quarta-feira, 18 de maio de 2011

MEU TEMPO

MEU TEMPO

I

           FRANJAS E JANELAS


           O tempo tem franjas e janelas. As franjas, um emaranhado de idas e vindas, carregam as multifacetações: os fragmentos dos dias em horas imensuráveis que escorrem e se dividem em facetas que compõe toda a nossa vida, sem classificá-la como antes e depois.  As franjas se abrem como miríades ávidas em se multiplicarem nas cópulas dionisíacas da fertilidade intemporal da mente com seus sonhos impossíveis e suas aspirações ingênuas e, nem sempre, levam-nos a algum lugar. As janelas nos levam ao passado perscrutado em sinais e cicatrizes ou ao futuro prognosticado pelas marcas indeléveis do presente. Como o futuro não me interessa, tentarei auscultar o passado em suas franjas, ciente da possibilidade de não conseguir desemaranhá-las do presente e confundir cronologicamente os fatos mais próximos daqueles mais distantes, pois a mente prega-nos peças revelando sem cessar situações que poderiam ou julgaríamos serem diferentes. Quase sempre, quando tentamos reencontrar nossa infância, nos vemos em volta com cenas estereotipadas de nós mesmos. E mesmo num passado não muito longe, o que éramos não é exatamente o que somos. Embora não provoquemos tais situações, o ambiente em volta parece conspirar contra nós e nesses momentos sentimos o quanto estivemos sozinhos e como foram pueris nossas tentativas de conservar certas amizades e hoje, ao tentarmos recuperar dos ecos das cavernas de nosso interior nossas lembranças mais suaves, a frustração nos abate, pois aquelas que nos vêm são sempre as que mais nos doem. O ontem, premido pela nossa fragilidade e dependência paterna expôs suas marcas no que hoje somos ou tentamos ser. E é ainda tão frágil nossa resposta para a vida que está passando e que não conseguimos ainda segurá-la nas mãos, que nos sentimos incompletos __e isso nunca nos deixará. Ontem, hoje e amanhã são faces de um todo que só se completará aos olhos alheios, quando nossa vida for apenas uma miragem. Por outros olhos, então, ela terá sentido: começo, meio e fim e esses dirão, mergulhados em suas próprias incompletudes, que nós fomos alguém. Essa intangibilidade é que me deixa confuso e vacilante; não sei se saberei descrever esse tempo perdido em imagens distorcidas ou rasgado por um destino que se achou indeciso. Talvez esse passado perdeu-se de propósito, sabendo-se tempo inócuo e irrelevante, puramente descartável, sabiamente cônscio de nada representar. Porém, se o exorcizo de meus sonhos e o esqueço como se esquece dum cigarro no parapeito de uma janela jamais aberta, retorna como pesadelos, possuindo-me como se cobrasse sua morada. Nesses sonhos esse passado se faz irreverente, sem todo o “glamour” que aparentava ter. Vago e fugidio como qualquer prosaica miragem. Tento, então, evocá-lo na vigília monótona de meus dias e nesse exercício nem sempre sóbrio de devaneios, tento resgatá-lo sabendo não poder exigir prova alguma, nem me dar, se falhar, desculpa alguma. Não sei também se saberei descrever as ruas, ruelas e becos onde se emolduraram suas imagens incrustadas em mim como camafeus esculpidos na alma e esquecidas talvez nos parapeitos de outras janelas já carcomidas por tantas recordações.  (Minha mente entorpecida não consegue acompanhar o fluxo das coisas. Como se as cenas, os sons e o próprio tempo não se combinassem e estivessem em constante falta de sintonia, vozes e ecos se confundem com o silencio completamente fora de hora e lugar. Anestesiado tento sair deste torpor fixando meu olhar em alguma coisa tangível. Porém, é em vão).                                
            Os cheiros e os odores das franjas do passado me vêm em pinceladas; os pigmentos de suas tintas ao juntarem-se nem sempre formam um desenho viável ou descrevem alguma sequência lógica. Nos recônditos do nosso cérebro, antes das imagens, sempre tênues e vacilantes, são os cheiros que nos abrem aos poucos os véus da paisagem. Parece ser o olfato, quando nossa mente regressa lentamente no tempo, a chave que abre o mecanismo oscilante da memória. O que se perde em precisão se ganha em intensidades, saudades e nostalgias, pois os fatos são recompostos como um todo sem corte, porém fragmentado em seus odores _ falta-me mestria e talento para absorvê-los e descrever as cenas com fidelidade. Admiro os grandes escritores ao descreverem em minúcias os cenários de suas fantasias e admito ser, mesmo na ficção, um exercício árduo. Não é esse, no entanto, o meu propósito e só espero que não me escape, por desleixo ou imperícia, todo o sentido de meus devaneios.
            Porém é necessário esse resgate: moldura e época; paisagem e passado; viagem e peregrinação. Enfim, fotografias de fatos que me cobram suas receptações.





3 comentários:

  1. Admiro você, a forma como escreves e descreves...Aplausos. beijos achocolatados

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  2. Passando pra te desejar uma linda semana.beijos achocolatados

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  3. Quem dera Freud estivesse certo com sua teoria que inferia o recalque como mecanismo de defesa... parece muito mais verdadeiro que não há critérios para deleção ou armazenamento de dados. Sem pistas, podemos esquecer momentos bons ou ruins. Uma cena mal codificada e tudo se esvai. Sem falar em nossa percepçao moldando nossa memória... eu só queria reviver o que nunca, de fato, vivi...

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