sexta-feira, 17 de setembro de 2010

UM PEQUENO ENSAIO SOBRE REBELDIA I e II


I - O PROJETO HUMANO

O projeto humano é uma concepção induzida por uma gama de experiências históricas imputada ao homem e por ele socializada, involuntariamente, como resposta à aventura da sobrevivência. A natureza rústica exigia respostas mais que imediatas, pois, no espetáculo da evolução, que se arrastava a passos de tartaruga, desencadeava-se um turbilhão de desafios para os quais o homem nunca esteve antecipadamente preparado. Na superação deles lançou mão de atributos físicos e mentais, que a priori não tinha, cujos mecanismos passou a dominar; distanciando-se assim de outras espécies estagnadas ou que se retardaram pelo caminho. Retardamento esse só medido em milhões de anos.
              Se esse adestramento físico e mental se deu ainda na aurora primeva do hominídeo, já ereto, até chegar à complexidade do ser que definitivamente “pensava”, como, então, aconteceu à transformação sutil da mente “verdadeiramente” humana que, entre outros atributos, raciocinava? Isso se deu quando o homem começou a fazer história, ou em outras palavras, quando começou a agir coletivamente. A partir daí o passo de tartaruga deu lugar a febril corrida de lebres. O poder laborativo do homo sapiens o enveredou, então, pelos caminhos da civilização.
              Marx nos ensinaria que o homem faz a história, não como quer, mas de acordo com as peculiaridades e condições específicas de cada momento histórico. Como, então, aconteceu essa transformação em cada ser humano, ou, evolutivamente na raça humana?
              Antes dele, Descartes pragmaticamente escreveria: “Penso, logo existo”, racionalizando assim o existir humano; com certeza, em algum momento mágico da aurora da humanidade, um abstraído hominídeo, fascinado com a constatação de seu labor, balbuciaria, entre grunhidos: “Eu faço” e a partir daí começaria a epopeia humana sobre a Terra e para o olhar humano não haveria mais horizontes impossíveis.

*

              O mundo, a partir da escrita, virou história; mas antes dela, já era história. Mesmo antes da escrita_ do neandertal assustado_ a linha que ligou o homem a civilização foi tecida com experiências paulatinamente assumidas. Somos produtos do avanço incondicional dessas experiências e de avanços a transpor: do pular de etapas. E essa história premida nas cavernas (vácuo de tempos não mensuráveis), só foi possível graças ao instinto que chamamos sobrevivência. Voltemos: somos parte de uma história nem sempre escrita, de avanços e recuos, que faz parte de um devir onde estamos incrustados. Somos experiências não perdidas de nós mesmos. Somos alguma coisa de coisas que nós mesmos construímos. Somos filhos da nossa rebeldia.    
            Se analisarmos o processo evolutivo da raça humana, através de suas descobertas e invenções, veremos que existe uma cronologia onde três estágios se destacam, de maneira distinta:
           I – Descobertas extemporâneas ocorridas pela observação de fenômenos naturais: o fogo, por exemplo;
          II – Invenções devido às necessidades básicas e imediatas: a habitação, o uso da pedra lascada e os primeiros instrumentos de caça;
          III – Invenções devido à criatividade: a roda e a escrita.
      Com certeza, da primeira à terceira fase transcorreram-se centenas de milhares de anos. O abandono do nomadismo proporcionou o pastoreio e a agricultura__ as primeiras formas de acumulação de produção__ e a invenção da roda e depois, da escrita cuneiforme, fizeram transpor o limiar do agrupamento nômade à civilização, com a sistematização da vida grupal, agora possível. 
           Penso que a mente capaz de dar ao indivíduo a consciência de si mesmo, fez parte de uma evolução que se deu antes mesmo de deixarmos para traz os nossos parentes mais próximos; no entanto, o raciocínio lógico, deve ter se dado quando passamos a caminhar ereto. Pesquisas recentes com chimpanzés demonstraram que eles (como os elefantes, que além de memória, cultuam e sofrem a morte de seus pares e por essa perda se deprimem) se reconhecem no espelho, um passo decisivo para o autoconhecimento. Ao abordar esse assunto em seu livro “Da Natureza Humana” (1972), o sócio biologista Edward O. Wilson, afirmou que evidências adicionais sugerem que as formas mais estereotipadas do comportamento humano são características dos mamíferos, “e ainda mais especificamente, dos primatas, como o previsto na teoria da evolução”. A teoria darwiniana da evolução é hoje plenamente aceita pela comunidade científica; o que não era, por incrível que possa parecer, há trinta anos, ou quando “Da Natureza Humana” foi escrito, nos finais da década de 60.
        Câmeras de TV flagraram recentemente uma fêmea de orangotango que passou a andar sobre os dois pés, recusando-se a abandonar a forma ereta. Por acaso não estaríamos presenciando a evolução retardatária dos símios? O que, se for verdadeira, dar-se-á bem mais rápida que a dos hominídeos, nossos ancestrais, devido ao seu contato com os humanos e sua cultura. Apesar de essa hipótese parecer absurda, ela não a é para a sociobiologia, nem para os evolucionistas. Nesse mesmo livro, Edward Wilson investiga o altruísmo em evolução em certos primatas, como os babuínos, (socorrem seus familiares idosos dando a eles parte de sua caça; o que não era feito nem por comunidades humanas primitivas, como os esquimós que, devido as vicissitudes do seu habitat: frio extenso, geleiras e longas caminhadas por dias longos e inóspitos, abandonavam os seus) que os aproximam cada vez mais dos seus parentes humanos, ditos civilizados.
        Cabe, então, perguntar: Por que teria a raça humana o privilégio único de evoluir mentalmente? Embora não seja este o nosso tema, hipoteticamente poderíamos perguntar: Quais repressões seriam impostas a esse novo animal racional?
        A resposta, de novo, pode estar no próprio homem.

                                                                                      *


                           II - OPRESSÃO  E REBELDIA

                       O ser humano é condicionado por imposições e influências, via família, comunidades políticas ou religiosas, pelo Estado__ o grande aparelho coercitivo e repressor __ e, também, carregado geneticamente de valores e fardos. Aos poucos tudo isso moldou sua personalidade, adaptando-o a um “modus vivente” que antes lhe era estranho e repulsivo. Essa estranheza só lhe é perceptível em nuances, como se alguma coisa estivesse fora do lugar, sem poder de fato mensurá-la ou interiorizá-la. Embora passível tal acomodamento, esse não se dá sem resistências, traduzindo-se em rebeldias ou em concessões que variam de indivíduo a indivíduo, de acordo com as particularidades de cada um e seu grau de desenvolvimento intrínseco: seu ambiente de trabalho (condições econômicas e técnicas), seu ambiente social (espaço geográfico, origem e vicissitudes da vida) e seu ambiente psicológico (emoções e sentimentos__ causa e conseqüências dos anteriores) e, naturalmente, o que lhe foi herdado geneticamente.
              Essas concessões, embora possam parecer naturais, são o ceder às repressões; muitas vezes imprescindíveis para o amadurecimento do indivíduo; em outras, são recalques que inibem seu próprio desenvolvimento. A personalidade assim dessa maneira “adquirida” só se processa com distorções.                         
              Evitarei usar a expressão “caráter”, pois talvez ela não traduza o produto das alterações psicológicas que ocorrem durante a breve vida do homem sobre a Terra, mesmo porque não é sob esse ângulo que me interessaria abordar e sim, o processo evolutivo da mente que se tornaria aos poucos e gradativamente, complexa e ímpar, ou seja, “humana”. O caráter seria apenas uma das características dela. Como escreveu Philip Rieff: “Caráter é a atividade de modelagem restritiva das possibilidades”. Seria a negação da rebeldia, se esta dele não fizesse parte.
              A rebeldia, portanto, faz parte da essência humana, assim como os sentimentos de amor e ódio e como eles, pode ser reprimida ou exaltada. Se combinados podem levar à loucura ou à morbidez. Nem sempre, porém, embora latente em todo ser humano, é percebida por outrem, nem mesmo pelo próprio indivíduo, pois as facetas de cada um, para serem taxadas de anormais, necessitam de um grau de estranhamento cujos contornos não são facilmente delineáveis. Não que a rebeldia seja um sintoma patológico, ou insano, muito pelo contrário, é a sublimação de um estado de saúde mental e psicológica; porém, reprimida por uma sociedade autoritária e opressora cujas engrenagens foram citadas anteriormente, produzem recalques psíquicos nem sempre satisfatoriamente superados.
              O caminho da maturação ou da aceitação dos moldes sociais é o mesmo da supressão, involuntária ou não, da própria rebeldia. O homem chega à idade adulta, parcial ou totalmente, domado; domesticação essa nem sempre plenamente aceita ou assimilada e que nem se completa algum dia. Essa linha de tensionamento pode provocar a qualquer tempo o seu rompimento, pois a rebeldia prevalecerá sob outra máscara: a da abnegação. Abnegação ao conservadorismo, a sujeição social e/ou ao “status quo”. Essa frágil armadura, porém, poderá ser rompida de uma maneira nem sempre pacífica.  

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              Realçar a rebeldia e deslocá-la de um simples ato de conduta ou mero traço de personalidade para a complexidade das primeiras combustões que deram início à epopeia humana pode parecer à primeira vista algo despropositado e teoricamente irrelevante. Acho, porém, que a rebeldia, como outros sentimentos que foram "introspectados" nos recônditos da mente humana ainda primitiva, foi responsável pela faísca que provocaria a avassaladora chama da inteligência, ou seja, do pensamento lógico: é um sentimento que traduz uma insubordinação aos limites pré-estabelecidos a qualquer determinismo genético ou social, ou seja, insubmissão aos obstáculos que se apresentam no caminho do homem e de seu desenvolvimento. A rebeldia, assim como a sua negação, o medo da morte, são intrínsecos à problemática da evolução humana e ponto de inflexão que possibilitou ao homem o seu distanciamento intelectual para com (ou em relação à) as outras espécies e a própria alavanca que catapultou o despertar da razão.

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