das Cruzes (44 anos – 1958 a 2002). Radialista polêmico foi um dos que em 1962 encabeçou um pedido de cassação do então prefeito Rodolpho Jungers. Defendeu inúmeras greves, inclusive do funcionalismo municipal em 1961. Esse jovem, que se infiltrava nos sindicatos como informante dos empresários, classificado como agitador e filo-comunista no DEOPS, tornou-se o principal delator dos sindicalistas e responsável pela demissão de dezenas de trabalhadores e denunciando , junto ao DEOPS mais de 14 operários como comunistas e revelando as células da esquerda na região, juntamente com Waldemar Costa Filho. Seus nomes constam no cadastro do Departamento, abaixo daqueles que foram condenados com base na Lei de Segurança Nacional;
  • Waldemar Costa Filho: Prefeito da cidade por quatro mandatos era conhecido na década de 60 como “feitor” da COSIM (Companhia Siderúrgica de Mogi das Cruzes), onde trabalhava como Ghefe de Seção. Foi responsável pelas demissões de grevistas e componentes de chapa de oposição, foi acompanhante de Ivan na delação ao DEOPS. 

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