segunda-feira, 28 de março de 2011

DONAIRE


A guisa de introdução...


               Achei, há quatros anos, numa livraria de livros usados, popular “sebão”, em São Paulo, a obra “Dom Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes. Já havia lido na adolescência um exemplar do mesmo livro, porém tratava-se de uma edição compacta, quase um resumo. Este, ao contrário, era robusto e traduzido, com certeza, muito antes daquele.
             Toda releitura nos leva a achados surpreendentes e desta vez me deparei com a palavra “donaire”, por mim completamente desconhecida. Achei-a fantástica!
             Tive que consultar vários dicionários para encontrá-la e quando consegui, achei o seu significado muito mais surpreendente. Com ela, naquele velho dicionário, encontrei outros verbetes também, nos dias de hoje, quase desconhecidos.
              Bom, com eles veio-me a inspiração para o presente conto que tem como cenário a Europa do século XVI e as intrigas da época...   


DONAIRE

I

                 O índio abobadou-se por longas horas, contrastava-se com o fidalgo que ao seu lado, irascivelmente, enchia de injúrias os negrinhos que brincavam e cheios de indolências fingiam não o ouvir.
           Dom Clemente de Àvis bolinava-se agora e, espreguiçando-se, tratava desse modo de afastar a pasmaceira daquela tarde dolente que o mar lambia preguiçoso, quietando, enfim, com a sua ira, cansado de ralhar com as crianças. Abriu as braguilhas e pôs a se coçar avidamente. Tentou depois, quando a única negrinha do grupo se aproximou, colocá-la no colo, onde seu falo apresentava intumescido. O olhar de ódio do mais velho dos meninos o fez desistir da empreitada. O índio, deliciado, não conseguia conter o riso.
                Dom Clemente, de súbito, soergueu-se nos seus cento e trinta quilos: a contemplação do mar que se avolumava azul à sua frente, o fez lembrar da nave que já se avizinhava do porto e que traria a bordo uma encomenda da Escócia. Como se tratava de contrabando que viajara em nau francesa, por engano, até Portugal, convinha recebê-la bem além da embocadura do Tejo, pois, dificilmente se atreveriam a atracar nos cais.


II

             Os remos do barco venciam, pelas mãos vigorosas de Juí, as águas pesadas do grande rio. A imobilidade do barco era tanto ilusória quanto traiçoeira e o esforço titânico do índio só era perceptível nos seus músculos tensos e no suor que empapava seus cabelos. Remando quase sempre contra a correnteza, o navio, tão perto, parecia nunca chegar.
                Labuta em vão. Alegaram que o francês não se encontrava na nau. A frustração de Dom Clemente traduziu-se em impropérios ininteligíveis. Na verdade, o francês preferiu não discutir o assunto na frente da tripulação já bastante apreensiva por encontrar-se em águas não amigas e, muito menos, perto dos olhos cúmplices e ávidos do capitão.
                Um negro passou-lhe um bilhete assinado por Pierre de Petit, onde este sugeria um encontro para o dia seguinte, numa estalagem a poucas milhas do porto. Lá, frisava o francês, discutiremos nosso negócio.
              _ Os negrinhos não me servem de nada e a "mucambinha" é para mim um estorvo – resmungava o fidalgo, no barco que retornava – Para ele, com certeza, será uma festa!
             No rosto do índio cravou-se o indefinível. Talvez por seu comportamento servil para com o fidalgo, recusava-se a exprimir toda a sua repugnância. Manteve-se calado por todo o resto do percurso. Aguentava a fanfarronice do lusitano como se não a ouvisse; mirava as águas com enfado, os olhos perdidos em alguma margem inalcançável.


III
        
        Já fazia mais de quatro horas que os dois homens tagarelavam, a mesa apinhada de comida e bebida, sem abordarem o assunto que os trouxe àquela estalagem.  Primeiro, o francês alegou que o recinto estava muito cheio e ponderou:
            __ Tenha calma, Dom Clemente; vamos bebericar alguma coisa. Dizem que o vinho daqui é excelente! Gostaria de prová-lo. E vamos comer, estou a morrer de fome. Não se preocupe com a despesa: eu pago.
             Depois apareceram amigos e conhecidos do fidalgo e este, cedendo à prolixidade do francês em seu português carregado de sotaque, deixou de se preocupar com as horas. Só quando sentiu os olhos turvados e percebeu serem os únicos no recinto, inquiriu quase que suplicante a Pierre de Petit:
           __ E, então, caro Pierre, podemos conversar sobre o que nos interessa?
           __ É, de fato já passou da hora. Bem... Garanto-lhe, Dom Clemente, o produto é legítimo Glenfiddich. Poderá conferir lá na nave: são 10 caixas com 12 garrafas intocadas, acomodadas em madeira de lei, em gavetas acolchoadas em camurça vermelha. Valem uma fortuna! O senhor não imagina os riscos que corro aqui em Lisboa! Para não chamar a atenção coloquei os engradados em caixas rústicas, daquelas onde se encaixotam bacalhau e gravei na primeira delas, em cima: “Donaire de Petit”. É só procurar pelo negro Timóteo; já o avisei que o senhor irá buscar a mercadoria. E o senhor, o que me oferece?
            “Donaire” – pensou Dom Clemente – “deve ser algum nome afrancesado. Vou sugerir à minha filha que está prestes a ser mãe”. Teria uma neta, ele tinha certeza disso! Lembrar-se-ia de anotar esse nome em sua caderneta de recados. E, dirigindo-se ao francês:
          __ Caro Pierre de Petit, - respondeu com ares de importância – ofereço-lhe três negrinhos ainda jovens... O mais velho ainda não completou 18 anos, e uma negrinha de treze, que lhe dará uma fogosa mucama. Nenhum deles passou por maus tratos. O senhor poderá também conferir... Mercadorias de primeira.
           O índio, que se mantinha em pé ao lado dos comensais que agora riam ébrios de vinho e pelo jeito não se levantariam da mesa tão cedo, também sorriu enquanto matutava: “Seria bom procurar o tal Timóteo”. Cochichou ao lusitano:
         __ E o nosso trato, continua valendo?                                                      
          À indagação de Juí, Dom Clemente, sem pressa de responder, fitando algum ponto perdido no espaço e procurando manter-se com alguma lucidez, pois sua mente já dava sinais de entorpecimento, recordou-se da promessa, cinicamente feita, de dar-lhe a liberdade se este lhe arrumasse um escravo que o substituísse. O índio foi além e trouxe-lhe os quatros, de cuja origem Dom Clemente jamais perguntou, apenas comentou sarcástico:
       __ Quatro crianças? Está querendo que eu me atole em dívidas para alimentá-las?
       Acabou impingindo ao índio mais três anos, sob o pretexto que teria que esperar os negrinhos crescerem para poder lhe substituir. Juí assentiu a contragosto, mas impôs condições: Dom Clemente teria que facilitar sua empreitada além-mar, garantindo seu sustento na viagem e esse acordo estaria rompido se, antes disso, Dom Clemente se desfizesse dos negros.
         Dom Clemente fitou novamente o índio e admitiu que, com o tempo, havia se afeiçoado ao selvagem. Dar-lhe a liberdade era o mínimo que poderia fazer por aquele serviçal que desde que fora comprado no mercado de Lisboa, nunca lhe dera transtorno algum e principalmente agora que a Igreja, capitaneada pelos Jesuítas, esboçava sanções àqueles que mantivessem selvagens brasileiros em cativeiro.
          __ Tem minha palavra. Amanhã à tardinha partirá um cargueiro espanhol rumo ao Brasil e está arrumado para o seu embarque. Antes, porém, iremos buscar a minha encomenda. _E, voltando-se para Pierre de Petit: _ Como faremos à transação?
           O francês, que já cochilava copiosamente, bocejou várias vezes até tomar consciência de que estava acordado e que indagavam alguma coisa.
           __ Como será a troca? – insistiu Dom Clemente, com raiva.
           __ Logo que escurecer, amanhã, leve os meninos até nossa embarcação. Assim que subirem a bordo, Timóteo liberará as caixas, sem problema algum – respondeu e apontando para o índio, sem o olhar: - Peça a seu criado que me conduza até os meus aposentos; já é tarde e estou exausto!
           Os olhos miúdos do lusitano não conseguiam mais se manter abertos. Imagens cambaleantes voltaram a tomar conta de sua mente. Quis levantar para se despedir do outro, mas literalmente, estatelou-se sobre a mesa.
                                                    

IV

            Dom Clemente se exasperava andando de um lado para outro pelo porto, na tarde já avermelhada de crepúsculo. A bebedeira da noite anterior ainda latejava em sua cabeça. Sentia-se fraco e ainda bastante enjoado. Que bela ressaca, sim senhor! Há mais de duas horas esperava por Juí que fora levar os escravos até o navio e deveria ter já retornado com suas caixas. A conversa tida com Pierre na estalagem deixou-o receoso de voltar à nau francesa e com certeza passaria mal se embarcasse enjoado como estava, no barco com Juí; além disso, as águas estavam mais revoltas que de costume e seria uma temeridade enfrentá-la num pequeno barco tão lotado. Juí, solícito, prontificou-se a fazer tudo sozinho.
           O fidalgo teve que impacientar-se por mais uma hora até ver ao longe o negro Timóteo vindo em sua direção, a gesticular! Dom Clemente enfim, mais aliviado, encaminhou ao encontro do recém-chegado, sem disfarçar sua estranheza ao vê-lo. “Onde se metera o selvagem?” – pensava.                                                     
        __ Dom Clemente, Dom Clemente? Vim procurar o Senhor Petit. Sabe se ele ainda se encontra na estalagem? Nossa nau foi apreendida, retida pela polícia portuária. E procuram o Sr. Pierre.
         __ E Juí? – perguntou, sem responder a Timóteo – por que não veio contigo? Detiveram-no, também?
        __ Não, meu senhor, ele conseguiu se safar antes que os homens chegassem. Deve ter escapulido para a nave espanhola com os meninos.
         Dom Clemente sentiu-se nocauteado. Seus olhos crisparam de estupefação e raiva. “Maldito selvagem” – resmungou.
        __ Preciso me apresar – continuou Timóteo – Olhe! Os homens estão chegando – apontou em direção aos cais e saiu em disparada – Tenho que avisar o Sr. Pierre.
              Antes que pensasse também em fugir, Dom Clemente foi abordado por um dos oficiais da alfândega:
         __ Dom Clemente! – gritaram às suas costas – Espere!
         O fidalgo gelou, sentindo suas pernas bambearem, mas o oficial continuou:
         __ Receba, através de nós, as graças de sua Majestade Felipe II, soberano de Espanha e Portugal! Graças ao aviso que recebemos do índio, seu criado, conseguimos deter os franceses antes que levantassem âncora.
          ­­­­__ Não sei o que dizer – suspirou Dom Clemente, entre aliviado e espavorido – Estou envaidecido... Mas, digam-me: Onde deixaram o índio?
          __ Partiu, como o senhor queria, a bordo do cargueiro espanhol. Ah! Pediu-nos que lhe agradecêssemos pelo donaire. Estava felicíssimo com os presentes.
         __ “Donaire!”, resmungou Dom Clemente. E eu sempre pensei que o selvagem fosse beócio.
                                                                                               
                                                                                                           José Araujo

2 comentários:

  1. Quem se sentiu beócio agora foi eu com meus versos toscos. Sua literatura é realmente muito boa. O sr. deve ter lido muito Machado de Assis e outros monstros. Foda... Até os próximos posts.

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  2. Caraca amigo...Maravilhoso .beijos achocolatados

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