sábado, 17 de setembro de 2011

Meu tempo II - Infância

         
                                              
Atravessando um estacionamento (antigamente um posto de gasolina e antes, ainda_ recuperando cenas inebriadas pelo cheiro dos anos_ uma padaria de poucos fregueses) chego a uma ruela mal iluminada que me levará à escola de minha infância. Aspiro ao aroma adocicado de livros e cadernos; de seus papéis amarelecidos e da tinta fresca, úmida e pegajosa, que mancha o bolso de minha camisa tão branca onde se alojava a caneta de cuja pena vazava, lenta e intermitente, a tinta azul, densa e viscosa. Esses cheiros peculiares, umedecidos de aurora, vai aos poucos se impregnando na minha memória e a aviva: escrevi com essa caneta, agora me parece, todos os poucos anos de minha meninice e não consigo me recordar de quando larguei o lápis e a borracha (parece que nunca usei esses materiais) ao contrário, nitidamente vejo o tinteiro e o mata-borrão, aliás, tão requisitados, pois aquela caneta verde da qual tanto me orgulhava, deixava transbordar a tinta que penetrava em minhas unhas e manchava meu caderno de borrões. Tão pouco tenho a contar, mas não posso deixar de narrar no ritmo enfadonho e fugidio das reminiscências, as peças fragmentadas daqueles dias; correndo o risco, mais do que flagrante, de não ser preciso, nem verossímil. 
            Por exemplo, saltando já alguns anos, já que a memória fugidia insisti em pregar peças. questiono: em que ponto eu perdi a minha fé? Na métrica dos anos, talvez, foi a partir do momento que me voltei mais vorazmente aos livros, a princípio por me encontrar  inutilizado em uma cama por causa de um acidente... Depois, por me embrenhar em todas as leituras que até, então, não tinha tido curiosidade de ler. Tal incidente levou-me a ler a Bíblia inteira, primeiro porque na época, antes do acidente, não tinha condições de comprar livros (era, então, assíduo frequentador da Biblioteca Municipal, hábito este que adquiri de uma das minhas irmãs, T...., e os pegava emprestado quase todas as semanas, o que fiquei impedido por estar acamado e na verdade, tratavam-se mais de romances e aventuras juvenis);  segundo, por querer recompor a minha fé que já dava sinais de esmorecimento; contrapunha-a assim a outros textos não católicos. Fruto de minha briga diária contra a ociosidade forçada, depois do livro sagrado católico foi o Alcorão, que peguei de empréstimo de um amigo meu, que deu inicio as minhas especulações religiosas, o que alguns anos mais tarde me levaria para temas esotéricos: sufismo,  cabala, magias de pirâmides e de cristais, OVNIS e  outras bobagens mais. Tudo isso, quase sempre, lido as escondidas de minha família. Temia ou não queria ouvir nenhum tipo de admoestação.   Tempo depois, já no serviço público, voltei-me para a filosofia, encontrando Nietzsche, depois Voltaire, que me abriram um enorme campo de questionamentos e os devorei; seis anos depois voltei a ler novamente a Bíblia, desta vez por curiosidade literária já que me fascinaram suas epopeias construídas em centenas de anos por uma nação ainda em construção e com  e´um espírito mais crítico e aberto. Se bem que continuei frequentando a igreja por mais alguns anos. No  entanto, questiono hoje, 35 anos depois, se algum dia realmente eu tive fé? Voltando ao primário, onde uma religiosidade imposta comprimia-me com sua presença pesarosa. Os rituais religiosos, as orações levadas à exaustão, os momentos de penitências nas sombras das igrejas: isso tudo será que em algum momento tocaram-me inquestionavelmente?  Ou os parcos recursos, as pequenas humilhações no colégio que se tornaram agigantadas ante ao garoto que eu era, baniram do meu ser_ não, ainda, a religião opressiva daqueles tempos_ os pequenos rompantes de transcender-se? Transcendência essa ardorosamente procurada nos quartos de taipas gelados das noites de inverno e tórridos no verão, onde eu procurava me livrar dos pecados; como se a minha alma tão jovem fosse capaz de conter tantas máculas das quais, apavorado, vivia me penitenciando. Aliás, mais que fé em um Deus tinha pavor do Diabo, constantemente anunciado nos sermões dos frades e nas intermináveis novenas a Nossa Senhora; na igreja abarrotada de imagens de santos e de um Senhor morto envolto em mortalha roxa e medonha.
            O incenso que impregnava o ar, agora refresca como um bálsamo as minhas memórias. É seu odor que emana de minha infância, toda ela besuntada de sua densa fumaça. Vejo surgir as infindáveis procissões, festas religiosas e os jejuns intermináveis, valorizando ainda mais nossa anemia crônica. Meu lar também parecia ser um prolongamento desse êxtase litúrgico que me arrastava, quase sem resistências, para outras armadilhas: o colégio de freiras onde cursava o primário oferecido graciosamente aos alunos pobres, o catecismo, as irmandades religiosas infantis. O ar-compulsão-místico se espargia por tudo em nossa volta e nos obrigava assim, querendo ou não, a compartilharmos dele e desta maneira tornava-o natural e quase respirável. E arrastava o meu ser confuso e frágil, em um corpo tartamudo, magro e anêmico se escorregando pelas ruas estreitas e suas igrejas enormes e avassaladoras que apenas mudavam de endereço, mas se mantinham iguais. Deixei a religião e minhas crenças muito tempo depois, mas a alegria da beatitude já tinha me abandonado quando adentrei na adolescência, antes mesmo de meu malfadado acidente. Esse incidente foi um dique que separou essa fase de minha vida, levando-me às paragens mais amenas, deixando para trás um pouco de minhas feridas e traumas pré-adolescentes. Porém, o torvelinho de algumas outras pequenas tragédias ainda haveria de desaguar.   

4 comentários:

  1. A cada ano escrevemos nossa história de vida! Muito bom seu escrito!

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  2. Obrigado pela visita. Peço-lhe desculpas por não escrever antes, mas , por incrivel que possa parecer não conseguí acesso para isso.Obrigado mesmo, José.

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  3. Já estás desculpado, mesmo que tivesses comentado vc seria sempre um dos blogueiros preferidos para visita.

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