(Este
texto, escrito em 2005, foi subtraído e atualizado de “Meu Tempo”,
cap.IV)
Lendo Franz Kafka, percebi
que minha relação com o jugo paterno, embora sem a complexidade
extraída pelo autor de “Carta a meu pai”, tinha nele uma
similaridade difícil de passar despercebida.
Sem ter a capacidade
psicológica kafkiana, nem seu talento em descrever e perceber todo o
universo dominador do pai, eu pude constatar que tal estranhamento
não era privilégio meu. A imagem que tenho de meu pai hoje
_substrato de sua presença tantas vezes, para mim, alheia_, foi se
recompondo em pedaços nem sempre precisos e mal delineados
carregados pelas deformidades de minha infância cheia de tremores,
até se formar o ser por qual passei a ter bastante carinho.
A vida, acredito, é mais
que religião, filosofia e ciência, mas não podemos ou não
conseguimos abstrairmo-nos delas. Pus-me então a reavaliar a figura
de meu pai. Ele conseguiu alfabetizar-se apenas na adolescência e,
imbuído de um pragmatismo nunca elaborado, pôs-se a ensinar o que
sabia a minha mãe e a seus irmãos. Formou-se, depois de aposentado,
já com quase sessenta anos, no 2º Grau. Tivemos todos nós, sua
família, o privilégio de assistir, mais do que orgulhosos, a sua
formatura.
Não apenas esse fato é digno de
admiração. Sua concepção religiosa e de vida, por exemplo, com
palavras simples e descompromissadas, com certeza deram-me o
arcabouço cético que me fez, por outros caminhos, o que hoje sou.
Lembro-me como sua noção de livre-arbítrio_ isenta de sofisticadas
filosofias_ se consubstanciava em sua luta para a sobrevivência de
sua numerosa prole (teve dez filhos). Sua relação com milagres
sempre me chamou a atenção. Quando ministro da eucaristia, da qual
se dedicou vários anos de sua vida após se aposentar, seu lema era
o seguinte: “Se Deus não socorreu seus mártires, por que nos
socorreria”, quase repudiando assim as intermináveis promessas de
minha mãe aos seus santos. E, às beatas que o procuravam para que
levasse ao padre imagens de santos danificadas e depois de coladas,
para serem novamente benzidas, e que ele uma a uma as quebrava
deixando atônitas as crentes senhoras, pois para ele, imagens uma
vez quebradas, tornavam-se apenas vulgares estatuetas. Calcava assim
sua visão cristã, toda desprendida de qualquer magia terrena: sua
fé começava com a vida, era sua vida e depois, a recompensa de
outra vida além da morte. Quase um voltairiano _ embora católico _
sem nunca ter lido Voltaire.
Essas reavaliações tardias assustam-me agora
como personagem intruso e já me vendo descartável, no burburinho de
inocentes alegrias que ouso e presencio, aqui em minha casa, de meu
filho e seus amigos, o quanto na minha adolescência repudiei a
figura paterna e a possibilidade_ embora eu me ache participante e
simpático em sua vida_ de ele ter em relação a mim as mesmas
repulsas que cultuei equivocadamente em relação a meu pai. E aqui
termina a similaridade com Kafka.
Penso, agora, como é estúpido nos acharmos
senhores de fatos e consequencias e como somos patéticos em tudo
isso se não aprendermos, nas introspecções fortuitas dos anos, com
os mesmos defeitos que ousamos um dia criticar. Mesmo porque só
depois de tantos anos consegui dar ao meu pai seu devido valor,
reconhecendo, entre tantas outras coisas, que só graças a ele
posso hoje gabar-me de uma “pseudo” intelectualidade, pois me deu
condições culturais que ele nunca teve e nunca ousou para si
reivindicar.
*
Existem várias maneiras de percebermos que estamos
envelhecendo. Uma delas é quando começamos a citar com certa
frequência os nossos pais como exemplo; outra é notarmos que
estamos diminuindo nossos sonhos e aumentando nosso egoísmo; uma
terceira, menos profunda, é quando nossos novos colegas começam a
referir-se a nós como “senhor” e outra mais, quando morrem
nossos amigos e nossos pais. A que mais dói é com certeza, esta
última, talvez porque com o passar dos anos acabamos ponderando que
a vida é finita e lépida demais, e, menos exigentes, passamos a ser
mais suscetível ao avançar da idade.
Parece que ainda ontem escrevi um pequeno poema
sobre meu avô paterno. Ele morreu aos oitenta e nove anos não
querendo acreditar que o homem chegara à Lua. Em sua mente singela e
crente, tal feito seria impossível, senão “um dia um homem vivo
chegaria ao Céu”. Era um tempo em que nós, crianças,
imaginávamos que os velhos já nasciam velhos (com suas crenças e
superstições) e não acreditávamos_ por mais que quiséssemos_ que
um dia iríamos crescer.
Ah, gente! Lindo, lindo, lindo totalmente lindo demais...amei os indicadores de envelhecimento (rs)! Querido Zé que sutileza para lembrar os 'detalhes da alma' que nesta nossa vida são as únicas coisas que levamos até o fim de nossa existência.
ResponderExcluirObrigado pelos comentários. Adorei acha-la aqui!
ResponderExcluirLindo demais! ����������������
ResponderExcluir