domingo, 21 de agosto de 2016

Meu Tempo IV - Meu Pai

(Este texto, escrito em 2005, foi subtraído e atualizado de “Meu Tempo”, cap.IV)



Lendo Franz Kafka, percebi que minha relação com o jugo paterno, embora sem a complexidade extraída pelo autor de “Carta a meu pai”, tinha nele uma similaridade difícil de passar despercebida.
Sem ter a capacidade psicológica kafkiana, nem seu talento em descrever e perceber todo o universo dominador do pai, eu pude constatar que tal estranhamento não era privilégio meu. A imagem que tenho de meu pai hoje _substrato de sua presença tantas vezes, para mim, alheia_, foi se recompondo em pedaços nem sempre precisos e mal delineados carregados pelas deformidades de minha infância cheia de tremores, até se formar o ser por qual passei a ter bastante carinho.
A vida, acredito, é mais que religião, filosofia e ciência, mas não podemos ou não conseguimos abstrairmo-nos delas. Pus-me então a reavaliar a figura de meu pai. Ele conseguiu alfabetizar-se apenas na adolescência e, imbuído de um pragmatismo nunca elaborado, pôs-se a ensinar o que sabia a minha mãe e a seus irmãos. Formou-se, depois de aposentado, já com quase sessenta anos, no 2º Grau. Tivemos todos nós, sua família, o privilégio de assistir, mais do que orgulhosos, a sua formatura.
Não apenas esse fato é digno de admiração. Sua concepção religiosa e de vida, por exemplo, com palavras simples e descompromissadas, com certeza deram-me o arcabouço cético que me fez, por outros caminhos, o que hoje sou. Lembro-me como sua noção de livre-arbítrio_ isenta de sofisticadas filosofias_ se consubstanciava em sua luta para a sobrevivência de sua numerosa prole (teve dez filhos). Sua relação com milagres sempre me chamou a atenção. Quando ministro da eucaristia, da qual se dedicou vários anos de sua vida após se aposentar, seu lema era o seguinte: “Se Deus não socorreu seus mártires, por que nos socorreria”, quase repudiando assim as intermináveis promessas de minha mãe aos seus santos. E, às beatas que o procuravam para que levasse ao padre imagens de santos danificadas e depois de coladas, para serem novamente benzidas, e que ele uma a uma as quebrava deixando atônitas as crentes senhoras, pois para ele, imagens uma vez quebradas, tornavam-se apenas vulgares estatuetas. Calcava assim sua visão cristã, toda desprendida de qualquer magia terrena: sua fé começava com a vida, era sua vida e depois, a recompensa de outra vida além da morte. Quase um voltairiano _ embora católico _ sem nunca ter lido Voltaire.
Essas reavaliações tardias assustam-me agora como personagem intruso e já me vendo descartável, no burburinho de inocentes alegrias que ouso e presencio, aqui em minha casa, de meu filho e seus amigos, o quanto na minha adolescência repudiei a figura paterna e a possibilidade_ embora eu me ache participante e simpático em sua vida_ de ele ter em relação a mim as mesmas repulsas que cultuei equivocadamente em relação a meu pai. E aqui termina a similaridade com Kafka.
Penso, agora, como é estúpido nos acharmos senhores de fatos e consequencias e como somos patéticos em tudo isso se não aprendermos, nas introspecções fortuitas dos anos, com os mesmos defeitos que ousamos um dia criticar. Mesmo porque só depois de tantos anos consegui dar ao meu pai seu devido valor, reconhecendo, entre tantas outras coisas, que só graças a ele posso hoje gabar-me de uma “pseudo” intelectualidade, pois me deu condições culturais que ele nunca teve e nunca ousou para si reivindicar.
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Existem várias maneiras de percebermos que estamos envelhecendo. Uma delas é quando começamos a citar com certa frequência os nossos pais como exemplo; outra é notarmos que estamos diminuindo nossos sonhos e aumentando nosso egoísmo; uma terceira, menos profunda, é quando nossos novos colegas começam a referir-se a nós como “senhor” e outra mais, quando morrem nossos amigos e nossos pais. A que mais dói é com certeza, esta última, talvez porque com o passar dos anos acabamos ponderando que a vida é finita e lépida demais, e, menos exigentes, passamos a ser mais suscetível ao avançar da idade.
Parece que ainda ontem escrevi um pequeno poema sobre meu avô paterno. Ele morreu aos oitenta e nove anos não querendo acreditar que o homem chegara à Lua. Em sua mente singela e crente, tal feito seria impossível, senão “um dia um homem vivo chegaria ao Céu”. Era um tempo em que nós, crianças, imaginávamos que os velhos já nasciam velhos (com suas crenças e superstições) e não acreditávamos_ por mais que quiséssemos_ que um dia iríamos crescer.


3 comentários:

  1. Ah, gente! Lindo, lindo, lindo totalmente lindo demais...amei os indicadores de envelhecimento (rs)! Querido Zé que sutileza para lembrar os 'detalhes da alma' que nesta nossa vida são as únicas coisas que levamos até o fim de nossa existência.

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  2. Obrigado pelos comentários. Adorei acha-la aqui!

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  3. Lindo demais! ����������������

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